José Rollemberg Leite Neto
Não há estudante de Direito que desconheça O Caso dos Exploradores de Caverna. O livrinho, escrito em 1949 por Lon L. Fuller, professor da Harvard Law School, é texto quase obrigatório nas disciplinas introdutórias dos cursos jurídicos. Ele narra a expedição de um grupo de espeleólogos que fica preso em uma caverna, e que, depois de uma tentativa frustrada de resgate, na qual morreram os que tentavam salvá-los, tem de recorrer ao canibalismo para sobreviver. O grupo, diante disso, delibera que um dos membros será morto para servir de alimento aos demais. Após, são libertos e, na sequência, são levados a julgamento, acusados de homicídio. O trabalho narra as justificações apresentadas pelos juízes para condenar ou absolver os exploradores. Direito Natural, Direito Positivo, Teoria da Argumentação são versados nesse julgamento. Temas que, desde a edição do interessante opúsculo, ainda são pauta dos debates jurídicos.
O Caso dos Exploradores de Caverna sempre pareceu uma hipótese remota, improvável demais. Mas, em 1972, um avião da Força Aérea do Uruguai, com atletas de rúgbi, caiu nos Andes, entre o Chile e a Argentina. Muitos passageiros morreram. Outros, após longos dias de sofrimento, resolveram canibalizar os mortos, para garantir a sobrevivência. Dezesseis, ao final, foram salvos. O episódio está em vários livros e filmes, dentre os quais a película Vivos, de Frank Marshall e o texto Os Sobreviventes — A Tragédia dos Andes, de Piers Paul Reed, além do recente A Sociedade da Neve, de Pablo Vierci.
Na semana passada o mundo assistiu, irmanado em alegria, o resgate dos 33 mineiros chilenos presos nas profundezas da Mina de San José. Todos foram trazidos à luz ilesos. Muitos já disseram que o episódio ajudará cientistas no estudo do comportamento humano em situações limítrofes. Não há notícia, porém, de quem tenha averbado a relevância de tal experiência no plano deôntico, seja o ético, seja o jurídico.
Os mineiros formaram uma sociedade. Ubi societas, ibi jus. Estabeleceram regras, fixaram procedimentos. Deliberaram deveres e direitos. Tudo isso é relação entre homens. Rege-se, inevitavelmente, pela Ética e pelo Direito.
Já se disse que nenhum homem é uma ilha. Para o Direito, a máxima é incontroversa. O Direito só é ausente, assim como a Ética, enquanto Robinson Crusoé não encontra Sexta-Feira. Daí em diante, há tratos a fazer, e, conseguintemente, normas que precisam ser respeitadas.
É do Direito — e da Ética — procurar saber como as obrigações que deixaram na superfície serão tratadas, o que ocorreria se eles tivessem demorado mais tempo sob o solo, o que sucederia se houvesse um crime entre eles, e assim sucessivamente. Tais exercícios de especulação, antes de se caracterizarem como excentricidade, são, em rigor, um dever da ciência do Direito, que não pode se contentar em ser meramente descritiva (embora seja esse o seu papel primeiro).
A quem tem boa lembrança não faltará a recordação de que há no Direito Civil o instituto da ausência, no Direito Penal a figura do estado de necessidade, no Direito Administrativo a possibilidade de concessão de pensões, entre outras construções apropriadas a casos que tais.
Muitas indagações podem ser feitas. O presidente Pinera assinalou que o Chile gastou mais de 10 milhões de dólares para resgatar os mineiros. Pode-se perquirir se, em um país arrasado recentemente por um terremoto, tal custo seria razoável, com tantas vidas a serem restabelecidas depois de uma tragédia centenas de vezes maior. O investimento estatal per capita neste caso foi milhares de vezes superior ao que foi gasto na média para beneficiar os atingidos pela calamidade sísmica. Se o Direito não cogita censurar o resgate dos operários da Mina de San José é porque uma razão jurídica sustenta esse comportamento. É preciso decifrá-la, investigá-la, porque a chance de ter-se de recorrer, no futuro, a essa fórmula é grande.
Na alegria e na tristeza, na tragédia e na glória, o Direito e os debates morais a ele subjacentes estão presentes. O Caso dos Exploradores de Caverna permanece atual.
*Artigo publicado originalmente no Jornal do Dia (de Aracaju-SE) em 17 de outubro de 2010.
José Rollemberg Leite Neto advogado, mestre em Direito pela Universidade Gama Filho, sócio do Eduardo Antônio Lucho Ferrão Advogados Associados, membro da Comissão de Reforma do Código Eleitoral, do Senado.