Autor: Bruno Garutti (*)
Desde meados de 2012, após anos de crescimento do setor imobiliário no país[1], período midiaticamente conhecido como “boom imobiliário”, incorporadoras e construtoras depararam-se com o desaquecimento do setor da construção civil observado pela dificuldade da venda de unidades lançadas e aumento do estoque de imóveis.
O agravamento se deu no último trimestre de 2015, com a redução de novos lançamentos e o considerável aumento nas devoluções de unidades adquiridas “na planta” — em regime de Incorporação Imobiliária — pelos compradores[2], por diversos fatores, principalmente ligados a crise financeira interna que restringiu o crédito, elevou o desemprego e a inadimplência, abalando os níveis de confiança para investimento em todo país.
Diante do número de novas ações ajuizadas tendo como objeto a rescisão dos contratos de promessa de venda e compra e a devolução da integralidade dos valores pagos pelos compradores, que inundaram o Judiciário e impactaram de forma significativa as incorporadoras e construtoras, na tentativa de estabilizar e nortear as decisões judiciais a respeito do tema em primeira e segunda instâncias, foi editada a Súmula 543 pelo Superior Tribunal de Justiça, que assim dispôs:
“Na hipótese de resolução de contrato de promessa de compra e venda de imóvel submetido ao Código de Defesa do Consumidor, deve ocorrer a imediata restituição das parcelas pagas pelo promitente comprador – integralmente, em caso de culpa exclusiva do promitente vendedor/construtor, ou parcialmente, caso tenha sido o comprador quem deu causa ao desfazimento” (g.n.).
A Súmula 543 do STJ foi editada, principalmente, para suprir o vácuo normativo existente na Lei de Incorporação Imobiliária (Lei 4.591/64), à época da sua aprovação, verdadeiro marco jurídico no país, que, até ali, não dispunha de regramentos sólidos — existindo apenas o insuficiente Decreto 5.481/1928 — para regulamentar o surgimento dos condomínios horizontais. Contudo, referido diploma legal nada dispôs acerca dos efeitos da rescisão nos contratos estabelecidos.
Ressalta-se que a edição da referida súmula consolidou o entendimento que vinha sendo aplicado em diversos tribunais pátrios, bem como, a maioria das decisões do STJ admitiam que, nos casos de rescisão dos contratos de promessa de compra e venda de unidades imobiliárias que deram causa os compradores (adquirentes), caberia às vendedoras, a ser determinado pelo poder judiciário de forma específica em cada caso, a devolução das parcelas por eles pagas dentro de patamares estabelecidos entre 75% a 90% do valor total e atualizado recebido pela vendedora[3].
A par desta realidade econômica e jurídica dos últimos anos, principalmente após a edição da Súmula 543, pretendeu-se a realização de um acordo denominado Pacto para Aperfeiçoamento das Relações Negociais Entre Incorporadores e Consumidores, firmado em 24 de abril de 2016 entre o governo federal, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira das Incorporadoras, a Associação Brasileira dos Advogados de Direito Imobiliário, a Câmara Brasileira da Indústria da Construção e a Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário e Consumidores. A finalidade é reduzir litígios e impacto nos chamados distratos, extensivo aos demais estados da federação, atualmente suspenso para discussão junto aos órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.
Referido pacto, dentre outras estipulações, previu a possibilidade de incluir no instrumento contratual firmado entre o vendedor e o comprador, no caso de rescisão do instrumento particular por culpa do adquirente, cláusula em que conste, de forma alternativa, (i) multa fixa, em percentual nunca superior a 10% sobre o valor do imóvel objeto do contrato ou (ii) perda integral das arras, e de até 20% sobre o valor das parcelas já adimplidas.
De outro lado, em observância aos princípios e normas estatuídos na Lei 8.078/90, restou prevista a possibilidade de ser bilateralizada a cláusula que estipule encargos moratórios apenas ao comprador, no caso de impontualidade das suas obrigações, em desfavor do vendedor.
Assim, no caso de inadimplemento da vendedora, durante o período de tolerância de 180 dias, a mesma deverá pagar ao comprador o valor correspondente a 0,25% ao mês, sobre o montante das parcelas do preço de aquisição então pago. Após este período, ou seja, a partir do 181º dia, a vendedora se responsabilizará pelo pagamento de multa de 2% sobre o valor corrigido da prestação, além de juros de mora de 1% ao mês sobre a mesma base.
Considerando o posicionamento da jurisprudência e as discussões já institucionalizadas a respeito das repercussões econômicas dos chamados distratos, visando uma solução positivada da matéria, passou a tramitar no Senado Federal o PLS (Projeto de Lei do Senado) 774/2015. A proposta — de autoria do senador Romero Jucá e atualmente em análise na Comissão de Constituição e Justiça do Senado —, busca acrescentar o artigo 67-A à Lei 4.591/1964, o qual disporá especificamente sobre a devolução das prestações pagas pelo comprador em caso de desfazimento do contrato de promessa de compra e venda de imóveis pelo adquirente.
Nesse sentido, o próprio relatório do PLS 774/2015 explica sua motivação:
“A proposta em análise nasce em boa hora, para estabelecer regras mais claras em um dos contratos mais comuns em um país que testemunha milhares de novas construções. Nos últimos anos, com o reforço de programas nacionais de financiamento habitacional, o mercado imobiliário brasileiro se expandiu, e inúmeras famílias celebraram contratos de aquisição de imóveis “na planta” (ou seja, em regime de incorporação imobiliária). A legislação, contudo, não estava preparada para esse novo ambiente de negócios, o que tem gerado muitas incertezas no âmbito do Poder Judiciário.”(g.n.)
Observa-se, por oportuno, que o projeto de lei em referência possui uma dupla finalidade: (i) positivar o entendimento consolidado da jurisprudência do STJ e tribunais pátrios a respeito da matéria, visando resguardar os direitos estabelecidos pelo Código de Defesa do Consumidor aos adquirentes, nos casos em que os mesmos não tenham dado causa ao desfazimento do contrato, porém, em contrapartida, (ii) atualizar a legislação especial (Lei 4.591/64) a fim de contemplar nesta uma estabilidade jurídica com efeitos econômicos nos casos em que o adquirente rescindiu o contrato, cabendo ao mesmo o ressarcimento dos custos indiretos consubstanciados nas despesas operacionais imputadas a incorporadora para obter e manter o contrato inicialmente estabelecido, através de um percentual de retenção.
A par disso, o texto encaminhado à aprovação pela Comissão de Constituição de Justiça acrescenta o artigo 67-A à Lei 4.591/1964, com a seguinte redação:
“Art. 67-A. Em caso de desfazimento do contrato preliminar ou definitivo de alienação de imóvel de que trata esta Lei por culpa do adquirente mediante resilição ou resolução por inadimplemento da obrigação, ele fará jus à restituição das quantias pagas ao incorporador, delas deduzindo-se a pena convencional, que não poderá exceder a dez por cento das quantias pagas.
§ 1º Para efeito do caput deste artigo, entende-se por quantia pagas o valor desembolsado para pagamento do preço do imóvel, ainda que parte desse valor tenha sido pago, como remuneração, diretamente ao corretor contratado pelo alienante.
§ 2º Aplica-se à pena convencional o disposto no caput e no parágrafo único do art. 416 do Código Civil.
§ 3º Em função do período em que teve disponibilizada a unidade imobiliária, responderá o adquirente, em caso de resolução ou de resilição por sua culpa, pelas seguintes parcelas:
I – quantias correspondentes aos impostos reais incidentes sobre o imóvel;
II – cotas de condomínio e contribuições devidas a associação de moradores;
III – valor correspondente à fruição do imóvel, calculado de acordo com critério pactuado no contrato ou, na falta de estipulação, fixado pelo juiz em valor equivalente ao de aluguel de imóvel do mesmo padrão do objeto do contrato; e
IV – demais encargos incidentes sobre o imóvel e despesas previstas no contrato.
§ 4º Os débitos do adquirente, correspondentes às deduções de que trata este artigo, poderão ser pagos mediante compensação com a quantia a ser restituída.
§ 5º Após as deduções a que se refere o § 4º, caso haja valor remanescente a ser ressarcido a qualquer dos contratantes, o pagamento deverá ser realizado em parcela única, no prazo de cinco dias úteis.”
A crítica ao disposto no artigo em referência, conduzida por entidades de defesa de consumo, explicita que o consumidor está sendo colocado em desvantagem excessiva, o que, nem de longe, se pode presumir, leia-se:
“Somente as circunstâncias extraordinárias é que entram no conceito de onerosidade excessiva, dele não fazendo parte os acontecimentos decorrentes da álea normal do contrato. Por “álea normal” deve entender-se o risco previsto, que o contratante deve suportar, ou, se não previsto explicitamente no contrato, de ocorrência presumida, em face da peculiaridade da prestação ou do contrato.” [4]
Dessa forma, ao assinar um contrato de venda e compra de imóvel na planta com prazo de entrega futura para 24 a 36 meses, presume-se que o comprador tenha assumido dois riscos: primeiro, o de arcar com as condições contratuais de sinal e preço estipulados, consubstanciados em arras, parcelas mensais, semestrais, anuais e valores a título de comissão de corretagem; segundo, o de que, por motivos alheios a sua vontade, por exemplo, as condições desfavorecidas de mercado, em caso de não quitação do preço contratado na data de entrega do bem imóvel através de recursos próprios, o comprador esteja impossibilitado de obter o financiamento do saldo devedor junto a instituições financeiras.
É interessante observar que, quando da promulgação da Lei 8.078/90, restou vetado pelo Presidente da República o parágrafo primeiro do artigo 53[5], com o seguinte fundamento:
“Torna-se necessário dar disciplina mais adequada à resolução dos contratos de compra e venda, por inadimplência do comprador. A venda dos bens mediante pagamento em prestações acarreta diversos custos para o vendedor, que não foram contemplados na formulação do dispositivo. A restituição das prestações, monetariamente corrigidas, sem levar em conta esses aspectos, implica tratamento iníquo, de consequências imprevisíveis e danosas para os diversos setores da economia.”[6](g.n.)
Nesse sentido, o PLS 774/2015, após 26 anos desde a promulgação da Lei 8078/90, que vetou a disciplina da matéria no diploma legal acima exposto, retoma – por coincidência, em novo momento de crise econômica – a necessidade de atualizar a legislação especial – Lei 4.591/64 – a respeito das rescisões nos contratos de compra e venda de unidades imobiliárias na planta (em regime de incorporação imobiliária).
O texto prevê, de forma coadunada com o Código de Defesa do Consumidor e Legislação Civil em vigor, a hipótese de retenção pelo vendedor do valor de 10% das parcelas pagas, incluindo-se, além destas, as despesas com comissão de corretagem que tenham ficado a cargo do vendedor, bem como, a responsabilidade pelas verbas a título de impostos reais, taxa condominial – a nosso ver, desde que a rescisão tenha ocorrido após a data de instalação do condomínio edilício – e demais encargos incidentes sobre o imóvel e despesas previstas no contrato.
Portanto, pode-se concluir que o artigo 67-A se adequa ao entendimento jurisprudencial consolidado (Súmula 543) pelo Superior Tribunal de Justiça, no sentido de que, se de um lado estipula a vedação da perda total das prestações pagas pelo comprador no caso de resilição contratual por sua culpa — esta sim, vantagem exagerada atribuída ao vendedor em detrimento do comprador —, também obriga o último ao cumprimento da sua obrigação, que, no caso da compra de imóveis na planta, é o pagamento do preço na forma e modo acordados, sob pena de consequências financeiras, inexoravelmente suportadas pela própria construtora.
Autor: Bruno Garutti é advogado do escritório Carmona Maya, Martins e Medeiros Sociedade de Advogados.