Autores: Rachel Leticia Curcio Ximenes, Tiago de Lima Almeida e Marco Aurélio de Carvalho (*)
Em junho de 2015 foi apresentado pelo Poder Executivo, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 1.775 de 2015, que dispõe sobre a criação do Registro Civil Nacional (RCN), revogando a Lei 9.454 de 1997, que criou o Registro de Identificação Civil.
Pretende-se por meio deste projeto de lei, elaborado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), viabilizar a instituição de um novo processo de identificação civil por meio de um Registro Civil Nacional. Referido registro deverá ser feito mediante informações concentradas em um único cadastro, que irá gerar um número a ser atribuído a cada individuo, que por seu turno receberá um documento de identificação — RCN.
De acordo com o projeto em tela, a responsabilidade pela gestão e atualização desse sistema será da Justiça Eleitoral, que deverá assegurar a integridade, disponibilidade, autenticidade e a confidencialidade de seu conteúdo.
Tal projeto de lei, muito questionado por toda a sociedade, quer sob o aspecto econômico, quer sob o aspecto jurídico, ganhou muita notoriedade junto a diversos veículos de comunicação essa semana em virtude de, na data de 1 de março de 2016, ter sido objeto de um Requerimento de Urgência (4.056/2016), apresentado pelo deputado Alessandro Molon (Rede-RJ) e outros líderes, para apreciação e votação da Casa Legislativa.
Sob o aspecto econômico, muito se questiona o custo que a implementação de tal registro único trará aos cofres públicos, não equilibrados como em um passado não tão distante, cuja estimativa supera um bilhão de reais, conforme noticiado pelos jornais.
Importante frisar que a proposição vedou a comercialização da base de dados do RCN, mas não proibiu que a conferência de dados seja prestada à terceiros. A previsão é de que o RCN seja mantido por recursos decorrentes da prestação de serviços de conferência de dados, tornando-o mais oneroso.
Já sob a ótica jurídica, além de apresentar vícios formais, tais como: impossibilidade de se fazer alteração de competência da Justiça eleitoral por lei ordinária (artigo 121 da CF) e a ausência da apreciação da matéria — que versa sobre direito individual — pelo Plenário (artigo 5, X e XII e artigo 68, §1º, II, da CF); o Projeto de Lei 1.775 de 2015 está eivado de vícios materiais.
Em consonância com o disposto no artigo 121, caput, da Constituição Federal, as competências da Justiça Eleitoral só podem ser delimitadas por Lei Complementar, bem como não podem ser ampliadas para além dos limites constitucionalmente estabelecidos. Está automaticamente vedada qualquer pretensão de alterar validamente o âmbito de competência da Justiça Eleitoral por Lei Ordinária.
Não se pode deixar de registrar também que o afastamento da apreciação, pelo Plenário da Câmara dos Deputados, de matéria sobre direito individual fundamental à titularidade, privacidade e sigilo de dados acarreta grave vício no processo legislativo, passível de reconhecimento de inconstitucionalidade.
Se não bastasse, ao se pretender criar um Registro Civil Paralelo, o PL 1.775 de 2015 viola o previsto no artigo 236 da Constituição Federal, atribuindo à Justiça Eleitoral uma função que deve ser delegada a particulares, o que afronta o sistema da unicidade registral, onde é vedada a instituição de duplicidade de registros por aniquilar a garantia da segurança jurídica.
O artigo 236 da Carta Magna é claro ao afirmar que caberá aos particulares, por força da delegação, o exercício das funções de registro e de notas. Tais serviços são, obrigatoriamente, executados pelos oficiais de registro, aos quais compete conferir certeza, eficácia e segurança jurídica aos atos ou negócios da vida privada.
Os serviços notariais e de registro são de competência exclusiva do Poder Público, mas delegados constitucionalmente aos particulares. Assim, somente os cartórios de Registro é que podem desempenhar estas atividades, sendo fiscalizados pelo Poder Público, gozando de fé pública e conferindo segurança jurídica aos atos.
A função de praticar atos jurídicos que sejam qualificados como “registros públicos” não passa de uma particular espécie de serviço público que — por imperativo constitucional expresso — não poderá ser realizado diretamente pelo Estado ou mesmo por particulares quaisquer, como pessoas jurídicas de direito privado, por exemplo.
Ademais, em virtude da capilaridade do Registro Civil das Pessoas Naturais, o qual está presente em todos os municípios e distritos do território nacional, a coleta e a emissão da documentação de identificação civil poderá ser feita diretamente pelo serviço de registro civil, não gerando maiores ônus e custos ao ente público federativo e possibilitando maior segurança jurídica em virtude da fé pública delegada (artigo 44, § 2º da Lei 8.935/1994).
Do exposto, entendemos que o Projeto de Lei 1.775 de 2015 deve ser alvo de uma análise muito cautelosa por parte do Poder Legislativo, uma vez que, da forma em que foi apresentado, não só representa um retrocesso ao sistema de registros brasileiro, como também afronta diversos dispositivos constitucionais e legais.
Era o que cabia pontuar.
Autores: Rachel Leticia Curcio Ximenes é sócia no Celso Cordeiro de Almeida e Silva & Marco Aurélio de Carvalho Advogados.
Tiago de Lima Almeida é sócio do Celso Cordeiro e Marco Aurélio de Carvalho Advogados.
Marco Aurélio de Carvalho é sócio do Celso Cordeiro e Marco Aurélio de Carvalho Advogados.