Projeto de novo Código Comercial cria insegurança para S.A.

Autor: Roberto Papini (*)

 

Encontra-se em tramitação no legislativo brasileiro o processo de aprovação de um novo Código Comercial (Projeto de Lei nº 1572/11). Preliminarmente, cumpre observar que ao contrário do que ocorreu em relação ao vigente Código Civil, que praticamente passou em branco em relação à disciplina acionária, o projeto do novo Código Comercial introduz quatro capítulos voltados exclusivamente para as sociedades por ações. A leitura dos 29 artigos do documento revela que apesar de não tratarem de forma completa sobre a matéria, contemplam disposições inovadoras e modificam institutos já consagrados na Lei Federal 6.404/1976 (Lei das S.A.).

Como se pode observar, atualmente, o Código Civil aplica-se apenas supletivamente à sociedade anônima. Considerando-se que a vigente Lei das Sociedades por Ações, apesar do longo tempo de vigência (superior a 30 anos), permaneceu atual e completa, o Código Civil não ameaçou nem interferiu na sua interpretação ou aplicação. Ademais disso, não é do nosso conhecimento casos de eventuais lacunas ou omissões da lei das sociedades anônimas resolvidos através da aplicação supletiva do Código Civil.

Por outro lado, no projeto de lei do Código Comercial a regra supletiva de aplicação da lei especial (Lei das S.A.) preconiza exatamente o contrário do previsto no Código Civil. Neste, dispõe o art. 1.089, que “A sociedade anônima rege-se por lei especial, aplicando-se lhe, nos casos omissos, as disposições deste Código”.  O projeto do novo Código Comercial (parágrafo único do art. 144) faz o contrário, dispondo que, “No que não for regulado neste Código, sujeita-se a sociedade anônima à lei especial”.

Não se pode negar a importância de introduzir, por via legislativa, ajustes e aperfeiçoamentos na LSA. O mercado de capitais – em que se encarta as sociedades por ações – é extremamente dinâmico e no mundo dos negócios, de um modo geral, as transformações são constantes. Por tudo isso, ao longo dos anos, várias alterações foram introduzidas diretamente no corpo da LSA, o que, por ser de boa técnica legislativa, não rompeu a sua estrutura.

E certo, ainda, que não se pode inferir, efetivamente, da disciplina do anteprojeto do Código Comercial, a pretensão de substituir a lei especial em vigor com seus 300 (trezentos) artigos. Todavia, tanto pela superposição – ainda que parcial – de uma nova disciplina legal, como pelas alterações importantes introduzidas  pelo projeto de lei (Lei Geral) na LSA – várias delas discrepantes com o regime acionário vigente- cria-se, sem qualquer necessidade, um clima de insegurança  jurídica em relação à aplicação da lei especial , ameaçando-se, enfim, de ruptura,  a completa harmonia de um conjunto de normas que propiciou ao longo dos anos a adoção do  processo sistemático de interpretação, inegavelmente um dos mais respeitados e reconhecidos da hermenêutica jurídica.

O exame das modificações e novidades introduzidas pela disciplina do projeto de código comercial confirma a nossa preocupação.

Iniciamos pelo artigo 150, que defere tratamento especial ao microempresário ou empresário de pequeno porte em caso de redução de capital da companhia, obrigando-se a sociedade a avisá-los nos três dias seguintes à publicação da ata da assembleia geral.

Cria-se, consequentemente, mais uma obrigação para as companhias, o que nos parece desnecessário, se considerarmos que, além do amplo regime de publicidade próprio das sociedades por ações, a redução de capital já é subordinada a rigoroso ritual, incluindo a proteção especial (oposição) assegurada aos credores.

O artigo 152 do projeto de lei do Código Comercial dispõe sobre o procedimento de cobrança do acionista que descumpre a obrigação de pagar o preço de emissão das ações subscritas ou adquiridas (acionista remisso), fazendo-o, todavia, de forma incompleta, forçando, assim, a sua integração com as normas da lei especial que já regulam a matéria com mais técnica e precisão.

No art.154 do projeto, está previsto que “A lei definirá os direitos essenciais do acionista”, do que se pode inferir a revogação do art. 109 da LSA, que já os define em “numerus clausus”. Apesar do desconforto, felizmente, espera-se que dessa impropriedade não decorram prejuízos, se considerarmos que em consonância com já consagrados princípios de interpretação, a lei geral posterior não revoga a lei especial anterior, a não ser que o faça expressamente ou que trata da mesma matéria objeto da primeira.

O art. 155 do projeto enuncia de forma genérica que o acionista deverá exercer o direito de voto de modo compatível com a função social da empresa e com vistas à realização do objeto da sociedade anônima.  A norma não contribui para o aprimoramento da disciplina legal vigente sobre o voto, que, tendo em vista as responsabilidades sociais e o fim institucional da empresa, já impõe ao acionista controlador, no exercício do seu poder (parágrafo único do art. 116), bem como aos administradores, no exercício das suas atribuições (art. 154), fazer a companhia realizar o seu objeto, respeitadas as exigências do bem público e a função social da empresa.

O art. 157 do projeto define algumas modalidades de controle (totalitário, majoritário, minoritário ou difuso e o gerencial ou pulverizado). Não conseguimos vislumbrar a finalidade ou a utilidade da norma.  Ademais disso, contraria a técnica perfilhada pelo legislador de 1976, que optou (art. 116) por definir o acionista controlador e suas responsabilidades. Nessa linha de construção legislativa, a maior ou menor quantidade de ações votantes detidas pelos acionistas não serão relevantes ou decisivas. A caracterização do poder de controle vai depender da presença de outros requisitos definidos em lei (alíneas “a” e “b” do art. 116) não necessariamente vinculados a blocos majoritários ou minoritários de ações.

Nota-se, enfim, que a lista de modalidades do anteprojeto somente alcança a forma interna de dominação (interna corporis), deixando de contemplar o controle externo, que decorre no âmbito externo das relações comerciais das sociedades.

No capítulo que trata da estrutura societária o projeto de lei introduz uma alteração no processo de escolha dos membros da mesa diretora dos trabalhos da assembleia, dispondo, nesse sentido, que, em caso de omissão do estatuto, a assembleia deverá ser presidida pelo acionista presente titular do maior número de ações votantes. Havendo mais de um acionista na mesma condição, a assembleia será presidida pelo sócio mais antigo da companhia ou, se insuficiente este critério, pelo mais idoso, cabendo ao presidente da mesa a escolha do secretário. O projeto de lei altera, portanto, a vigente e pragmática norma procedimental, que simplesmente defere aos acionistas presentes a escolha do presidente e secretário da assembleia.

Na eleição dos membros do conselho de administração nota-se que o projeto de lei introduz uma nova disciplina para o voto múltiplo (art. 141 da LSA), dispondo o art. 164 do projeto que a eleição será majoritária ou proporcional, segundo dispuser o estatuto ou, em sua omissão, conforme deliberar a assembleia. Na modalidade majoritária, segundo o projeto de lei, no preenchimento de cada cargo de conselheiro ou de todos os cargos em conjunto, prevalece a maioria dos votos presentes à assembleia. Na modalidade proporcional são postos em votação todos os cargos do conselho de administração, podendo cada acionista, distribuir os seus votos entre vários candidatos ou concentrá-los em apenas um, sendo eleitos os candidatos que receberem maior sufrágio.

Sem nos determos com maior profundidade e detalhes na comparação dos dispositivos legais que regulam o exercício do direito de voto na eleição de membros do conselho de administração, observa-se que o projeto praticamente afasta o representante das minorias no conselho de administração.  Na vigente lei acionária o exercício pelos acionistas minoritários não depende do estatuto nem da assembleia geral porque é assegurado por lei.  O processo, adredemente deflagrado pelos acionistas interessados perante a companhia, define regras de segurança para o exercício do voto, incluindo a informação prévia sobre o número de votos necessários para a eleição de cada membro do conselho, assim permitindo ao minoritário o uso de instrumentos e fórmulas que otimizem a concentração ou distribuição de votos.

Ademais disso, nota-se que o projeto não regula a hipótese de destituição de conselheiro eleito pelo voto proporcional nem assegura o voto em separado assegurado aos acionistas minoritários com e sem direito a voto nas companhias abertas, previstos (impropriamente) em parágrafos do art. 141 da LSA, que trata do voto múltiplo.

Nota-se, enfim, que o projeto do novo código comercial não se limitou a introduzir ajustes superficiais na disciplina do voto múltiplo. As alterações propostas são profundas e abalam em sua estrutura um dos mais importantes instrumentos de defesa do minoritário.

Por último, o projeto de lei preconiza a adoção de práticas de governança corporativa com a finalidade de sobrepor os interesses da sociedade sobre os particulares dos acionistas, proteger os acionistas minoritários e conferir transparência aos negócios sociais.

Em primeiro lugar, para que os objetivos da governança corporativa sejam atendidos será suficiente a observância das normas vigentes da LSA, especialmente daquelas relacionadas ao exercício do poder de controle e da administração social.  Para aprimorar ainda mais a gestão corporativa não canso de citar o exemplo do segmento de listagem criado pela BOVESPA, destinado à negociação de ações emitidas por empresas que se comprometem, voluntariamente, com a adoção de práticas de governança corporativa e disclosure, adicionais em relação ao que já é exigido pela legislação. Sob tal aspecto o projeto de lei também não traz contribuição importante.

Como se pode ver, se, de um lado, as acanhadas inserções efetuadas pelo projeto de lei do Código Comercial não devem ser importantes para o aprimoramento e atualização da disciplina acionária, de outro lado, podem criar um clima de insegurança e incerteza na área jurídica que opera e aplica a LSA, porque incompletas e em alguns casos discrepantes com o regime legal acionário vigente. Tudo isso, sem qualquer justificativa, porque a LSA, caso raro de longevidade, vigora com majestade. Na prática, cria-se o pior dos mundos, quando a mesma matéria é concomitantemente regulada por uma lei geral e outra especial, editadas em épocas diferentes. Ajustes nos atuais estatutos sociais serão necessários. Discussões e possível judicialização das questões societárias também são esperadas. O momento ainda é oportuno para refletir e debater sobre a repercussão do projeto de lei do novo código comercial na legislação das anônimas.

 

 

 

 

Autor: Roberto Papini  é advogado e sócio-coordenador da área societária da Andrade Silva Advogados.

 


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