'Querem transformar o advogado em alcagüete.'

Jorge Nemr*

Enquanto no Brasil se discute formas de dar mais transparência aos honorários dos advogados que defendem traficantes e, quem sabe, outros mega-bandidos do crime organizado, em outros países se vai além. Fala-se em implementar uma série de normas, restrições e punições à profissão legal.

Em 1989, durante a reunião dos sete dirigentes das mais poderosas potências mundiais, o G-7, em Paris, foi criado o Gafi (Grupo de Ação Financeira Sobre Lavagem de Dinheiro), um organismo inter-governamental para o desenvolvimento de políticas em níveis nacionais e internacionais para o combater a lavagem de dinheiro. Com o atentado terrorista de 11 de setembro de 2001, a atuação do núcleo foi estendida para o combate ao financiamento do terrorismo.

Com 31 membros, entre eles o Brasil, o Gafi “gera” a vontade política necessária para que os legislativos dos países membros criem reformas e regulamentações para combater a lavagem de dinheiro.

Desde 1999, ganha corpo uma iniciativa internacional para desenvolver medidas destinadas a melhorar a cooperação contra a lavagem de dinheiro pelos chamados “Gatekeepers” (Instituições não financeiras e profissionais como advogados, escrivões, corretores de imóveis, imobiliárias, contadores, auditores e consultores financeiro que aconselham e auxiliam em transações envolvendo movimentação financeira). Os “gatekeepers” estão fadados a ter uma participação especial em identificar, prevenir e informar a lavagem de dinheiro.

A origem dessa iniciativa foi a conferência de Moscou em 1999 do G-8 onde se discutiu o crime organizado transnacional. No final da Conferência Ministerial, um comunicado informou que os países do G-8 concordaram em aproximar e alinhar os seus grupos de combate à lavagem de dinheiro, e estudar a possibilidade de impor algumas responsabilidades para profissionais como advogados, contadores, auditores, intermediários financeiros, e agentes que constituem empresas, que podem “barrar” ou facilitar a entrada de dinheiro no sistema financeiro, proveniente do crime organizado.

Pois bem, o Gafi está propondo algumas recomendações que levarão os países membros a criar leis e regulamentações que transformarão significativamente a relação entre os advogados e seus clientes, e irá afetar o papel do advogado que tem evoluído durante séculos e está protegido por legislação necessária e consistente.

No esforço de desenvolver um processo mais democrático e transparente o Gafi, através de consulta pública, solicitou aos setores diretamente envolvidos, incluindo não membros do Gafi, setor privado ou qualquer outro indivíduo, um posicionamento sobre as recomendações propostas.

Estritamente em relação a advogados, a principal recomendação do Gafi é para que os mesmos informem às autoridades ou entidades de classe, quaisquer atividades suspeitas de seus clientes.

De acordo com as sugestões da entidade, advogados internos de empresas não terão a obrigação de informar pois, pode gerar um conflito impossível entre o advogado e o seu empregador.

O Gafi está sugerindo a adoção de uma das três opções de abrangência dessas recomendações: 1) abranger os advogados em todas as suas atividades, 2) abranger os advogados apenas quando atuar como intermediário financeiro em nome ou benefício de um cliente, ou 3) abranger os advogados quando eles estiverem envolvidos no planejamento ou execução de negócios financeiros, imobiliários, corporativos ou fiduciários para seus clientes.

Em qualquer das opções, não existirá a obrigação de informar uma atividade suspeita, se a informação relevante chegar ao conhecimento do advogado em circunstâncias que o sujeitam ao sigilo profissional ou privilégio legal da profissão.

Entretanto, uma importante limitação no processo legislativo do Gafi, é a falta de transparência, pois, fora os relatórios preparados pelo Grupo, os advogados, a sociedade civil, e mesmo os governos não membros, não possuem acesso às deliberações nas quais o Gafi faz a sua política que se espera ver implementada pelo mundo.

O Grupo de Trabalho sobre os “Gatekeepers” do Gafi para revisar a consulta pública feita, se reuniu pela segunda vez em abril de 2003. Nessa oportunidade, uma declaração conjunta de nove Associações de Ordens de Advogados foi submetida à apreciação do Gafi. Entre as entidades que foram representadas estavam: a Ordem dos Advogados dos EUA, (ABA), as entidades congêneres do Japão, Canadá, da União Européia, da Suíça, e França entre outras.

O Brasil não foi representado por nenhuma de suas entidades ligada à advocacia. Ou seja, numa questão tão importante que poderá mudar em pouco tempo o perfil da profissão, o Brasil não está sendo ouvido, nem tampouco representado.

O encadeamento desses fatos abre uma série de encruzilhadas, com caminhos que levam ora ao abismo, ora ao desconhecido. Primeiramente pelo fato óbvio de se identificar nos Poderes Públicos a nítida intenção de “privatizar” as funções e obrigações estatais. Ou seja: querem repassar à iniciativa privada (no caso, os advogados) o papel de fiscalizar, investigar e policiar.

Outra questão fundamental: como ficará a relação entre o advogado e o seu cliente depois que o advogado informar uma atividade alegadamente suspeita de seu cliente. Poderá ele ser processado pelo mesmo, caso as suspeitas não se confirmem? No final o advogado poderá, além de perder o cliente, ser processado? Quem vai querer consultar um advogado se não puder ser “transparente” e revelar a ele os desvãos de seu infortúnio?

O advogado é consultado, como conselheiro, devido a sua imparcialidade. O que acontecerá a partir do momento em que ele tiver a obrigação de ser parcial em favor das autoridades? Seria oportuno e conveniente que as entidades representativas da advocacia comecem a atuar nessa questão o mais rápido possível. Antes que seja tarde.

Jorge Nemr é advogado em São Paulo e sócio do Escritório Leite, Tosto e Barros

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