Autor: Lúcio Delfino (*)
Previstas sobretudo entre os artigos 347 e 353, na Parte Especial, Livro I (Do Processo de Conhecimento e do Cumprimento de Sentença), Título I (Do Procedimento Comum), Capítulo IX (Das Providências Preliminares e do Saneamento), do CPC-2015, as providências preliminares aprovisionam o juiz com medidas a serem possivelmente tomadas depois de decorrido o prazo para contestação.
Seu escopo axial volta-se ao encerramento e/ou aprimoramento da fase postulatória, à evolução do saneador [1] e preparação do processo para a fase decisória. Não por outra razão a boa doutrina advoga que as providências preliminares situam-se na fase ordinatória, momento no qual o juiz analisa o conteúdo da(s) resposta(s) apresentada(s) pelo réu e, de forma mais ampla, examina o próprio comportamento dele, verificando aquilo que é necessário para apreciar e resolver o litígio [2] e, mormente, assegura o predomínio do princípio do contraditório como garantia de influência e não surpresa.[3]
Parcela dessas providências preliminares encontra-se substancializada nas três seções que compõem o aludido Capítulo IX, cada qual com ramificações e particularidades próprias. Superado o prazo para contestação (artigo 347), resumem-se: i) na determinação judicial para que o autor especifique provas, ausente a defesa e não caracterizado o efeito material da revelia (artigo 348); ii) na determinação judicial para que o autor se manifeste, mediante réplica, com a possibilidade de produção de provas, sempre que o réu alegar as preliminares de contestação previstas no artigo 337 (artigo 351); iii) na determinação judicial para que o autor apresente réplica, caso o réu alegue em contestação fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito arguido na petição inicial (defesa substancial indireta ou exceções de direito material), assegurada a produção de provas (artigo 350); e iv) na correção de irregularidades ou vícios sanáveis (artigo 352).
Há, além delas, algumas outras espraiadas ao longo do CPC-2015 (exemplos: artigos 343, §1º, 343, §6º, 427, parágrafo único, artigo 433, etc.), cuja identificação depende justamente da compreensão do que representam as denominadas providências preliminares — atos que, determinados pelo juiz e tomados ou não pelas partes e eventuais terceiros, tornarão o pedido do autor e, se caso, o pedido formulado pelo réu, aptos para julgamento, tudo em observância ao devido processo legal. [4]
Também não se pode deixar de fazer referência a dois dispositivos, igualmente presentes no do Capítulo IX, os quais regulamentam questões afetas ao presente estudo, embora não sejam em si providências preliminares: i) o direito de o réu revel produzir provas a fim de se contrapor às alegações do autor (artigo 349); e ii) a possibilidade de julgamento conforme o estado do processo (julgamento de extinção, de antecipação do mérito e de antecipação parcial do mérito), observadas as disposições seguintes (artigo 353).
Abaixo, as particularidades mais relevantes envolvendo as providências preliminares:
i) Segundo o CPC-2015, findo o prazo para contestação, o juiz adotará, conforme o caso, as providências preliminares (artigo 347), sempre acompanhadas de adequada fundamentação (artigo 489, § 1º), indispensável para esclarecimento e orientação das partes.
ii) Diversamente do que dispunha o CPC-1973, não há mais referência à expressão resposta, presente no dispositivo correspondente ao artigo 344 do CPC-2015 (artigo 323 do CPC 1973), aquele que, por sua generalidade, abarca, além da própria contestação, outras posturas ativas a disposição do autor (exceções e reconvenção). A mudança talvez se explique pela simplificação procedimental, uma das legendas do CPC-2015, que culminou, entre outras alterações, na concentração de pedidos envolvendo exceção de incompetência e reconvenção na própria peça contestatória. A despeito disso, melhor seria seguir a orientação segura do CPC-1973, porquanto o novo ordenamento processual não eliminou, e nem poderia, a possibilidade de o réu valer-se de estratégias que extravasam a esfera da contestação propriamente dita, algo que inexoravelmente implicará a tomada de específicas providências preliminares.
iii) Especificamente no que tange às providências preliminares, e já considerando, como apregoado alhures, a previsão legal de posturas ativas que podem ser adotadas pelo réu, mas que extrapolam o previsto entre os artigos 347 e 353, esclareça-se que, dentro dos 15 dias previstos para responder (contados segundo dispõe o artigo 335), tem ele as seguintes alternativas: a) apresentar contestação (preliminares de contestação e/ou defesas substanciais diretas e/ou indiretas); b) apresentar contestação e nela arguir a falsidade de algum documento apresentado pelo autor (artigo 430 e seguintes), cumulando ou não a matéria com outras defesas; c) apresentar contestação e nela aduzir questão prejudicial (artigo 503, §1º); d) apresentar contestação e nela suscitar, juntamente com as matérias de defesa ali delineadas, pretensão reconvencional (artigo 343); e) ofertar reconvenção independentemente de contestação (artigo 343, §6º); f) oferecer exceção de impedimento e/ou de suspeição (artigo 144 e seguintes); g) requerer o desmembramento do litisconsórcio, denunciar a lide ou chamar ao processo; h) permanecer inerte; e i) reconhecer o pedido.
iv) Se o réu limitar-se a exibir, em tempo e modo adequados, defesa direta, não haverá razão que justifique a intimação do autor para impugnar (réplica) os termos da contestação, cabendo ao juiz verificar, de pronto, a existência de irregularidades e/ou de vícios sanáveis e, se caso for, determinar a sua correção (artigo 352) para, ato contínuo, ou julgar o processo conforme o seu estado (extinção do processo; julgamento antecipado do mérito, parcial ou total — artigos 354, 355 e 356), ou proferir decisão de saneamento e de organização do processo (artigo 357).[5]
v) De outro lado, a contestação fundada em preliminares, e/ou em defesa substancial indireta, impõe ao juiz a tomada de providências para o fim de oportunizar ao autor, no prazo de 15 dias, a oferta da réplica,[6] sendo facultada a ambos os litigantes a produção de provas (artigos 350 e 351). Por detrás dessa determinação está, sem dúvida, o contraditório em sua feição substancial (artigo 10), que confere às partes o direito de participar da construção das decisões judiciais e de não serem surpreendidas por elas.
vi) Ressalte-se que não há referência no Capítulo IX sobre as possibilidades de o réu, no prazo para contestação, arguir a falsidade de algum documento, aduzir questão prejudicial, ou mesmo oferecer, independentemente de contestação, pretensão reconvencional, ofertar exceção de impedimento e/ou suspeição do juiz, requerer o desmembramento do litisconsórcio, a denunciação a lide ou o chamamento ao processo. No entanto, elas persistem e encontram regramento específico em setores variados do CPC-2015, cada qual suscitando providências próprias a serem adotadas, caso a caso, pelo magistrado.
vii) Em sendo a hipótese de inércia do réu, verificando o juiz a inocorrência do efeito material da revelia, será tomada providência preliminar destinada a determinar que o autor especifique as provas que pretenda produzir, se ainda não as tiver indicado. De todo modo, ao revel é sempre assegurado o direito de produzir provas para redarguir as alegações do autor, desde que se faça representar nos autos a tempo de praticar atos indispensáveis a essa produção (artigo 349). Entretanto, não se fazendo representar, e submetido à presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor (artigo 344), o revel provavelmente sujeitar-se-á ao julgamento antecipado do mérito (CPC-2015, artigo 355, II), depois de verificados e supridos eventuais irregularidades e/ou vícios sanáveis (artigo 352).
viii) Havendo, por fim, julgamento com resolução de mérito mediante decisão que homologue o reconhecimento da procedência do pedido (artigo 487, III, “a”), as providências preliminares se mostrarão despiciendas.[7]
Nem é preciso demorar-se em apontar os benefícios de uma fase ordenatóriano âmbito procedimental. Isso é o óbvio ululante. O que talvez não seja tão evidente é que de nada adiantam as boas intenções do legislador se ausente motivação para torná-las realidade. Para ser mais claro: as vantagens oriundas da opção legislativa simplesmente evaporam caso a comodidade e a falta de zelo permaneçam como norte de atuação de muitos juízes (e também de advogados, que devem exigir o cumprimento da lei).
E no que toca ao tema abordado, a história é pródiga em demonstrar como a praxe forense pode demolir um regime processual positivado e substituí-lo por método de atuação utilitarista, cujos coloridos apresentam-se acinzentados: i) as previsões legais do CPC-1973 que impunham circunstâncias nas quais o autor devia ser intimado para ofertar a réplica eram desgraçadamente ignoradas, substituídas por uma prática, sem respaldo legal, que levava à automática intimação do autor em todo e qualquer caso para se manifestar sobre a contestação apresentada aos autos — a prática forense “adaptou” a réplica e a tornou obrigatória, com desperdício de tempo e energia das partes e do julgador (e isso vem ocorrendo ainda hoje, mesmo depois da publicação do CPC-2015); ii) também por mera comodidade era adotado, de canto a canto do país, o rotineiramente chamado “despacho de especificação de provas”, sempre que concluída a fase postulatória, manejado de forma robótica pelas secretarias judicias, em manifesta repulsa às regras processuais positivadas, significando isso, ao fim e ao cabo, um retardo considerável no trâmite processual (outrossim, a prática também insiste em permanecer);[8] iii) não raramente a fase saneadora só era colocada em prática ao final da atividade instrutória, pouco antes de se proferir a sentença (ou na própria sentença), ainda que as partes tenham suscitado preliminares e/ou indicado vícios processuais, tudo em abandono ao procedimento previsto em lei e aos seus benefícios mais elementares (algo igualmente corriqueiro atualmente).
Essas ocorrências indicadas acima não eram extraordinárias, praticadas aqui e ali de maneira fortuita, mas algo que se multiplicou em progressão geométrica, cresceu parasitariamente, fez metástases e prosperou a ponto de tornar letra morta, em termos gerais, importantes aspectos desse modo de operar o processo pretendido pelo legislador e cujo escopo atrela-se à organicidade, eficiência e contenção de custos.
Uma vez mais corre-se o risco de ficar-se a debater como mosca no visco da armadilha: lei e doutrina apontam como deve ser, mas a prática forense faz seus ajustes e segue rumo que se lhe apresente mais facilitado … Mas que pelo menos não alimente o leitor aquela sensação agridoce, que só recrudesce ainda mais a indiferença tão comum em nossos dias, a envolver, num primeiro contato com a realidade da lei, percepções positivas, porém inevitavelmente resultando, depois, num amargor persistente, a eliminar quase por completo o sabor inicial.
Que sirva a crítica então como advertência que emancipe a todos de impressões aderentes e anestesiantes, impregnadas mentalmente pela repetição maquinal imposta pela prática forense, a iludir e levar à crença de que se trabalha sem distorções, segundo a normalidade de um procedimento idealizado pelos representantes legítimos do povo. Sobretudo, que valha como firme incentivo à concretização sólida dessas medidas tão especiais e necessárias para o funcionamento ideal da atividade jurisdicional no Estado Democrático de Direito.[9]
Autor: Lúcio Delfino é advogado, pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP). Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro).