Publicidade dos atos é princípio motor a inspirar o sistema jurídico

Autor: Carlos Alberto Garcete (*)

 

O princípio constitucional da publicidade
A propósito do dever de transparência do Poder Judiciário em atos e julgamentos de seus órgãos, a Constituição da República assegura ao cidadão a garantia fundamental da publicidade de seus atos (artigo 5º, LX).

Na estrutura sistêmica da Constituição, o artigo 93, inciso IX, ainda preceitua que todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

A primeira tônica a ser iluminada está em que as disposições constitucionais supracitadas qualificam-se como “princípios”, de sorte que é primordial ao intérprete que, antes de incursionar-se no tema da publicidade dos atos do Poder Judiciário, atente-se para os conceitos propedêuticos acerca de “princípios” e de “regras”. Nesse enfoque, é possível alinhavar que princípios, em Humberto Ávila[1], são normas finalísticas que se destinam a orientar a interpretação de um sistema jurídico e, mais concretamente, do conteúdo colimado, o estado ideal das coisas a serem atingidas.

Estando delineado, pois, que a publicidade de atos do Poder Judiciário é “princípio” motor a inspirar o sistema jurídico, notadamente do Processo Penal Constitucional brasileiro, qualquer exceção a esse vetor deve estar acompanhada de devida fundamentação judicial, onde o juiz esclareça, por meio de raciocínio que pondere valores constitucionais sob jogo, em caso concreto, da prevalência do segredo, do sigilo, sobre a publicidade, no processo penal. Essa ponderação deve ser exercitada por meio de equação, a demonstrar [por a + b = segredo de justiça] o porquê da inacessibilidade pública a caso submetido ao Poder Judiciário.

Cabe anotar que há duas condições — cumulativas — para que a exceção à publicidade seja aplicada pelo Poder Judiciário em caso concreto: i) existência de lei (anterior) que contemple o caso em concreto; ii) situação que não cause prejuízo a interesse público à informação.

Como assinala Rogério Lauria Tucci[2], a publicidade se faz necessária no processo penal não só para garantir ao interessado na realização de ato processual a devida transparência de um iter procedimental escorreito de qualquer vício, mas para que a sociedade possa formar sua opinião sobre a retidão de órgãos judiciais.

Há de ter-se em conta que o Processo Penal hodierno precisa se livrar do resquício histórico que permeou o sistema inquisitivo — que, conforme Jacinto Nelson de Miranda Coutinho[3], tinha cunho sigiloso, no qual a gestão de provas é confiada ao juiz, que atuava secretamente, tratando o réu como objeto da investigação. Importante não perder de vista que o histórico Sistema Inquisitivo considerava o sistema de fórmulas processuais mero detalhe, como ficou bem registrado no Manual dos Inquisidores, de Nicolao Eymerico:

Es peculiar y nobilíssimo privilegio del tribunal de inquisicion que no estén los jueces obligados á seguir las reglas forenses, de suerte que la omision de los requisitos que en derecho se requieren no hace nulo el proceso, con tal que no falten las cosas esenciales para determinar la causa […][4].

No Sistema Acusatório, a contrario sensu, “forma é garantia do acusado”, entre as quais está a publicidade de todos os atos do processo e o controle da sociedade sobre o acesso público aos autos e de todas as decisões judiciais exaradas pelo juiz competente. Luigi Ferrajoli conceitua, em linhas gerais, a estrutura do sistema acusatório:

[…] pode-se chamar acusatório todo sistema processual que tem o juiz como um sujeito passivo rigidamente separado das partes e o julgamento como um debate paritário, iniciado pela acusação, à qual compete o ônus da prova, desenvolvida com a defesa mediante um contraditório público e oral e solucionado pelo juiz […][5]

Portanto, a premissa que se preconiza ao princípio da publicidade é que o processo penal brasileiro segue, na atualidade, o modelo acusatório, de alto comprometimento constitucional, nomeadamente com os direitos e garantias fundamentais, de sorte que os operadores do Direito que atuam na persecução criminal devem ter em mente que a estrutura do procedimento investigatório e do processo judicial demandam que seus atos se inspirem e se norteiem pelos conceitos (antes vistos) de princípios e sobre como estes influenciam um sistema jurídico.

Classificação da publicidade dos atos processuais
Há de trazer-se à tona a classificação de publicidade apresentada por Tucci[6], para melhor compreensão do tema: a) publicidade ativa: quando os atos de processo tornam-se involuntariamente conhecidos pela sociedade; b) publicidade passiva: quando os atos de processo tornam-se conhecidos por iniciativa da própria sociedade; c) publicidade imediata: quando o conhecimento de atos do processo é franqueada pelos juízes livremente aos cidadãos; d) publicidade mediata: quando o acesso ao processo se dá por meio de certidões, cópias, mass media (imprensa) etc.; e) publicidade absoluta ou externa: quando todos os atos de processo são acessíveis ao público; f) publicidade restrita ou interna: quando o acesso aos atos de processo é exclusiva às pessoas diretamente interessadas no processo e aos seus procuradores.

Lamentavelmente, a questão de segredo de justiça (publicidade restrita ou interna), sob fundamento de existência de preservação de interesse público, sempre contou, e conta, com alta carga de subjetividade inserta em decisões que a concedem, dada a margem de discricionariedade aplicada pelos juízes em contraposição ao princípio constitucional da publicidade. Ocorre que a redação atual do inciso IX do artigo 93 da CF (com a redação da EC 45) é enfática ao pontuar que todos todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à informação.

O atual texto está sulcado em duas garantias constitucionais proporcionadas ao cidadão: i) obrigatoriedade de julgamentos públicos; ii) obrigatoriedade de todas as decisões judiciais conterem fundamentação. Aliás, não há como ser diferente em um país que se rege pelo princípio do Estado Democrático de Direito e que almeja alicerçar seu Direito Processual Penal no precitado Sistema Acusatório. À sabendas, em ambientes democráticos, ou que colimem sê-lo, todas as decisões de autoridades devem ser públicas; não há espaço para atos secretos (típicos do sistema inquisitório) e, tampouco, praticados à margem do conhecimento do povo. Bobbio (2000), ao definir democracia, considera-a como sendo o “poder em público”[7].

O sigilo no processo criminal
O interesse público é aquele da coletividade, pela coletividade, e não para evitar o conhecimento público da coletividade. Por corolário, em linha principiológica, a restrição à informação pública deve ser a “exceção da exceção”, e não deve causar prejuízo ao interesse público à informação.

A publicidade de atos processuais é, em Vicente Greco Filho[8], a garantia de outras garantias, inclusive da reta aplicação da lei. Geraldo Prado[9] adscreve que, pela publicidade, cidadãos podem controlar, de forma consentânea, o cumprimento da exigência de respeito aos direitos básicos, além da moralidade e da impessoalidade da ação estatal.

Nesse viés democrático, a CF de 1988[10] introduz o direito à liberdade de imprensa, a garantir a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo, sem qualquer tipo de restrição.

Neste tanto, leva-se a cabo a práxis censurável de estabelecer-se “segredos de justiça” em situações incabíveis, como processos que envolvam pessoas públicas e autoridades, o que denota a idéia de que estes têm direito a preservar seus interesses, enquanto que o cidadão em geral não goza da mesma prerrogativa na Justiça. O “processo cidadão” não distingue a publicidade de atos do procedimento pelas partes, pela classe social, pela profissão, por se tratar de pessoa conhecida por redes sociais e pela imprensa, pois o sigilo só deve ocorrer em hipóteses previstas na lei.

Mutatis mutandi, é de concluir-se que, desde o advento da Emenda Constitucional 45/2004, magistrados não mais têm discricionariedade para cunhar o selo de “segredo de justiça” em qualquer processo, a seu talante, ou a requerimento de interessado, como ocorre, verbi gratia, quando seja parte alguma autoridade — de qualquer um dos Poderes, dos tribunais de contas e do Ministério Público — ou personalidade de conhecimento comum da população.

Entra em cena o princípio da proporcionalidade (ou da ponderação), que, consoante Canotilho e Moreira, veda, nomeadamente, as restrições desnecessárias, inaptas ou excessivas de direitos fundamentais. Os direitos fundamentais só podem ser restringidos quando tal se torne indispensável e, no mínimo, necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos[11].

Vale lembrar que o artigo 792 do Código de Processo Penal enuncia que as audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra, públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e hora certos, ou previamente designados. E a exceção está disposta no parágrafo primeiro do mesmo artigo, quando “da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem”.

No âmbito jurisprudencial, o Supremo Tribunal Federal tem proferido várias decisões compatíveis com essa nova visão de respeito ao princípio da publicidade como regra nos processos judiciais. Veja que, até mesmo em casos de acordos de delação premiada, que, nos termos do artigo 5º, inciso II, e artigo 7º da Lei 12.850/2013, prevêem algumas hipóteses de segredos de justiça, a referida corte tem mitigado tal restrição e prestigiado o amplo acesso ao processo nos chamados maxiprocessos (Petição 7.003/2017).

O sigilo no inquérito policial
A vetusta doutrina acerca da questão de acesso ao inquérito policial preconiza que referido procedimento preliminar goza, por natureza, de caráter sigiloso — não submetido, assim, à publicidade aplicada ao processo penal — porque teria caráter inquisitório, o que, a nosso sentir, parece encontrar guarida em interpretações que antecedem à Constituição de 1988, pois o conteúdo sistemático do texto constitucional sobre direitos e garantias fundamentais é indubitável acerca da publicidade de atos da Administração Pública.

Acrescente-se que entendimento deste jaez parte da premissa de que, no inquérito policial, o modelo ainda é inquisitório porque seria conduzido diretamente pela autoridade investigante. Ocorre que, ontologicamente, o sistema inquisitório nada tem a ver com o fato de a investigação ser conduzida diretamente pela autoridade que coleta os elementos informativos, e sim com um “modelo histórico”, secreto, violento, sem compromisso com a forma, onde o investigado era objeto, e não sujeito de direitos. Atualmente, a investigação preliminar brasileira é democrática e presidida por autoridade que só desempenha tal função, sempre sob o controle do juiz, que garante todos os direitos do investigado (CF, artigo 5º, XXXV).

Assim, é chegada a hora de refletir-se com mais profundidade sobre essa equivocada visão de que o inquérito policial é inquisitivo. O sistema de persecução penal atual conta com a investigação exercida pela autoridade policial (Lei Federal 12.830/2013), a contar o Ministério Público como titular da ação penal pública, e o Estado-juiz como garantidor dos direitos e garantias fundamentais e responsável pelo julgamento da ação penal. Portanto, no âmbito da investigação convencional, por meio de inquérito policial, o princípio da publicidade deve servir como bússola orientadora da Polícia Judiciária, a partir de interpretação conforme a Constituição dos termos do artigo 20 do CPP, segundo o qual a autoridade assegurará, no inquérito, o sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade.

É claro que a autoridade investigante deve impulsionar a investigação preliminar com a cautela necessária a não tornar inócuo todo o trabalho desenvolvido (artigo 20), porém essa dosagem deve ocorrer na exata quantidade ao esclarecimento do que se investiga e ao respeito dos direitos do investigado e de seu defensor, tal como garantido pelo artigo 7º, inciso XIV, da Lei 8.906/1994 (EOAB) e Súmula 14 do STF. Isso porque, conforme destacou o (então) ministro Cezar Peluso, do STF, no julgamento do HC 88.190, há diligências que devem ser sigilosas, sob risco de comprometimento do bom sucesso da investigação, mas não se deve descurar que a posterior formalização documental desse resultado não pode jamais ser subtraída do investigado e de seu defensor, à luz da CR, sobretudo ante sua garantia de ampla defesa e contraditório, ainda que diferido.

O sigilo no procedimento investigatório criminal do Ministério Público
Com o julgamento do RE 593.727, em 14/5/2015, no Plenário do STF, em sede de repercussão geral, a Corte Constitucional reconheceu, por maioria de votos, a legitimidade do Ministério Público para promover, por autoridade própria, investigações de natureza penal e fixou parâmetros para atuação do parquet.

No âmbito funcional dos órgãos de execução do Ministério Público, as investigações desenvolvidas se orientavam por regulamento próprio, qual seja a Resolução 13, do Conselho Nacional do Ministério Público, cujo artigo 13 determinava que os atos e peças eram públicos, salvo disposição “legal” em contrário, ou por razões de interesse público, ou por conveniência da investigação. O artigo 14 da mesma Resolução especificava a exceção da publicidade quando a elucidação do fato ou interesse público exigir, garantida ao investigado a obtenção, por cópia autenticada, de depoimento que tenha prestado e dos atos de que tenha, pessoalmente, participado. Atualmente, a Resolução 13 do CNMP está expressamente revogada pela Resolução 181, de 7/8/2017, sendo que seu artigo 15 contempla idênticas disposições.

Por corolário, não há mais espaço para decisões ministeriais lacônicas, vazias de conteúdo a explicitar a razão da quebra da publicidade, visto que a exceção que caminha para o sigilo de uma investigação deve sempre vir acompanhada de decisão assaz convincente.

 

 

 

Autor: Carlos Alberto Garcete  é doutor em Direito Processual Penal pela PUC-SP. Mestre em Direito Constitucional e Teoria Geral do Estado pela PUC-RJ. Professor de Direito Processual Penal da Escola Superior da Magistratura de Mato Grosso do Sul. Juiz de Direito da 1ª Vara do Tribunal do Júri de Campo Grande(MS).


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