Por Marcio Cruz Nunes de Carvalho
Leis ambientais existem há séculos, algumas relativas à saúde pública, planejamento urbano e indenizações. Essa intervenção pública na vida privada sempre foi frequente por meio da edição de normas, cuja necessidade tem estado relacionada a problemas de saúde pública, especialmente no século XIX. O planejamento é uma consequência dessa intervenção e teve vistas ao desenvolvimento econômico, militar e social, resultado de novas ocupações.
Do interesse no planejamento tem-se pensado nas leis baseadas em princípios morais, mas hoje não mais erigindo-se uma hierarquia entre preceitos legais e morais, mas sim interação fluida entre eles. Temos que ver nosso mundo por uma ótica de diversidade plural, considerando os aspectos da religião, política e sistemas econômicos.
O professor, jurista e doutrinador britânico David Hughes (Environmental Law, 4th edition, Exford, p. 18-19) classifica o contexto da moralidade e normas legais como: antropocentrismo, antropocentrismo esclarecido ou prudente, antropocentrismo amplo, não-antropocêntrico, pró bem estar animal, biocentrismo, ecocentrismo, ecologia extremada (anthropocentrism, ie human-centred, enlightened anthropocentris, extended anthropocentrism, non-anthropocentric individualism, concern for animal welfare, biocentrism, ecocentrism, deep ecology).
Segundo Hughes, a corrente do antropocentrismo é a que possui o menor viés moral em cotejo às demais correntes. Apresentam-se os seus seguidores como liberais da economia, cujo desejo de crescimento se ajusta à ideia de livre mercado. O mundo serviria exclusivamente ao benefício humano. Antropocentrismo esclarecido, por sua vez, aceita certos degraus no conservacionismo e gerenciamento ambiental, baseado em noções de desenvolvimento sustentável.
No biocentrismo o conservacionismo não está ligado a qualquer crescimento econômico, sem qualquer distinção moral entre seres humanos e o resto do ecossistema. Para essa corrente, plantas e animais também seriam detentores de direitos, relativamente, de regra, aos interesses coletivos de toda a biota, com prevalência sobre os interesses do indivíduo.
Com a ecologia extremada, Hughes aponta ser a mais holística das correntes preservacionistas, avessa aos fundamentos para o crescimento econômico a partir da utilização das reservas ambientais. Busca prestigiar a preservação dos recursos naturais e redução das populações humanas.
Não é objeto desse artigo, contudo, o estudo das diversas classificações propostas doutrinariamente, mas especificamente abordar se o aparente conflito entre direitos individuais e transindividuais relativos ao meio ambiente, objeto de termo de ajustamento de conduta, e segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, teria um viés onde prevalecesse estritamente a feição privatística das relações civis, a fim de prestigiarem-se direitos individuais consumeristas em preterição de interesses coletivos transindividuais, mesmo diante de uma moral ambiental já inserta em norma legal.
Isso porque a questão moral, ainda que desejável, não é automaticamente convertida em texto de lei. Para que isso ocorra é necessário existir um acordo social, político e científico; uma justificativa econômica para tomada de ação; corpo social e político com sentimento de que ações devessem iniciar.
A Constituição Federal tem incorporada em seu texto o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é bem de uso comum do povo, essencial à qualidade de vida (artigo 225). Trouxe o conceito de desenvolvimento sustentável e a concepção do conservacionismo, erigindo os recursos naturais como necessários ao desenvolvimento dos povos e de forma sustentada para preservação das futuras gerações.
No plano do Direito Internacional, a Declaração Universal de Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas em 1948, em vigor desde 1953, possui inúmeros protocolos que a emendaram, e seu artigo 1º (primeiro protocolo) aponta que cada pessoa natural ou legal tem o direito de desfrutar pacificamente de suas posses, e ninguém pode ser privado das mesmas, à exceção do interesse público, e sujeito às condições determinadas em lei e segundo os princípios de direito internacional.
O direito de propriedade não é mais visto como direito fundamental absoluto. Sofre restrição, desde que protegido seu núcleo essencial. Deve, então, a propriedade cumprir uma função social (artigo 5º, XXII e XXIII).
A partir de tais premissas, o objeto de estudo se refere a uma série de decisões do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios que tem reiteradamente enfrentado o tema que ora se propõe debater, consistente no confronto existente entre direitos individuais a uma fração de terras dentro de uma gleba maior, objeto de parcelamento urbano do solo, em colidência com direitos coletivos de natureza transindividual.
A gleba parcelada, de natureza privada e questão fundiária resolvida, com dominialidade legítima, foi licenciada por órgão federal — Ibama — mas com projeto urbanístico aprovado por órgãos distritais, sendo a base obrigacional um termo de ajustamento de conduta assinado por proprietário, adquirentes de frações, Ministério Público Federal e Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, órgão ambiental federal e local, sendo seu texto homologado pela Justiça Federal no Distrito Federal.
Mudanças no desenho original do projeto urbanístico, de modo a atender ao termo de ajustamento de conduta, implicaram na participação de todos envolvidos com alterações de lotes representativos de frações ideais. A adaptação dos proprietários e adquirentes de tais frações nessa dinâmica de ajustes tem sido tratada pelo Tribunal local como sendo obrigações de ordem privada entre adquirente e vendedor, inseridas no termo de ajustamento de conduta, a despeito de ser o mesmo objeto de tratamento de direitos coletivos e relativo ao licenciamento ambiental do empreendimento. Exatamente por essa ótica privatística as decisões são de afastamento da competência da Justiça Federal.
Conceituar competência, classificá-la e resolver a questão a partir de seus institutos é questão ancilar e refere-se ao caso concreto como uma solução. Aqui é discussão maior enfrentar o núcleo da questão e desnudá-lo, para que não fique ocultado no apontado conflito de competência, aguardando enfrentamento pelo Superior Tribunal de Justiça.
Interessante notar que esse conflito de competência entre Justiça Comum e Justiça Federal traz em seu seio amplitude muito mais profunda, que deita raízes em corrente tratada na classificação moral proposta por Hughes no início desse texto. A visão antropocêntrica citada por Hughes enxerga a lei geral da propriedade de terras como direito de o proprietário usá-la e desfrutá-la como melhor lhe aprouver. São os proprietários, nessa ótica, que lhe dão destino e definem quem pode ou não nelas ingressar.
Por outro lado, o conservacionismo preceitua o uso das terras e seus recursos naturais e não a mera preservação, desde que de forma sustentada, quando o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado prepondera, retirando do direito de propriedade o caráter absoluto.
De dois modos as autoridades podem, então, implementar o conservacionismo, ou adquirindo as propriedades de interesse para a sua promoção, ou se valendo dos proprietários como peça-chave na conservação do meio ambiente, natural ou urbanístico, segundo Colin T. Reid (Nature Conservation Law, W. Green, p. 21). A interação das autoridades pela conservação do meio ambiente por meio dos proprietários ocorre com o licenciamento ambiental, especialmente, os potenciais termos de ajustamento de conduta que trazem diversas obrigações visando a recuperação de áreas degradadas, o estudo do impacto ambiental e o estudo do impacto de vizinhança, o reflorestamento, aflorestamento e etc.
À evidência que educação ambiental e a participação dos proprietários de terras é essencial para os propósitos constitucionais de proteção ambiental.
Daí concluírmos não ser possível dissecar qualquer termo de ajustamento de conduta para dele extrair obrigações estritamente privatísticas e divorciadas do texto maior de natureza ambiental delimitada por direitos coletivos. Essa ordem de direitos regula as restrições aos direitos individuais e afasta uma visão puramente antropocêntrica, onde o homem teria direitos absolutos à propriedade e dela poderia dar a utilidade econômica ainda que em detrimento de outros direitos, mesmo que transindividuais.
Marcio Cruz Nunes de Carvalho é advogado, membro efetivo do Instituto dos Advogados do Distrito Federal, professor de Direito Processual Civil no UniCEUB, pós graduado em Direito Processual Civil pelo UniCEUB e Diplome in International Environmental Law pelo Instituto das Nações Unidas de Pesquisa.