Autor: César Ramos da Costa (*)
Historicamente, o júri surgiu para salvaguardar os direitos individuais do cidadão e limitar o poder estatal. É, talvez, a primeira garantia individual consagrada pela Carta Magna do Rei João Sem Terra (1215). Daí poder afirmar-se que o júri é um instituto protetor do cidadão contra os abusos do Estado. Ou seja, o júri é, concomitantemente, uma garantia e um direito do cidadão, que, nos casos previstos no ordenamento jurídico da cada país, será julgado por seus pares.
O júri é uma instituição de matiz democrática. Por isso, os regimes totalitários o rejeitam. É nas democracias que o júri cumpre sua missão de garantir os direitos fundamentais da pessoa humana.
O ordenamento jurídico brasileiro, desde o Decreto de 18 de julho 1822, do Príncipe Regente Dom Pedro I, convive com o tribunal do júri. A exceção foi a Constituição de 1937, que instituiu o Estado Novo e baniu o júri, que foi reinstituído pelo Decreto-Lei 167, de 5 de janeiro de 1938, e mantido pelo Código de Processo Penal de 1941.
Tradicionalmente, o Direito brasileiro, desde o referido Decreto-Lei 167/1938 (art. 92, II, b), sempre admitiu o recurso de apelação, pelo mérito, quando a decisão dos jurados se afastar das provas dos autos, hipótese em que os tribunais, caso deem provimento ao apelo, manda realizar novo julgamento. Esse entendimento jurisprudencial se consolidou sob a égide da aludida Constituição de 1937 — que sequer previu o júri —, perdurando até os dias atuais.
Foi a Constituição democrática de 1946 que novamente elevou o júri ao status de garantia constitucional e consagrou, pela primeira vez, a soberania dos veredictos (art. 141, § 28). A Constituição de 1967 manteve o tribunal do júri e a sua soberania, assim como o fez a nossa atual Constituição de 1988, em seu art. 5º, XXXVIII, “c”.
Inobstante essa previsão constitucional, os tribunais pátrios continuaram a admitir recurso de apelação, pelo mérito, quando a decisão contrariar manifestamente a provas dos autos, conforme previsto no art. 593, III, alínea “d”, § 3º, do Código de Processo Penal.
A admissão da apelação em favor da acusação se dá porque os tribunais brasileiros interpretam o citado art. 593, III, “d”, § 3º, do CPP, como se ainda estivéssemos sob o pálio da Constituição varguista de 1937, e não da Constituição cidadã de 1988.
Daí a necessidade de se proceder à chamada interpretação conforme a Constituição do art. 593, III, alínea “d”, do CPP, à luz do art. 5º, XXXVIII, alínea “c”, da Carta Magna de 1988, na qual está consagrado o referido princípio da soberania dos veredictos.
O Supremo Tribunal Federal tem empregado a técnica da interpretação conforme a Constituição para estabelecer o sentido e o alcance de normas infralegais no contexto normativo da Constituição Federal de 1988.
Parece-nos que o aludido art. 593, III, alínea “d”, do CPP há muito tempo reclama a aplicação dessa “técnica de intepretação”, na modalidade sem redução de texto, para definir o sentido e alcance em face da soberania dos veredictos.
Nessa tarefa interpretativa, não se pode olvidar que o júri foi pensado e criado para proteger os direitos das pessoas contra julgamentos arbitrários realizados por órgãos estatais. Essa é a ideia — de proteção das pessoas — que deve orientar toda e qualquer exegese relativa ao tribunal do júri.
Exsurge intuitivo que a vontade do legislador constituinte de 1988, ao consagrar a soberania dos veredictos (CF, art. 5º, XXXVIII, “c”), foi permitir que os jurados decidissem soberanamente a causa sem que o tribunal togado, a exemplo do que podia fazer sob o pálio das Constituições anteriores, possa anular a decisão proferida.
Mais do que isso. A Constituição Federal de 1988 passou a reclamar uma atualização do procedimento do tribunal do júri para que a soberania dos veredictos fosse efetivamente potencializada. Essa atualização só veio quase 20 anos depois, com o advento da Lei 11.689, de 9 de junho de 2008, a qual alterou o vetusto Código de Processo Penal, dando nova regulamentação ao procedimento do júri.
Potencializando a soberania dos jurados, essa lei conferiu nova redação ao art. 483, criando, no seu inciso III e com a redação do seu § 2º, o quesito genérico — e obrigatório — da absolvição. Assim, salvo as teses de negativa do fato e de autoria, todas as teses defensivas absolutórias, jurídicas ou não, passaram a ser quesitadas conforme o quesito genérico previsto no referido § 2º.
- mais: esse quesito genérico ampliou a possibilidade de absolvição do acusado, na medida em que permite a absolvição por qualquer motivo, até pela clemência. Todavia, de nada adianta permitir aos jurados absolverem o acusado se ainda for juridicamente possível o recurso da acusação contra essa decisão por entendê-la contra as provas dos autos.
Ora, se os jurados são soberanos, como compreender que o tribunal togado possa reexaminar o mérito da causa para, assim, concluir, ou não, pelo “acerto” ou “erro” dos jurados? Salvo quando evidenciado erro de julgamento, a soberania do júri há de tornar intangível qualquer decisão meritória favorável ao acusado.
De fato, é preciso assegurar que os jurados decidam, de fato e de direito, soberanamente. e decidir soberanamente é julgar o mérito da causa como única e última instância, só se admitindo recurso da acusação quando se fundar em questão procedimental caracterizadora de eventual nulidade ou quando – e somente quando – a decisão favorável acusado se der, apenas e tão somente, por votação aos quesitos da materialidade e autoria (CPP, art. 483, I e II) e desde que a defesa não tenha sustentado como tese a negativa da materialidade do fato ou de autoria.
Outrossim, é necessário garantir que os jurados, v.g., olhem para o acusado e, embora reconheçam a autoria e a materialidade, possam concluir que ele não merece a condenação e, assim, decidam absolvê-lo por qualquer razão, técnica ou não, devendo essa decisão ser inatacável pelo mérito.
Em outras palavras, já está mais do que na hora de, em nome da verdadeira soberania dos veredictos, não mais se admitir recurso da acusação contra decisões meritórias do tribunal do júri quando, v.g., a absolvição do acusado ou desclassificação do crime se derem por votação ao quesito genérico do art. 483, III, do CPP, e seu desdobramento, bem como quando os jurados reconhecerem causa de diminuição de pena (CPP, art. 483, IV).
A nosso pensar, quando o tribunal, provendo recurso da acusação, anula a decisão do júri por entendê-la “manifestamente contrária à prova dos autos”, está afastando a soberania dos veredictos, tornando letra morta o citado art. 5º, XXXVIII, alínea “c”, da CF.
Isso porque, para concluir nesse sentido, o tribunal deve incursionar o mérito da causa, analisando fatos e provas, matérias que a Constituição Federal definiu como de competência exclusiva do tribunal do júri. Veja-se que, ao longo do minudente texto constitucional, inexiste qualquer dispositivo que autorize o tribunal togado a analisar o mérito da causa de competência do tribunal do júri para, assim, anular a decisão que entenda manifestamente contrária à prova dos autos.
Ademais, quando anula pelo mérito a decisão dos jurados, o tribunal enfraquece a defesa, na medida em que o Ministério Público não está impedido de usar a força e a autoridade do acórdão durante o novo julgamento. Assim, o membro do Ministério Público pode muito bem dizer que, de acordo com o acórdão que anulou o primeiro julgamento, a única decisão aceitável pelo tribunal é a que acolher a tese da acusação.
Nessa conjuntura, a defesa estará fadada ao insucesso. Nenhuma palavra da defesa é mais convincente do que as palavras do acórdão. Logo, as chances do acusado são diminutas, quase insignificantes.
A nosso sentir, salvo quando a absolvição se der por votação aos quesitos da materialidade e da autoria (CPP, art. 483, I e II) sem que a defesa tenha sustentado tese nessa direção — hipótese que caracteriza erro de julgamento a legitimar o recurso da acusação —, somente a defesa tem direito ao recurso previsto no aludido art. 593, III, alínea “d”, do CPP. E três são as razões para isso: a primeira razão diz respeito à dignidade da pessoa humana; a segunda repousa no direito fundamental à ampla defesa; e a terceira decorre do princípio do duplo grau de jurisdição, assegurado não apenas pela Constituição Federal, mas também em Tratados e convenções internacionais dos quais o Brasil é signatário.
Deveras, no contexto constitucional — e convencional —, a interpretação do art. 593, III, d, do CPP, conforme a Constituição, mais precisamente conforme o art. 5º, XXXVIII, “c”, deve ser no sentido de que o Ministério Público só tem legitimidade para recorrer de decisões meritórias do tribunal do júri quando – e somente quando – ficar caracterizado erro de julgamento, o que se verifica, por exemplo, no caso de absolvição pelos quesitos da materialidade da autoria (CPP, art. 483, I e II) sem que a defesa tenha sustentado tese nesse sentido.
Por corolário, é inadmissível o recurso quando os jurados acolhem qualquer tese da defesa ou, por qualquer motivo, absolvem o acusado pelo quesito absolutório genérico (CPP, ART. 483, III). Essa é a interpretação que — a nosso juízo — compatibiliza a norma do referido art. 593, III, “d”, do CPP, com o texto do art. 5º, XXXVIII, “c”, da Constituição Federal, fazendo prevalecer a vontade soberana do júri.
Autor: César Ramos da Costa é advogado criminalista, especialista em Ciência Criminais, membro-fundador do Instituto Paraense do Direito de Defesa (IPDD) e professor convidado da Escola Superior da Advocacia da OAB-PA.