A redistribuição social, pelo ônus tributário que impõe, cria cada vez mais pressões sobre os governos, uma vez que esse mecanismo de redistribuição não foi projetado para uma economia na qual a maioria poderia ser constituída pelos sem-trabalho.
Carlos Ilich Santos Azambuja e Sônia Ilich
“Globalização não é um conceito sério. Nós, americanos, o inventamos para dissimular nossa política de entrada econômica nos outros países” (John Kenneth Galbraith, economista norte-americano, Folha de São Paulo de 3 de novembro de 1997)
Nos últimos dois séculos, desde a Revolução Industrial, o destino da classe operária, seu papel e lugar na História, sempre constituíram um dos temas centrais do pensamento social e da luta política. No início do século XXI, essa questão adquire particular profundidade, face às mudanças sociais e transformações tecnológicas.
Nesse sentido, surgem várias indagações quanto ao papel da classe operária. Em que sentido ela estaria evoluindo? Quais as mudanças que se operam em sua estrutura e no nível de suas funções de produção? Qual o lugar que lhe cabe nas transformações que os novos tempos trazem consigo? Como mudará o caráter do trabalho face às novas tecnologias e às modernas formas de organização do trabalho? As respostas às indagações acima e a outras que, certamente, surgirão, são eminentemente dinâmicas e não se esgotam. São mais um chamado à reflexão.
Nos Estados industrializados do Ocidente o número de operários diminui a cada ano, enquanto cresce o número de pessoas envolvidas no trabalho intelectual vinculadas a sistemas informatizados e no trabalho por conta própria, informal.
Segundo um bom número de renomados analistas e cientistas sociais, experts no assunto, a classe operária, como até aqui foi conhecida, tende a desaparecer nos próximos 20 a 30 anos, face ao avanço dos processos de automação e robotização da produção e dos serviços. O surgimento de computadores de quinta geração, dotados de intelecto artificial, a desregulamentação, flexibilização, terceirização e outras iniciativas do capital, vêm promovendo altas taxas de desemprego.
Hoje somos confrontados com uma realidade complexa: múltiplas classes e grupos que se desdobram em inúmeros papéis sociais, onde se é vítima e cúmplice, onde se é, simultaneamente, incluído e excluído e onde domina o receio do rebaixamento ameaçador. Uma sociedade onde o trabalho vem perdendo sua centralidade, dissolvendo, dessa forma, o próprio agente da mudança.
Frente a isso, um questionamento atormenta os ativistas do Movimento Operário: o que fazer com os esquemas tradicionais e com o conceito estratificado de que o proletariado é a única classe verdadeiramente revolucionária, caso ela venha a desaparecer? Certamente que, diante do novo, as teorias sobre o papel do proletariado terão que ser radicalmente repensadas, uma vez que parece impossível manter a concepção clássica, desenvolvida no século XIX, a respeito de sua missão histórica.
Ainda que ela não desapareça por completo, seu efetivo e importância e, por conseguinte, sua influência política na sociedade, certamente diminuirá em muito, enquanto a esfera do trabalho assalariado continuará se expandido. Isso modificará tanto o caráter do trabalho quanto o status dos trabalhadores.
Hoje, as atividades de tratamento da informação – os serviços – já são majoritárias e se desenvolvem muito mais velozmente que as atividades industriais. Com isso, a noção de “forças produtivas” caminha para tornar-se arcaica. É o setor de serviços que move a sociedade e quem “manda” no Estado é o mercado. A população marginalizada e a fome no mundo aumentam sem parar e o bem-estar social é coisa do passado.
No contexto atual de crise e de reestruturação capitalista – globalização – assistimos a paulatina substituição da produção pela informação e já se discute a tese de uma interpenetração complexa entre indústria e serviços, concepção e fabricação, ciência e experiência e, conseqüentemente, entre assalariados da produção (proletariado) e assalariados da concepção. Isso significa o surgimento da sociedade pós-industrial, onde a prioridade da ciência sobre a técnica e da técnica sobre a produção direta tornar-se-ia a lei de desenvolvimento das forças produtivas.
Nas modernas fábricas de automóveis, por exemplo, haverá um número cada vez maior de trabalhadores, muitos com cursos superiores, sentados diante de telas, de terminais de computadores, controlando a marcha do processo de produção, limitando, assim, o conceito de classe operária.
Essa diminuição relativa do número de operários não seria, no entanto, suficiente o bastante para reduzir a influência política que a classe operária exerce sobre a sociedade como um todo, caso sua coesão e consciência de classe fossem mantidas, o que não vem ocorrendo. A dinâmica do volume de trabalho na indústria, que vem sendo acompanhada de mudanças fundamentais na natureza desse mesmo trabalho, se traduz em diferenças salariais. Dessa forma, a unidade e a solidariedade de classe debilitam-se continuamente, levando a crise ao sindicalismo tradicional.
A eliminação de vagas de trabalho na última década ocorreu não apenas no setor automobilístico, mas também na construção civil, comércio e setor extrativo mineral. Enquanto isso, o número de funcionários da administração pública e pessoas envolvidas com o setor de serviços cresce sem parar.
Ao contrário do planejamento central, desacreditado e desmantelado no mundo socialista, o empresarial, no mundo atual, basicamente capitalista, nunca foi tão complexo e ambicioso, globalizando a Terra, fragmentando o tempo e reduzindo as distâncias e o tempo de giro do capital.
A nova realidade é uma assimetria maciça entre a mobilidade e organização internacional do capital, por um lado, e a dispersão e segmentação do trabalho, por outro. Isso não registra nenhum precedente histórico. O processo de globalização vem dispersando e contornando as resistências ao capitalismo. O efeito final dessas transformações parece ser o caminho seguro e pavimentado para o fim do proletariado tal como conhecido até hoje.
O trabalho se intelectualizou. O homem já não transforma e nem conforma objetos e sim observa as operações dos robôs através da tela de um computador. Programa e, caso necessário, repara e ajusta as máquinas que efetuam o trabalho manual com maior perfeição que o ser humano.
Segundo o economista francês Bertrand Giraud, “hoje um computador vence 99% dos jogadores de xadrez. Amanha, ele vencerá Kasparov (já venceu, aliás). Basta comparar o custo de criação de um programa, operação imediata e quase gratuita, com os custos para a formação de um grande mestre de xadrez”. Muitas profissões estarão mais ameaçadas pela Informática, Telemática e Robótica do que a de garçom de churrascaria, cujo emprego depende de seu serviço e de sua empatia com os clientes.
Pode-se afirmar que um país, mesmo com milhões de pessoas desempregadas, continuará a produzir tanto ou ainda mais do que produzia anteriormente. O que ainda permanece sem solução é como a sociedade irá organizar-se com essa multidão dos sem-trabalho.
A conseqüência mais visível é que tudo isso fará aumentar os chamados pagamentos de transferência a cargo do Estado: Previdência Social, Saúde e Educação.
Conforme o historiador Eric Hobsbawn assinalou em seu livro “Sobre História”, editado em 1997, hoje, como ocorre nos EUA, uma população agrícola da ordem de 3% dos habitantes do país produz comida suficiente não só para alimentar os outros 97% mas também uma fatia enorme da população mundial.
Considera Hobsbawn que uma transformação dessa ordem na estrutura ocupacional secular da humanidade tende a produzir conseqüências de longo alcance, uma vez que todo o sistema de valores do homem, desde a Idade da Pedra, foi baseado na necessidade do trabalho como fator essencial da existência humana.
Desde o final do Século XX, a revolução informacional caminha para consagrar o triunfo definitivo da informação sobre a produção, do saber científico sobre a habilidade e, por conseqüência, do produtor de informações sobre o produtor de serviços materiais. Nesse caso a maioria da população, não sendo mais necessária para a produção, de que ela se manterá? O que acontecerá com o mercado de massa, que se baseia nas compras, das quais a economia passou a depender cada vez mais?
A maioria teria que viver da transferência de recursos públicos, como pensões e outras formas de seguridade. Ou seja, por um mecanismo de redistribuição social.
Ora, a redistribuição social, pelo ônus tributário que impõe, cria cada vez mais pressões sobre os governos, uma vez que esse mecanismo de redistribuição não foi projetado para uma economia na qual a maioria poderia ser constituída pelos sem-trabalho. Ao contrário, foi construído para um período de pleno emprego e por ele sustentado.
Essa situação acarretará outros problemas, políticos e econômicos.
Qual Estado, hoje, estaria preparado para isso?
* * *
Carlos Ilich Santos Azambuja e Sônia Ilich são historiadores