RECURSO INOMINADO E A SUCUMBÊNCIA À LUZ DO PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE NOS JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS ESTADUAIS
Autor: Dr. Evilásio Correia de Araújo Filho e Jany Lídia Oliveira Costa de Araújo
A lei do Juizado Especial Cível expressa o novo perfil do acesso à justiça, cujo arcabouço teórico foi inspirado por Mauro Capelletti, em obra clássica.1 Para tanto, o renomado autor ergueu 03 ondas (movimentos), que tiveram por fim tutelar os pobres através das defensorias públicas (assistência jurídica gratuita e integral); salvaguardar os direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos; e, imprimir o espírito reformista ao Judiciário, não só através da lei, com a informalidade dos procedimentos e meios paraestatais de solução de conflitos, mas, sobretudo, por uma nova compreensão dos Juízes.
Diversas legislações brasileiras se revestiram dessa idéia conceitual, permeando um processo simples, de rápida tramitação e com baixo encargo financeiro.
A primeira delas foi a ação monitória, instituída pela Lei Federal no 9.079/95, que compete a quem pretende, com base em prova escrita sem eficácia de título executivo, pagamento de soma em dinheiro, entrega de coisa fungível ou de determinado bem móvel. Observando o Juiz que a inicial é apta, deferirá de plano a expedição do mandado de pagamento ou de entrega da coisa no prazo de 15 dias.
Frise-se que, após a expedição do mandado de pagamento, poderá o réu oferecer embargos, que suspenderão a eficácia do mandado inicial.
Não embargada a monitória, com o cumprimento integral do mandado, a lei instituiu uma espécie de bônus àquele que assentisse com a decisão judicial: estará isento das custas e honorários advocatícios (§ 1o, do art. 1.102c do CPC).
A isenção, portanto, serve como desestímulo a impugnação (embargo) meramente protelatória, que vise retardar o feito e perpetuar o conflito. Afinal, pelo sistema tradicional do processo civil (art. 26 do CPC2), mesmo que instaurada a lide, deveria o réu sucumbir, independentemente de sua aquiescência ulterior ao pedido do autor.
A outra norma legal mencionada alhures, inspirada pelos novos ventos, foi a Lei Federal no 9.099/95. O legislador teve especial apreço em disciplinar a sucumbência, mercê de um requintado tratamento ao jus postulandi.
Por expressa disposição legal, não haverá sucumbência no primeiro grau do JEC, ressalvados os casos de litigância de má-fé. Todavia, em segundo grau, o recorrente vencido, pagará as custas e honorários de advogado, que serão fixados entre 10% e 20% do valor da condenação ou, não havendo, incidiria sobre o valor corrigido da causa (art. 55).
Note-se que o espírito formador dos dois diplomas legais foi exatamente o mesmo. Facilitar o acesso e a rápida composição do litígio, desestimulando as partes a não deflagrarem os embargos (ação monitória), e não interporem recurso inominado, em se tratando dos Juizados Especiais Cíveis.
Na espécie, é inegável, portanto, que a sucumbência é a conseqüência peculiar de quem recorre e não obtém êxito, mantendo-se intacta a sentença de primeiro grau. A ilação é de uma clareza nodal. Como é cediço, com o recurso, além de se inaugurar uma nova instância, com manifesto retardamento da prestação jurisdicional, a participação do advogado é obrigatória, independentemente do valor da causa. Afinal, não fosse assim, com sói acontecer na esmagadora maioria dos casos, estar-se-ia por exigir um ônus desmedido a parte vencedora no primeiro grau, que diante do recurso do vencido, teria que contratar um advogado para apresentar suas contra-razões e, conseqüentemente, adiantar os honorários.3
Com efeito, aqui repousa uma das facetas do princípio da causalidade no JEC. Deve-se impor a condenação em honorários advocatícios e despesas processuais àquele que deu origem à instauração da lide judicial, perpetuando o litígio na fase recursal, porém, sem sucesso.
Nessa esteira, o Superior Tribunal de Justiça vem admitindo a sucumbência até nas hipóteses em que ocorre a perda do objeto da ação, com a extinção do processo sem julgamento do mérito4:
“RECURSO ESPECIAL. ALÍNEA “A”. AÇÃO DE IMISSÃO NA POSSE. SUPERVENIENTE PERDA DO OBJETO DA AÇÃO PELA DESOCUPAÇÃO VOLUNTÁRIA DO IMÓVEL. COMPREENSÃO DO PRINCÍPIO DA SUCUMBÊNCIA À LUZ DO PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE.É consabido que o princípio da sucumbência deve ser compreendido sob o matiz do princípio da causalidade, de modo que, mesmo não-evidente a parte vencedora, impõe-se a condenação de honorários advocatícios e despesas processuais àquele que deu origem à instauração da lide judicial infrutífera.No particular, a perda do objeto da ação ocorreu em vista da desocupação voluntária do imóvel residencial pelo réu cuja imissão na posse pleiteava a CEF em juízo, anterior à prolação da sentença, de modo que se evidencia a ausência de interesse processual, a implicar na extinção do processo sem julgamento do mérito, na forma do art. 267, IV, do CPC.À luz do princípio da causalidade (Veranlassungsprinzip), as despesas processuais e os honorários advocatícios recaem sobre a parte que deu causa à extinção do processo sem julgamento do mérito ou à que seria perdedora se o magistrado chegasse a julgar o mérito da causa”. Grifei.
A doutrina mais autorizada perfilha no mesmo sentido ao comentar a Lei do JEC. Para Luiz Guilherme Marinoni:
“O acesso a essa instância recursal depende do atendimento a certas condições, não exigíveis na instância ordinária. Assim, devem as partes estar assistidas por advogado (art. 41, § 2o, da Lei 9.099/95). A instância recursal depende, ao contrário do que ocorre em primeiro grau, do pagamento das despesas respectivas, e mesmo daquelas atinentes à instância ordinária (ressalvada a hipótese de assistência jurídica gratuita), sendo que, no juízo recursal, o recorrente, vencido, deverá pagar honorários advocatícios (art. 42, § 1o, art. 54, parágrafo único, e art. 55, Lei 9.099/95).”5. Grifei.
Eduardo Sodré pontua no mesmo diapasão:
“(…). Em outras palavras, se o vencido conformar-se com a derrota, abdicando dos instrumentos recursais, ficará isento do pagamento de custas e honorários advocatícios. Caso recorra e não obtenha êxito, arcará com tais despesas.”6. Grifei.
“Trata-se de técnica legislativa bastante louvável, na medida em que funciona como verdadeiro desestímulo ao manejo de recursos infundados ou meramente protelatórios”7. Grifei.
Sem embargo, penso ser inconsistente qualquer interpretação que subverta a lógica da lei, concebida a partir de um encadeamento conceitual óbvio, que emerge de uma idônea política procedimental, que visa banir os atos processuais despropositados, que assoberbam as Turmas Recursais dos JEC’s, retardando a assaz solução da causa.
Todavia, embora a exegese defendida tenha uma fluidez ímpar e venha sendo aplicada por quase a unanimidade das Turmas Recursais brasileiras, uma, porém, vem instaurando uma controvérsia (ainda que não unânime), que divorcia a norma do seu genuíno alcance informador.8 Ademais, frise-se que ao intérprete não é dada a condição de agregar preceitos normativos, agindo como autêntico legislador positivo, pois subverteria irremediavelmente a separação dos poderes.
Nesse vértice, é de se perquirir acerca da ratio essendi da lei ao esculpir a expressão contida (sublinhada) no art. 55: “… sendo que, no juízo recursal, o recorrente, vencido, deverá pagar honorários advocatícios…”. Destaquei e sublinhei.
Invocam esses Magistrados, em amparo a essa equívoca tese, que a sucumbência estaria condicionada a análise do mérito, no segundo grau, cuja justificativa afloraria da acepção expressa na lei: vencido. Logo, argumentam, em não havendo o conhecimento do recurso (v.g., por algum eiva que impedisse a sua admissibilidade) não haveria sucumbência, porque não imiscuíram no mérito, não havendo vencedor na fase recursal.
Data maxima venia, essa interpretação não subsiste as linhas mestras traçadas pela hermenêutica, merecendo elástica censura, porque fraciona a uniformidade do litígio, que é o mesmo no transcurso das instâncias, numa relação contínua. Como já exposto, a sucumbência visa desencorajar o recurso meramente protelatório, principalmente nos Juizados, onde a obrigatoriedade do advogado só se faz presente na fase recursal (por ser eminentemente técnica), impelindo as partes a contratarem um profissional e, conseqüentemente, arcar com despesas. Sem maiores esforços, o espírito da lei conduz ao entendimento de que a célere composição do litígio, escopo mor do diploma legal, não se consuma com a interposição do recurso volúvel, porque, desnecessariamente, conserva por mais tempo e em outra instância o estado de conflito resistido.
Saliente-se que nem sempre a observância da admissibilidade do recurso é suficientemente apta no primeiro grau. Via de regra a segunda instância dos Juizados se vê diante de recursos inapropriados, vindo a inacolhê-los por flagrante inadmissibilidade.
Com efeito, prevalecesse o entendimento da norma naqueles estreitos limites, infausta a parte (v.g.) que conquanto vencedora no primeiro grau, observou uma preliminar de inadmissibilidade do recurso interposto pelo vencido/recorrente conhecida, porque em não havendo sucumbência, jamais teria como pactuar os honorários advocatícios adiantados ao profissional que contratou.
Aliás, nesse viés, em havendo impugnação, com a perda de tempo já irremediavelmente concluída, deveria o recorrido/vencedor, abdicar das argüições preliminares nas contra-razões (ou até torcer pelo não conhecimento dessas matérias, de ofício, pela Turma Recursal), que conduzissem a inadmissibilidade do recurso, para que este fosse conhecido, porém integralmente improvido (mérito), pois só assim poderia ser ressarcido do que adiantou, minimizando os prejuízos, não só pelo tempo estéril consumado, mas pelas despesas antecipadas!
Essa exegese não é razoável, sobretudo por colidir com a própria lógica do sistema esculpido no JEC, que outro não é, senão o de premiar a rápida solução da desavença, com inegável desestímulo a via recursal fútil. Se a sucumbência decorre do improvimento do recurso, mantendo-se integralmente a sentença, com muito mais razão quando sequer é conhecido, ante a ausência dos pressupostos de sua admissibilidade. Intuitivo!
Gize-se, ainda que por um relampejo, como o julgamento, ora fustigado, alveja de morte a razoabilidade. Suponhamos a existência de um recurso dissimulado, irremediavelmente infeliz, meramente procrastinatório, que, indevidamente, fora admitido pelo Juiz de primeiro grau, porém, não fora conhecido, à míngua dos requisitos de admissibilidade, em segundo grau. Ao revés, em outra marcha, pensemos num recurso idôneo, com ponderáveis argumentos, que fosse acolhido pela Turma Recursal, porém improvido, confirmando-se a sentença de primeiro grau. Naquele não haveria nenhuma pena ao seu arquétipo; nesse, ao contrário, haveria o ônus da sucumbência!
Esses fundamentos transgridem a coerência, pois penalizam os que agem dentro dos padrões da ética e da boa técnica jurídica; favorece, apenas, o vil litigante, decerto movido com o propósito de dificultar a célere prestação jurisdicional.
Não é por outro motivo que a Turma Recursal do Rio de Janeiro, sedimentou o entendimento de no 27, assim esculpido: “O não conhecimento do recurso enseja pagamento da sucumbência pelo recorrente” (Juizado Especial/Rio de Janeiro, no 08/1998).
Em arremate. É possível inferir-se, aliás, outra conclusão não há (pela univocidade de conteúdo e alcance da norma), que a expressão vencido, compreendida na lei de regência, quer significar aquele que, ao final, saiu derrotado porque resistiu, desde o plano sociológico (lide), inutilmente à pretensão do vencedor, impelindo-o a participar de demanda judicial para obter o bem da vida que, de direito, lhe pertencia. Para tanto, como via de regra ocorre, mesmo vencido em primeiro grau, continuou se opondo, vindo a instaurar inutilmente a via recursal.9
* Professor orientador
Notas:
1. CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. [Trad. Ellen Gracie Northefleet]. Rio Grande do Sul: Sergio Antonio Fabris Editor, 1988.
2. Art. 26 do CPC: “Se o processo terminar por desistência ou reconhecimento do pedido, as despesas e os honorários serão pagos pela parte que desistiu ou reconheceu”.
3. Segundo Eduardo Sodré (em obra indicada na nota de rodapé no 6), há uma única controvérsia quanto ao ônus da sucumbência. Trata-se apenas em relação ao recorrido vencido, justamente porque o recurso não foi por ele interposto. Para tanto, apresenta os julgados proferidos nos recursos nos 565/97 e 587/97, respectivamente, da 9a Turma Recursal do Rio de Janeiro e da Turma Recursal de Belo Horizonte, ambos colhidos por Jorge Alberto Quadros de Carvalho Silva (Lei dos Juizados Especiais Cíveis anotada, p. 55).
4. REsp 151.040/SP, Rel. Min. Adhemar Maciel, DJU 01.02.1999.
5. MARINONI, Luiz Guilherme. Manual do Processo de Conhecimento, 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 762.
6. SODRÉ, Eduardo. Procedimentos Especiais. Legislação Extravagante. O sistema recursal dos Juizados Especiais Cíveis. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 532.
7. Idem, p. 531.
8. Turma Recursal da 1a Região, Maceió-AL, Processo no 1951/03 – RC no 38/04. A ementa assim foi redigida: “(…) Quando do julgamento do recurso inominado não se chegar a análise do mérito, não há que se falar em honorários advocatícios.” (Acórdão lavrado pela Juíza Silvana Lessa Omena).
O voto vencido, da lavra do Juiz Maurílio da Silva Ferraz, trás argumentos coerentes, apoiados em posições doutrinárias e jurisprudências (Turma Recursal do Paraná), no sentido do cabimento de honorários advocatícios, mesmo quando o recurso não é conhecido.
9. Conferir os seguintes julgados da Turma Recursal dos JEC do D.F.: nos: 210087, rel. Luciano Vasconcellos, j. 09.03.05, DJU, de 13.04.05, p. 67; 210091, rel. Luciano Vasconcellos, j. 09.03.05, DJU, de 13.04.05, p. 67
Autor: Dr. Evilásio Correia de Araújo Filho * e Jany Lídia Oliveira Costa de Araújo * *
* Acadêmica de Direito do 7o período da Faculdade de Alagoas – FAL
* * Juiz de Direito em Sergipe, Mestre em Direito Público pela UFPE, Especialista em Direito Constitucional e Professor de Direito da FAL.