Os senadores aprovaram, e enviaram para apreciação da Câmara dos Deputados, proposta de emenda constitucional que estabelece, entre outras coisas, foro privilegiado para as ações de improbidade administrativa (PEC 358/05, artigo 97-A e parágrafo).
A adoção desse foro para beneficiar ocupantes e ex-ocupantes de cargos públicos, constitui, a nosso ver, equívoco manifesto que navega no contra-fluxo da maré democrática.
Mais que um privilégio a cargos, tem-se uma prerrogativa destinada às pessoas que os exerceram, o que significa, na prática, a cristalização de uma tradição aristocrática em pleno Estado republicano.
É abraçar, como já disse o ministro Joaquim Barbosa, “algo despido de praticidade, dissociado da realidade estrutural dos tribunais e que contribui para a morosidade e a impunidade”. Significa, na prática, agravar situação já caótica de morosidade nos julgamentos e crescente impunidade.
No Brasil, até aqui, e em quase todos os países do chamado mundo civilizado, a prerrogativa de foro sempre foi deferida com bastante comedimento e unicamente em processos criminais. Ações por improbidade administrativa, conforme maciça jurisprudência, inclusive dos tribunais superiores, são de natureza civil.
A inovação cogitada é ruim, sob todos os aspectos, principalmente frente às ondas de escândalos que assolam o país. Cada centavo que é desviado ilicitamente dos cofres públicos importa em menos escolas, serviços de saúde, infra-estrutura viária e elétrica, cultura etc.
O congestionamento dos tribunais é facilmente previsível. Imagine-se a situação dos chefes de Executivos municipais. São 5.560 ex-prefeitos a cada quatro anos. Em contrapartida, são apenas 26 tribunais estaduais e cinco Tribunais Regionais Federais para julgamentos de ações criminais e de improbidade.
Embora os colegiados possuam algumas competências originárias, sua estrutura volta-se à solução de recursos, ou julgamento de ações originárias em que não haja instrução probatória. Tanto que, quando necessária, a oitiva de testemunhas é delegada aos juízos de inferior instância. Transferir para os tribunais a instrução e julgamento de ações por improbidade importa agravar situação já caótica; importa na certeza da impunidade.
É o que indicam os julgamentos dos últimos dez anos de processos criminais envolvendo políticos no Supremo Tribunal Federal, instância máxima do Judiciário brasileiro que tem a competência de julgar ações penais contra presidentes da República, senadores, deputados e ministros.
De 1996 até 2006 o STF julgou definitivamente 29 processos penais contra políticos que têm direito a foro privilegiado. Nenhum foi condenado.
Não sendo demais lembrar que o Brasil, nos últimos anos subscreveu tratados internacionais que preconizam a adoção de esforços para combater a corrupção. Exemplo disso é a Convenção Interamericana Contra a Corrupção, assinada em Caracas em 29 de março de 1996. Também a Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção.
Cabe então indagar: ao adotar solução que claramente contribuirá para a impunidade de atos tipificados como improbidade administrativa, não estará o legislador contribuindo para o descumprimento desses tratados?
Apavora-nos mais saber que no Brasil ainda existam políticos capazes de cogitar num atentado à Constituição e aos princípios da igualdade, da moralidade administrativa e da responsabilidade dos agentes do Estado.
O Ministério Público, não é de hoje, tem-se empenhado de forma austera e responsável no papel de fiscal da ordem jurídica e da moralidade pública. Afirmar, como fazem alguns, que a “história da ação de improbidade é uma história de improbidades” constitui injusta, indevida e lamentável generalização que, infelizmente, desmerece a atuação do órgão.
O balanço entre acertos e eventuais desacertos é favorável à instituição, o que não autoriza descuido com o salutar exercício da autocrítica. Se houver excessos, seja de procuradores ou promotores, seja de juízes —as instituições são compostas por homens, não por deuses—, os Conselhos Nacionais, instalados em 2005, aí estão para fiscalizar a gestão administrativa e financeira e, também, para promover responsabilidades. Não há o que temer.
Não fosse o Ministério Público, a imprensa e formadores de opinião, o descalabro vivido no país seria ainda maior. Só na cidade de São Paulo, nos últimos dez anos, foram propostas 663 ações de improbidade pelos promotores de Justiça da Cidadania, buscando recuperar mais de R$ 36 bilhões indevidamente desviados dos cofres públicos, por maus políticos e administradores públicos.
As condenações já conseguidas, superam R$ 7,5 bilhões e R$ 5,6 bilhões já se encontram bloqueados por força de cautelares deferidas em processos ainda em andamento. Se voltarem aos cofres públicos, os reclamados R$ 36 bilhões, representam mais que o dobro do atual orçamento da cidade (R$ 17,2 bilhões).
Caro leitor, ao ouvir a expressão “privilégio de foro”, saiba que ela além de ferir os princípios republicanos, permite o roubo dos impostos que você e sua família pagam com dificuldade.
Você também pode lutar contra mais essa manobra política que tem como objetivo continuar premiando os maus políticos. É fácil…Basta acessar o Participação Popular da página eletrônica da Câmara dos Deputados, e enviar sua mensagem contra a aprovação da PEC 358/05.
João Francisco Moreira Viegas é procurador de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Cidadania do Estado de São Paulo
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João Francisco Moreira Viegas é procurador de Justiça e coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Cidadania do Estado de São Paulo