João Gaspar Rodrigues (**)
1- Introdução
A noção de tipo, como pura descrição objetiva, desprovida de valoração, deve-se a Beling (Die Lehre von Verbrechen, 1906). A dogmática alemã a partir de Beling criou um sistema tripartido na análise da infração penal: fato, ilicitude e culpabilidade. Neste sistema o fato foi considerado numa perspectiva meramente naturalística, causal; a ilicitude acresce, sobrepôs-se ao fato material, aceitando-se a plena separação do fato da sua valoração. E a ambas se ajunta a culpabilidade. O completo isolamento de cada um destes elementos relativamente aos demais foi levado às extremas consequências.
Beling ao criar a teoria da tipicidade engendrou o fato típico como apenas o fato exterior, objetivo, independentemente da sua valoração. O fato objetivo enquanto formalmente descrito pela lei incriminadora seria um fato típico e a tipicidade, então, a conformidade de um fato exterior à descrição legal que forma o tipo legal de crime como fato exterior.
À época, representou um avanço enorme para a dogmática penal. Atualmente, com a evolução da concepção inicial, passou-se a exigir uma concepção material que vê no tipo uma dupla ordem de valoração. A primeira consiste no juízo de desvalor ético-social que está na origem da própria elaboração do tipo. A segunda está na carga valorativa contida no tipo, que permite a este último desempenhar importante função seletiva sobre as mais variadas formas de comportamento humano, com isso estabelecendo a grande linha divisória entre o que é permitido e o que não o é, na esfera do direito penal (Assis Toledo, “Princípios…”, p. 127).
2- Tipo formal e tipo material
O tipo de Beling tinha uma significação puramente formal, era meramente seletivo, não possibilitando um juízo de valor sobre a conduta que apresentasse seus elementos. O tipo material, que se quer atualmente, prega que o comportamento, para ser crime, precisa ser típico, ajustando-se perfeitamente ao tipo legal. Mas além disso, para se falar efetivamente em tipicidade (subsunção), a conduta precisa ser, a um só tempo, materialmente lesiva a bens jurídicos ou ética e socialmente reprovável.
Nenhum tipo penal é instituído pela lei para existir por si mesmo, sem um sentido finalístico definido. A criação de tipos em direito penal é determinada pelo princípio da imprescindibilidade da existência do tipo incriminador como meio de proteger certos bens jurídicos essenciais. Tarefa em que está empenhado todo o ordenamento jurídico. Nesse ponto vislumbra-se o caráter subsidiário do direito penal: onde a proteção de outros ramos do direito possa estar ausente, falhar ou revelar-se insuficiente e sendo a lesão do bem jurídico tutelado de certa gravidade, aí estende-se o manto protetor penal, como última instância formal de controle. Nada mais além disso (nec plus ultra).
Rescende vivamente, portanto, o caráter limitado do direito penal, sob duas perspectivas: 1- a subsidiariedade de sua proteção a bens jurídicos; 2- a sua intervenção condicionada à gravidade ou importância da lesão, real ou potencial. Desse modo, certas ações, que causem danos desprezíveis, mesmo potencialmente, ao bem jurídico tutelado, devem considerar-se desde logo, em uma concepção material do tipo, não abrangidas pelo tipo legal de crime (Assis Toledo, “Princípios…”, p. 14).
Os efeitos decorrentes do reconhecimento do tipo material são evidentes no que diz respeito ao juízo de atipicidade, como anota Assis Toledo: “Se considerarmos o tipo não como simples modelo orientador, ou diretivo, mas como portador de sentido, ou seja, como expressão de danosidade social e de periculosidade social da conduta descrita, ampliar-se-á consideravelmente esse poder de decisão a nível do juízo de atipicidade, fato que conduz a efeitos práticos tão evidentes que quase não precisariam ser demonstrados. Não será demasiado, contudo, salientar que, se o fenômeno da subsunção (= sotoposição de uma conduta real a um tipo legal) estiver subordinado a uma concepção material do tipo, não bastará, para afirmação da tipicidade, a mera possibilidade de justaposição, ou de coincidência formal, entre o comportamento da vida real e o tipo legal” (ob. cit., p. 130).
3- O porte de pequena quantidade de droga e o princípio da insignificância
A conduta de portar pequena quantidade de substância entorpecente, embora formalmente se amolde ao tipo penal, não apresenta nenhuma relevância material. Assim, afasta-se liminarmente a tipicidade penal porque em verdade o bem jurídico não chegou a ser lesado. Enfim, a insignificância da ofensa afasta a tipicidade. O direito penal não se ocupa de bagatelas. De minimus non curat pretor.
Por isso não se pode considerar como típica a conduta de portar ínfima quantidade de substância entorpecente sem a indispensável presença do perigo comum, que vem a ser, precisamente, o elemento necessário para que haja a consumação delituosa. O enchimento das condições legais que tipificam o delito não é puramente lógico-formal, mas sim reajustam à situação concreta onde o ínfimo não constitui ofensa penal. Há, inclusive, outras considerações afazer, como a razoabilidade, o princípio da intervenção mínima do direito penal e da proporcionalidade da pena em relação à gravidade do crime.
O princípio da insignificância foi formulado em 1964 por Claus Roxin que propôs a interpretação restritiva aos tipos penais com a exclusão da conduta do tipo a partir da insignificante importância das lesões ou danos aos interesses sociais. Reconhecia Roxin que a insignificância não era característica do tipo delitivo mas um auxiliar interpretativo para restringir o teor literal do tipo formal, acomodando-o a condutas socialmente admissíveis pela ínfima lesão aos bens tutelados. Ao lado do princípio da insignificância foi introduzido por Welzel o princípio da adequação social em que a conduta formalmente inserida na descrição do tipo, é materialmente atípica, se se situar entre os comportamentos socialmente permitidos. A ação socialmente adequada está desde o início excluída do tipo, porque se realiza dentro do âmbito de normalidade social. É o velho brocado: non omne quod licet honestum est (nem tudo que é legal é honesto). Em suma, não se pode castigar aquilo que a sociedade considera correto (Mir Puig).
Ao contrário do princípio da insignificância, em que a conduta é relativamente tolerada por sua escassa gravidade, no princípio da adequação ela recebe total aprovação social. Ex.: a circuncisão na religião judaica.
Nada impede que o fato penalmente insignificante e, portanto, atípico, receba tratamento adequado em outras áreas do direito, dentro da natureza fragmentária que apresenta o direito penal.
O Supremo Tribunal Federal já se manifestou proclamando falta de justa causa e determinando trancamento de ação penal em casos de insignificante quantidade de maconha.1 Com efeito, parte da jurisprudência vem entendendo que uma ínfima quantidade de maconha é insuficiente para causar dependência psíquica, não se falando portanto em posse de entorpecente, num claro reconhecimento do crime de bagatela. Em outra decisão, a Suprema Corte declarou o descabimento de ação penal por “dano de pequena valia”, em caso de corte de folhas de palmeira (RTJ 100/157), num claro reconhecimento do crime de bagatela.
O Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, através de sua 6ª Câmara, apreciando caso de quantidade mínima de maconha apreendida em poder do agente (meia “bagana” semiconsumida), decidiu pela absolvição do acusado, sob o argumento de que “segundo especialistas em farmacologia, percentagem inferior a 15 mg do princípio ativo da maconha em meia bagana de cigarro semiconsumido, seria imprestável para gerar dependência psíquica. Perante tão ínfima quantidade e consequente dúvida sobre sua potencialidade, autoriza-se solução absolutória”.2
Algumas decisões pretorianas, embora tendo como pano de fundo o princípio da insignificância, por um receio obscurantista de se amoldar às novas idéias e tendências, fundamentam suas decisões n’outro rumo.
“Em tema de comércio clandestino de entorpecentes, impõe-se a absolvição do acusado, por falta de prova da materialidade do delito, se apreendida a substância indigitada em quantidade ínfima, não foi a mesma suscetível de ser pesada e analisada quimicamente, porque inadmissível é sua qualificação como tóxico apenas por mera aparência” (JUTACRIM 48/359).
A corrente jurisprudencial que não reconhece o crime de bagatela, e que vem cada vez mais sendo menos prestigiada, o faz amparada nos argumentos de que “a lei não faz distinção alguma no tocante à quantidade de entorpecentes encontrada em poder do indiciado, razão pela qual o delito pelo uso da respectiva droga pode ser caracterizado, ainda que ínfima a quantidade trazida ou conduzida pelo agente”.3 Essa orientação jurisprudencial representa uma filiação espúria ao tipo meramente formal (“a lei não faz distinção…”), o que nos devolve à argumentação tecida linhas atrás. A questão está claramente mal colocada. Não se cura a enfermidade matando o doente.
4- Conclusão:
Diante do exposto, poderá ocorrer uma das seguintes situações:
I- o Ministério Público poderá requerer diretamente o arquivamento do inquérito policial, face à atipicidade material;
II- o juiz poderá não receber a denúncia, rejeitando-a, nos termos do art. 43, I, do CPP (“quando o fato narrado evidentemente não constituir crime”);
III- se recebida a denúncia, a ação penal poderá ser trancada por falta de justa causa.
NOTAS
1- STF, RHC 48.484-GB, 2ª Turma, j. 6.11.1970; HC 43.771-GB, j. 6.3.1967; in: Geraldo Gomes, “Tóxicos – A maconha e sua criminalização ou descriminalização”, RT 694/436.
2- Médici, “Tóxicos”, p. 156. No mesmo sentido: RJTJSP 102/432, 98/487, 97/491, 95/464, 92/456, 91/444; RT 600/337, 593/308, 596/313-335, 587/320, 583/350, 570/315.
3- TJMG, 16/3/72, in: J. E. de Carvalho Pacheco, “Tóxicos”, 3ª ed., p. 95-96. No mesmo sentido: TJSP, RT 676/286.
(*) Tese apresentada no 13º Congresso Nacional do Ministério Público em Curitiba, 26 a 29 de outubro de 1999.
(**) O autor é Promotor da 2ª Promotoria de Justiça de Tabatinga-AM e autor do livro “O Ministério Público e um novo modelo de Estado”.