Autores: Rafael Mott Farah e Marcel Höfling (*)
O Projeto de Lei 8.221/17, que tramita na Câmara dos Deputados, analisa a pertinência de alteração da redação do artigo 19, § 1º, da Lei n° 12.965/14, denominado “Marco Civil da Internet”. A proposição sugere a alteração no dispositivo legal que trata das ordens judiciais de retirada de conteúdos da internet. A ideia é que as remoções cibernéticas possam ocorrer “independente da indicação de URL” (“UniformResourceLocator”) do material considerado como infringente.
No contexto do debate estão as milhares de demandas judiciais que visam a proteger os direitos da personalidade pela remoção de vídeos, notícias, posts, tweets possivelmente ofensivos veiculados em blogs, aplicações de compartilhamento, redes sociais ou quaisquer outras páginas da internet. A questão é saber sobre a coerência de se constar na literalidade da lei que os provedores de aplicação da internet devem ser obrigados a proceder com a remoção ainda que a parte interessada não tenha especificado o conteúdo que entende ofensivo pela indicação do URL.
Para o autor do projeto, o deputado federal Francisco Floriano (DEM-RJ), a modificação legislativa se justificaria como forma de impedir que os provedores aleguem a falta de indicação do URL para justificar o descumprimento de ordens judiciais de remoção. Defende que a informação seria desnecessária diante da possibilidade de identificação inequívoca por outros meios, bem como que “[e]sse é o entendimento que tem prevalecido nos tribunais”, com referência ao REsp 1.406.448/RJ e à APC. n° 20140020214346.
Aspectos Controvertidos do Projeto de Lei
Os provedores de aplicação de internet e entidades especializadas em direito digital defendem a necessidade de indicação do URL como forma padronizada de localização de qualquer conteúdo na internet. Em outras palavras, o URL cumpriria da melhor forma possível a finalidade legal de “localização inequívoca do material” (art. 19, § 1º, da Lei nº 12.965/14).
A questão da dispensabilidade de indicação do URL está longe de ser matéria pacífica em nossos tribunais, ao contrário do que alega o deputado Francisco Floriano. O Superior Tribunal de Justiça possui precedentes que indicam a necessidade de indicação clara e específica do localizador URL para a validade do comando judicial de remoção, reconhecendo, ainda, sua indicação como um ônus imperativo imposto ao Autor.
O próprio REsp 1.406.448/RJ, citado para justificar projeto, expressamente condiciona, na realidade, a remoção do conteúdo “à indicação, pelo denunciante, do URL da página em que estiver inserido o respectivo post”. Vale dizer, o acórdão é expressamente contrário à ideia de retirada sem se apontar o URL em que se fundamenta o projeto de lei.
É certo que a indicação de tal informação tem se apresentado como uma ferramenta bastante eficaz de individualização dos conteúdos ofensivos. Tanto para os provedores, como para juízes e usuários interessados na retirada, o URL se revela uma forma objetiva de se apurar o cumprimento ou não das obrigações de fazer, o que, inclusive, permite ao provedor o pleno exercício da garantia constitucional da ampla defesa (art. 5º, LV, da CF).
O autor do projeto, ainda que afirme que a localização inequívoca possa ocorrer de outras formas, não especifica como isso ocorreria na prática. Os exemplos da jurisprudência, na realidade, revelam pretensões de remoção genérica, como os pedidos de supressão do “nome” do demandante dos mecanismos de busca da internet (e.g. Google Search, Bing, Yahoo, Ask).
Os riscos de ordens de remoção genéricas são apontados como problemas de pedidos formulados sem especificação do URL. A remoção de resultados de pesquisa com base no nome de uma pessoa pode prejudicar o acesso à informação de inúmeros homônimos e a retirada inespecífica transfere indevidamente aos provedores de aplicação o ônus de localização do conteúdo, ferindo a inafastabilidade da tutela jurisdicional na análise, caso a caso, da coerência de cada pedido de remoção.
Muito embora o URL seja a melhor e mais segura forma de identificação de conteúdos na internet, faz-se aqui a ressalva sobre a possibilidade técnica de identificação de um conteúdo na internet através do chamado hash, que nada mais é do um identificador único de determinado arquivo. A utilização do hash como identificador, todavia, gera diversas dificuldades para a comprovação do cumprimento da ordem judicial. Isto se dá diante de dois fatos: em primeiro lugar, qualquer mínima alteração no código do material – ainda que não perceptível pela cognição humana – é capaz de gerar grandes alterações no código hash. Em segundo, temos que nem o juiz, nem a parte interessada serão capazes de confirmar o estrito cumprimento da ordem, uma vez que, a princípio, não possuem meios de aferir a localização exata dos conteúdos.
Há casos, contudo, em que não se é possível a indicação do URL para a remoção de determinados conteúdos (e.g. mensagens instantâneas, como o WhatsApp). Assim, cabe justamente ao Poder Judiciário analisar caso a caso, considerando as especificidades de cada aplicação e as peculiaridades de cada situação, de modo que a excepcionalidade da não indicação do URL não possa servir de paradigma para a alteração legislativa pretendida, especialmente ao se considerar que a Lei já não traz, explicitamente, a necessidade de indicação do URL.
Daí porque se pode afirmar que a indicação do URL pelo demandante está relacionada diretamente ao princípio da cooperação processual (arts. 5º, 6º e 7º, CPC). Sendo o ofendido o maior interessado na remoção e tendo perfeita capacidade especificar os conteúdos que entende infringentes, não há por que transferir tal tarefa àquele que cabe apenas cumprir a obrigação. Mais que isso, a indicação específica do conteúdo se consubstancia em um requisito de validade de ordens judiciais de remoção, que devem possuir objetos determinados ou determináveis (arts. 104, II e 185, CC), bem como ao princípio da adstrição (art. 492, CPC).
A alteração legislativa, pois, parece ser indesejada ao considerar a dispensabilidade de indicação de URL como paradigma da norma, sendo que, na realidade, essa é uma situação excepcional na identificação do conteúdo. A Lei, ao falar em “localização inequívoca”, já permite aos tribunais considerar as especificidades de cada tipo de aplicação e as exigências de cada caso. Espera-se, portanto, que as próximas etapas de tramitação do projeto passem a considerar todas essas complexidades que envolvem a “identificação clara e específica” de materiais infringentes na internet.
Autores: Rafael Mott Farah é advogado especialista em direito digital, pós-graduando em direito processual civil pela PUC-SP.
Marcel Höfling é advogado especialista em direito digital, mestrando em direito processual civil pela USP.