Projeto do novo Código de Processo Penal é desconectado da realidade

Autor: Ricardo Augusto S. Leite (*)

 

O Projeto de Lei 8.045/10, que institui um novo Código de Processo Penal, vem sendo discutido com vários profissionais da seara jurídica. A Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) foi consultada e encaminhou sugestões à Câmara dos Deputados, por meio de comissão de acompanhamento, presidida pelo eminente desembargador federal Ney Bello.

A maior proposta do projeto de lei consiste no aperfeiçoamento de um juiz de garantias, que, para os doutrinadores atuais, ainda estaria mal desenhado pelo Código de Processo Penal vigente. Essa proposta visa estruturar um sistema acusatório cada vez mais genuíno, puro, imaculado, de modo a excluir o magistrado, por completo, da fase inquisitiva da persecução penal, que seria reservada à atuação exclusiva da autoridade policial e do Ministério Público.

A ideia seria trilhar o caminho de países com bons índices de desenvolvimento humano, a exemplo da Espanha, da França e dos Estados Unidos, que se propõem a preservar, radicalmente, a imparcialidade do juiz.

Todo esse cenário reflete, porém, a necessidade subjetiva moderna de se construir um sistema com um fim em si mesmo, completamente desconectado da realidade.

Importa-se, de forma inconsequente, sem adaptação alguma, uma principiologia processual adequada à história, à cultura, à constituição, à sociedade de um país estrangeiro.

O juiz passa a ser tratado como uma figura influenciável e imatura, que não seria capaz de diferenciar, de um lado, os indícios de autoria que fundamentam uma medida de natureza cautelar e, do outro, a riqueza probatória necessária à prolação de uma sentença penal condenatória.

O magistrado, na visão dos processualistas da atualidade, seria como o avesso da figura simbólica do Rei Midas. O juiz que já tiver tido contato com a fase inquisitiva, tendo deferido uma prisão preventiva, por exemplo, maculou, irreversivelmente, sua imparcialidade; doravante,  não mais pode “tocar” em nada, não deve ter contato com a fase acusatória, sob pena de maculá-la com um juízo tendencioso, em prejuízo da defesa.

Haja desconfiança em torno de um agente público, que, histórica e culturalmente, no Brasil, sempre esteve associado à prudência, à temperança, à cautela, à imparcialidade.

Não se trata de sustentação irracional de uma tese corporativista sobre o projeto de lei em curso. É inegável que seus autores são profissionais brilhantes, com vasta cultura jurídica, mas que se encantaram com a legislação alienígena, inebriando-se com um cenário estrangeiro que não cabe no Brasil.

Na maioria daqueles países, adeptos do sistema acusatório mais puro, os índices de criminalidade vêm caindo vertiginosamente ao longo do tempo. Essa realidade, sim, justifica vários desdobramentos de direitos e garantias fundamentais.

Além de recursos monetários, um sistema acusatório purificado, repleto de garantias em seu ordenamento jurídico requer prévio cumprimento de uma das missões primordiais do Estado — alcançar limites toleráveis de convivência. E isso, seguramente, ainda não ocorreu no Brasil.

Somos os campeões mundiais absolutos em números de homicídio (medalha de ouro!!!). Os crimes contra o patrimônio cometidos com violência e grave ameaça aumentam exponencialmente (outro ouro!!!). O tráfico ilícito de drogas floresce vigorosamente (e como produz frutos amargos!!!).

Com relação ao tráfico, ainda há uma divulgação midiática enganosa de que o problema do usuário é apenas de saúde pública, sem qualquer implicação penal, quando, em verdade, alimentam o ciclo eclético da criminalidade, e atingem, indiretamente, outros diversos bens jurídicos da maior relevância, objetos do Direito Penal.

Há de indagar-se, portanto: é conveniente, nesse contexto, atar a mão do magistrado e não permitir sua participação na fase investigativa? Caso venha a perceber uma omissão da autoridade policial ou do Ministério Público, não poderia o juiz decretar uma medida cautelar cabível? Teria mesmo que se calar, num contexto de criminalidade aterradora, em nome da pureza do sistema acusatório?

Esmiuçando ainda mais: por que tirar de um terceiro ator da persecução penal a possibilidade de determinar a realização de uma diligência necessária à formação de seu convencimento em torno de um pedido de quebra de sigilo ou de prisão provisória? Seria melhor indeferir a medida e colocar a sociedade em risco?

Reconhece-se, logicamente, que tais situações são excepcionais. No geral, a investigação é bem conduzida, as medidas cautelares são oportuna e convenientemente pleiteadas pela autoridade policial, pelo Ministério Público. Desse modo, a atuação inquisitiva do magistrado é sempre subsidiária, de exceção, em último caso.

A Justiça Criminal, no Brasil, não pode correr o risco de descartar um terceiro ator na fase inquisitiva, ainda que de forma suplementar, mais distante, discreto, prudente e imparcial, a desempenhar uma função de fiscal último da investigação, do princípio da obrigatoriedade da ação penal.

Seria muito mais grave correr o risco de prejudicar a sociedade do que de haver eventual abuso por parte do magistrado, passível, inclusive, de vir a ser calado pelas outras instâncias do Poder Judiciário.

A democracia, baseada no cânone da igualdade, exige, do Poder Judiciário, muito menos um sistema acusatório puro do que uma  resposta penal efetiva na fase extrajudicial ou judicial.

O descolamento da realidade na construção de sistemas abstratos, subjetivos, já havia sido evidenciado por Eric Voegelin, em seu livro Reflexões Autobiográficas[1], como fenômeno do mundo moderno. Suas consequências são nefastas:

“se o sujeito constrói um sistema, a falsificação da realidade é, portanto, inevitável.”

Quais circunstâncias fáticas, no Brasil, foram constatadas, ao longo do tempo, para justificar a proibição a ser imposta aos juízes? Existem estatísticas que demonstram que os juízes mais erram do que acertam quando agem de ofício na fase investigativa ou na fase processual? Acaso eventuais erros não podem ser corrigidos por instâncias superiores?

Cada vez mais emerge a certeza de que a mudança vindoura assegurará um sistema acusatório mais puro e sem conexão com a realidade local. A sociedade pagará um alto preço por um capricho acadêmico descabido, que elevará os índices de criminalidade que já apavoram o brasileiro.

Ao contrário do que possa parecer, o movimento conservador adota o princípio da variedade, conforme explica Russel Kirk, autor que melhor sistematizou as ideias conservadoras[2]:

“Para a preservação de uma diversidade saudável em qualquer civilização, devem remanescer ordens e classes, diferenças na condição material, e muitos tipos de desigualdade”.

Assim, não há motivo para igualar legislações de países com formações históricas diferenciadas, cujos povos, línguas e culturas retratam realidades diferentes. Uma pessoa abaixo do peso ideal do seu biotipo, para ficar saudável, precisa ingerir mais calorias, enquanto outra, acometida de obesidade, necessita de menor quantidade de alimentos.

Essa pretendida igualdade sufocante de leis foi a premissa da instituição inconsequente do juiz de garantias e do freio dos poderes judiciais, em clara afronta à realidade de aumento da criminalidade.

Não é menos verdade que a implantação do sistema acusatório puro ainda causa um pernicioso afastamento de elementos próprios da jurisdição — mais especificamente a notio e o poder geral de cautela — que remontam às raízes do direito romano.

Para um conservador, o direito romano deve ser reverenciado, por ter sido o mais profícuo e eficaz ordenamento jurídico que a civilização ocidental já produziu.

A notio, que se traduz na faculdade do juiz conhecer uma questão determinada, é atingida, caso o magistrado não possa agir de ofício, ao apreciar um feito. Seu conhecimento ficaria limitado ao que as partes podem oferecer em termos de prova.

Aliás, é descabida a ideia de que o juiz, ao atuar por si mesmo,  vai substituir a atuação probatória própria da acusação. Com efeito, o magistrado não sabe de antemão se o resultado de uma prova beneficiará ou prejudicará uma parte ou outra. Ele quer simplesmente esclarecer uma situação fática, em prejuízo de quem quer que seja (do autor ou do réu).

O poder geral de cautela, por outro lado, é essencial para assegurar o momento posterior da jurisdição, após o conhecimento da causa. Com uma visão mais aprofundada da lide, o juiz passa a enxergar o que pode ser realizado, cautelarmente, para evitar perecimento de direito de uma parte ou de outra.

Socorre-nos, aqui, mais uma vez, os ditames do pensamento conservador. Chesterton falava da “democracia dos mortos”, ou seja, da ideia de que a forma de pensar e agir do que nos precederam podem (e geralmente são) melhores do que modismos da modernidade.

Russel kirk também comenta sobre o princípio da consagração pelo uso, sobre “a improbabilidade que os modernos façam qualquer descoberta nova e extraordinária em moral, política ou gosto”. Também chama a atenção para a virtude da prudência em aspectos políticos e jurídicos, recomendando que o conservador somente deve agir “após suficiente reflexão, tendo sopesado as consequências de seus atos”[3].

As reformas na legislação processual devem ser feitas de forma pontual e visar, principalmente, um decréscimo no índice de criminalidade. Logicamente, devem ser respeitados direitos e garantias individuais pelo juiz, já suficiente e justamente atado pela Constituição e vigiado por seus pares, nos tribunais. Tolhê-lo além disso seria produzir o que Eduardo Prado de Mendonça[4] descreve como sendo uma alucinação coerente, produzindo um sistema processual lógico, mas desconexo com a finalidade que se almeja, dentro de uma sociedade que está desprotegida e infestada de ataques intoleráveis à convivência humana.

 

 

 

 

Autor: Ricardo Augusto S. Leite  é juiz federal em Brasília e estudioso do pensamento conservador.


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