Por Rodrigo de Moura Jacob
A Lei 9.613/98 que trata dos crimes de lavagem de dinheiro está na ordem do dia, tendo em vista as recentes investigações envolvendo juízes, delegados e advogados no conhecido caso Anaconda.
Referida lei foi promulgada visando combater o enorme número de valores que ilicitamente eram adquiridos por criminosos e, através de recursos fraudulentos e dissimulados acabavam, adentrando no sistema financeiro e econômico do país de forma lícita através de operações ilegais, que transformavam dinheiro ilícito em lícito, o que se determinou chamar vulgarmente de “lavagem de dinheiro”.
Apesar de toda boa vontade e a finalidade nobre da lei, ela é muito criticada por estudiosos do direito por conter questões polêmicas e até, em alguns casos, disposições inconstitucionais.
Apenas para ilustrar algumas das críticas, podemos citar a não inclusão de alguns crimes que geram grande movimentação financeira no rol dos crimes antecedentes previstos no art. 1º da Lei 9.613/98, ou o paradoxo previsto no art. 2º, § 2º e o art. 4º, § 3º, pois, quando no art. 2º, § 2º é expresso a não aplicação do art. 366 do CPP, o art. 4º, § 3º dispõe que nenhum pedido de restituição será conhecido sem comparecimento pessoal do acusado, podendo o juiz determinar a prática de atos necessários à conservação de bens, direitos ou valores, nos casos do art. 366 do CPP. Ora, se aplica ou não se aplica tal artigo?
Não bastasse tal polêmica, juristas renomados dentre os quais Luis Flavio Gomes e Antonio Scarance Fernandes, entendem que a norma que veda a aplicação do art. 366 do CPP é inconstitucional, tendo em vista o preceito constitucional da ampla defesa.
Disposição que causa arrepios aos penalistas e, com razão, é o disposto no § 2º do art. 4º da Lei Especial, pois, invertendo o ônus da prova, transfere do órgão acusador ao acusado a obrigação de comprovar a licitude da origem do bem.
Como considerar constitucional tal preceito frente ao que dispõe o art. 5º, LV da Constituição Federal que garante o contraditório e o inciso LIV que dispõe que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal?
Segundo o dicionário Aurélio, contradizer significa dizer o contrário de desmentir. Ora, se ao acusado é garantido o direito ao contraditório, como então, aceitar a inversão do ônus da prova em relação à licitude da origem dos bens?
Cabe sim a acusação a prova da ilicitude da origem dos bens, para que, possa o acusado se valer de seu direito constitucional de contradizer o que alegado. Se aceitarmos a inversão da prova, ficará obrigado o acusado a provar a licitude da origem do bem para que a acusação comprove a ilicitude do bem, algo um tanto quanto impensável.
Vicente Greco Filho na obra “Manual de Processo Penal” define assim o contraditório: ‘o contraditório pode ser definido como o meio ou instrumento técnico para a efetivação da ampla defesa, e consiste praticamente em: poder contrariar a acusação; falar sempre depois da acusação; manifestar-se sempre em todos os atos e termos processuais.’
O objetivo deste artigo não é se aprofundar muito sobre as questões acima, mesmo porque, em recente artigo publicado no Consultor Jurídico, o tema relacionado sobre a inversão do ônus da prova foi muito bem abordado pelo Dr. Jair Jaloreto Junior.
Como se nota, o legislador fez de um tudo para endurecer contra os criminosos que utilizam a lavagem de dinheiro, porém, em muitos artigos da lei no afã de endurecer dispôs de modo a facilitar a vida do criminoso e em outros casos dispôs de conceitos que data venia, entendemos não se aplicar nos casos da lei estudada.
Diz o art. 3º da Lei 9.613/98 que os crimes definidos nesta lei são insuscetíveis de fiança e liberdade provisória.
Primeiramente urge analisar a inconstitucionalidade do referido artigo, pois nos termos do art. 5º XLIII que dispõe sobre os casos em que a lei considerará inafiançáveis os crimes, não consta no rol os crimes de lavagem de dinheiro, portanto, entendemos inconstitucional tal preceito, corroborando com esse entendimento Alexandre de Moraes e Gianpaolo Poggio Smanio na obra “Legislação Penal Especial” ao comentar a Lei 8.072/90 nos ensina que ‘ ressalta-se que a lei somente não poderia autorizar a concessão de fiança nas hipóteses em que, expressamente, o legislador constituinte vedou-as, sob pena de flagrante inconstitucionalidade’.
Diferentemente é a questão em relação à liberdade provisória, pois, com não há disposição expressa na Carta da República, não é vedado que, por lei infraconstitucional se limite o benefício.
Os autores da obra acima citada assim comentam sobre o tema em relação a lei 8.072/90 – ‘ não nos parece padecer de inconstitucionalidade o referido dispositivo constitucional, uma vez que o tratamento das hipóteses de liberdade provisória é meramente infraconstitucional, sendo, em regra realizado pelo próprio Código de Processo Penal. Desta forma, nada impede que outra espécie normativa ordinária, de idêntica hierarquia ao Código de Processo Penal, possa prever algumas hipóteses proibitivas de concessão de liberdade provisória.’
Mas como então solucionar a questão? Se, de um lado, é constitucional a vedação da liberdade provisória, por outro, é inconstitucional a vedação da fiança. Caso seja o acusado preso e couber fiança nos casos de crime tentado deverá ser concedida liberdade provisória com fiança ou não?
Julio Fabbrini Mirabete, em seu livro “Processo Penal”, ensina que: ‘ a fiança é um direito subjetivo constitucional do acusado, que lhe permite, mediante caução e cumprimento de certas obrigações, conservar sua liberdade até a sentença condenatória irrecorrível. É um meio utilizado para obter a liberdade provisória.’
Caso ocorra como no caso acima descrito entendemos ser evidente a possibilidade da concessão da liberdade provisória com fiança, pois, primeiro, na interpretação de normas conflitantes deve-se sempre aplicar a que melhor se aduna aos interesses do acusado; segundo deve-se fazer uma interpretação sistemática da lei, ou seja, interpretar não o artigo isoladamente, mas sim sobre toda a regulamentação da matéria; terceiro, o art. 5º, LXVI — dispõe que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.
Para não se tornar letra morta o disposto que veda a liberdade provisória à única interpretação plausível é a vedação do benefício sempre que não couber a fiança. Ou seja, nos casos em que o Código de Processo Penal permite a liberdade provisória sem fiança, mas, mesmo assim a interpretação mencionada fere todo o sistema lógico processual. Isso porque, nos casos do art. 321 do Código de Processo Penal que, em tese, são menos gravosos do que os casos em que cabe fiança, bem como nos casos do art. 310, § único do mesmo Codex, não seria possível a liberdade provisória. Contudo, nos casos considerados, em tese, mais graves caberia. É evidente que os casos previstos no art. 321 do CPP não se enquadram no quantum das penas da lei 9.613/98, apenas quisemos demonstrar a incoerência da norma.
Assim, sobrepondo as disposições do art. 3º da Lei 9.613/98 podemos concluir que: é inconstitucional a proibição de fiança nos crimes definidos nesta lei; é permitida a liberdade provisória com fiança e é questionável a vedação da liberdade provisória sem fiança.
Depois de toda a análise do art. 3º deixamos para o final o § 5º do art. 1º da Lei 9.613/98, que conforme se demonstrará distorce da intenção rigorosa da referida lei.
Primeiramente, vale lembrar que a pena cominada aos crimes previstos na Lei de Lavagem de dinheiro é de 3 a 10 anos de reclusão e multa, havendo aumento de pena nos casos previstos no § 4º do art. 1º. Pois bem, depois de analisarmos a constitucionalidade ou não da fiança, perguntamos: mas em que caso caberia a fiança se diz o art. 323, I do Código de Processo Penal a contrario sensu que somente é permitida a fiança nos crimes apenados com reclusão em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a dois anos?
Como já mencionado, as penas cominadas aos crimes de lavagem variam de três a dez anos de reclusão, sendo assim, não seria possível a concessão de fiança, salvo nos casos do § 3º do art. 1º, isto é, nos crimes tentados, pois haveria uma redução de um a dois terços na pena em abstrato, e para a apreciação da fiança levar-se-ia em conta a pena mínima em abstrato com a menor diminuição, ou seja, um terço, desta forma a pena mínima em abstrato ficaria em 2 anos respeitando o disposto no art. 323, I do Código de Processo Penal, única hipótese que entendemos cabível a fiança.
Entretanto, a questão que entendemos mais interessante sobre a aplicação da pena, diz respeito ao disposto no § 5º do art. 1º da Lei 9.613/98, que dispõe sobre a delação premiada, possibilitando ao réu a redução da pena bem como o início da pena no regime aberto.
Data venia, não entendemos qual foi a intenção do legislador, pois, não há na lei de lavagem qualquer dispositivo que indique que o cumprimento da pena não se iniciará no regime aberto, quanto autorizado pelo Código Penal. Diferentemente da Lei 8.072/90 em que há previsão expressa no art. 2º, § 1º do cumprimento no regime integralmente fechado, independente da pena aplicada.
Dispõe o art. 33, § 2º, item “c” do Código Penal que o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.
Pois bem, considerando que a pena mínima do crime de lavagem é de 3 anos, não sendo o réu reincidente, não há nenhum óbice para o início do cumprimento da pena no regime aberto, mas se realmente a intenção do legislador foi endurecer com os criminosos que se utilizam da lavagem de dinheiro, ocorreu na verdade o contrário, pois, como o disposto no § 5º do art. 1º da Lei 9.613/98 não faz nenhuma ressalva, será permitido o início de cumprimento no regime aberto, mesmo sendo aplicada pena superior a 4 anos. Isto é, sendo a lei 9.613/98 especial revoga a lei geral que dispõe sobre a mesma matéria, sendo assim, o disposto no art. 33, § 2º, itens “a” e “b” não se aplica nos casos de condenação em crime de lavagem de dinheiro, podendo desta forma, o réu iniciar sua pena no regime aberto mesmo havendo condenação a uma pena de 6, 7, 8 ou 10 anos por exemplo.
Assim concluímos: ser inconstitucional a não aplicação do art. 366 do CPP nos casos da Lei 9.613/98; ser inconstitucional a inversão do ônus da prova; ser inconstitucional a não concessão da fiança; ser possível a concessão de liberdade provisória sem fiança e finalmente a possibilidade de cumprimento do regime inicial aberto independente da quantum da pena aplicada.
Rodrigo de Moura Jacob é advogado, sócio do escritório Nilson Jacob, Rolemberg Advogados Associados.