Proibir o comércio de armas é dar à paz uma chance

por Marcelo Semer

É saudável que o povo brasileiro tenha sido chamado, pela primeira vez nesta ordem constitucional, para referendar uma lei aprovada no Parlamento.

De tudo o quanto se conclui do cipoal de denúncias que cercou as promíscuas relações entre partidos e o governo, o mais relevante é a necessidade urgente de uma reforma política que devolva ao povo o exercício da soberania que em seu nome, não vem sendo exercida. Quiçá nossos legisladores avancem em uma reforma política com matiz popular, de modo a recuperar a figura do referendo, inclusive quanto às emendas constitucionais, e prestigiar a iniciativa popular legislativa. A única lei oriunda da coleta de assinatura de cidadãos, com apoio da CNBB, OAB e da Associação Juízes para a Democracia, coincidentemente, é a que estabeleceu mecanismos mais rígidos para o controle da captação de sufrágio (corrupção eleitoral). Por ter proporcionado várias cassações de políticos, no entanto, está na alça de mira dos parlamentares.

O referendo do próximo dia 23 é uma boa experiência para a sociedade que jamais foi consultada quanto a políticas de segurança pública.

E é disto que se trata o referendo.

Não é um plebiscito do atual governo, embora muitos políticos de lado a lado tenham dele se aproveitado.

O referendo não é uma cortina de fumaça para esconder as gravíssimas acusações que pairam sobre o centro do poder. Já estava designado desde 2003, quando ainda não eram públicas as impublicáveis relações do Executivo com seus parlamentares. O desarmamento como política de segurança é uma das tantas heranças malditas, pois precede à posse do atual presidente, inclusive com a aprovação no governo anterior da Lei 9437/97 (que acabou superada pela superveniência da Lei dos Juizados Federais que converteu vários crimes de arma em infrações de menor potencial ofensivo).

O referendo não é uma ameaça à democracia e não estamos em risco porque se quer “suprimir direitos”.

De há muito que se considera que a arma é um produto controlado. Não há um direito fundamental à posse ou porte de arma de fogo. Não se depreende o direito à arma do direito à segurança, pois este é uma obrigação que se deve exigir do Estado. A razão primeira do Estado é o monopólio do uso legítimo da força, justamente o que nos subtrai do estado de violência natural.

Tal como os entorpecentes, a arma é um produto que se controla por sua lesividade. Não é absolutamente proibida, mas deve ser de uso restritíssimo. O legislador tem entendido que o entorpecente pode gerar disseminação e dano potencial à saúde pública –proibir aqui não tolhe direitos, mas justamente os assegura.

Nem toda proibição se destina a subtrair liberdade. Esta, no caso, visa aumentá-la.

As garantias aos direitos dos consumidores, por exemplo, só avançaram com a fixação de regras rígidas a fabricantes e comerciantes. O neoliberalismo também reage fortemente à existência de regras e proibições para controlar o exercício das atividades econômicas. Maior liberdade significa maiores lucros, maiores direitos para poucos e maior sofrimento para muitos.

Incentivar a reação armada da população não me parece ser, outrossim, a postura mais correta para quem se coloca na posição de defender direitos fundamentais. Os exemplos são quase sempre trágicos, seja no insucesso, seja no abuso.

Dificilmente alguém poderá dizer com segurança que ao proibir a comercialização de armas a criminalidade estará fulminada, ou mesmo reduzida. Mas é razoável supor que pelo menos o número de mortes poderá diminuir, como já vem acontecendo desde a vigência do Estatuto do Desarmamento. Quanto menor e mais difícil o acesso às armas à população em geral, mais custoso será o seu acesso aos criminosos que, em grande parte, se aproveitam dos próprios atos delituosos para amealhar tais instrumentos.

Mas, evidentemente, tudo não passa de uma projeção, como todas as ações políticas. O certo é que o voto não mantém a situação tal como está. O voto sim é uma chance de melhorá-la. Penso que não devemos desperdiçá-la.

Marcelo Semer, Juiz de direito em São Paulo, e presidente do Conselho Executivo da Associação Juízes para a Democracia

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