Recursos públicos não estão protegidos pelo sigilo bancário

Autor:  Tania Nigri (*)

 

O sigilo bancário é, ainda hoje, certamente o instituto jurídico sobre o qual pairam mais dúvidas e opiniões divergentes. Mesmo após o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.390, 2.386, 2.397 e 2.859, bem como do RE 601.314 (submetido à sistemática da repercussão geral), quando o Supremo Tribunal Federal declarou a constitucionalidade do artigo 6º da Lei Complementar 105/01, ainda se observa forte resistência à sua aplicação efetiva, o que se nota, inclusive, nos julgados que questionam a legalidade da utilização dos dados obtidos por acesso direto do Fisco, para fins penais.

Em recente decisão sobre essa questão, mais precisamente no Recurso em HC 42.332/PR, a ministra Maria Thereza de Assis Moura, em juízo de retratação, em aparente divergência entre o acórdão prolatado pela 6ª Turma e o entendimento consolidado pelo STF, manteve a posição de que a quebra do sigilo bancário para fins de investigação criminal não prescindiria da ordem judicial.

A ministra avaliou que não cabe à administração tributária, órgão interessado no processo administrativo tributário e sem competência constitucional específica, fornecer os dados que foram obtidos através de acesso direto às instituições bancárias, sem prévia autorização do juízo criminal, para fins penais, o que tornaria nula toda prova decorrente dessa quebra.

Em meio a tantas posições titubeantes dos tribunais superiores, um tema que parece ganhar uniformidade, com interpretações cada vez mais abertas, se refere à preponderância dos princípios da publicidade e da moralidade quanto aos recursos financeiros decorrentes de fonte pública. A jurisprudência tem repudiado as alegações de direito à intimidade e vida privada dessas verbas, sob o argumento de que a Lei Maior asseguraria a garantia do sigilo bancário à pessoa humana, aos indivíduos que compõem a sociedade e às pessoas jurídicas de Direito privado, mas não aos entes públicos.

Parece cristalino que as garantias de inviolabilidade da intimidade e da vida privada visam à proteção das pessoas contra olhares alheios e arbitrariedades, inclusive do próprio Estado, enquanto os princípios da moralidade e publicidade regem a Administração Pública. Não há, dessa forma, qualquer antagonismo entre normas constitucionais, vez que se destinam a pessoas distintas – em sendo um ente público o titular da conta bancária, vicejará o princípio da publicidade, não havendo que se falar em sigilo bancário, por não se prestar essa garantia constitucional a assegurar a inacessibilidade aos recursos públicos.

Alguns doutrinadores se insurgem contra a publicidade de empréstimos realizados com verba pública, sob o fundamento de que isso comprometeria o sigilo bancário e empresarial dos terceiros com quem contratou o órgão público, que desempenhariam atividades em regime concorrencial.

O STF teve a oportunidade de analisar essa delicada questão, por ocasião do julgamento do Mandado de Segurança 33.340/DF, quando a 1ª Turma julgava pedido do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para que não fosse obrigado a franquear ao Tribunal de Contas da União a documentação comprobatória das operações realizadas com o grupo JBS.

O TCU havia requisitado os dados a fim de aferir, por exemplo, os critérios utilizados para a escolha da referida sociedade empresária, quais seriam as vantagens sociais advindas das operações analisadas, se houve cumprimento das cláusulas contratuais e se as operações de troca de debêntures por posição acionária na empresa indicada teriam originado prejuízo para o BNDES.

A decisão do STF albergou o entendimento de que, sem prejuízo da tutela da privacidade, faz-se necessária a adoção de uma política de governança corporativa responsável, sobretudo em razão de os impetrantes serem bancos de fomento econômico e social, e não instituições financeiras privadas comuns, o que imporia, aos que com eles contratam, a exigência de disclosure e de transparência, de modo a viabilizar o pleno controle de legitimidade e responsividade dos que exercem o poder.

O relator do processo no TCU, ministro José Jorge, ao cobrar as informações do BNDES, asseverou que os recursos aplicados são públicos, a empresa aplicadora é pública e a política orientadora é pública, o que parece ser suficiente para que as informações devessem ser prestadas.

Quando do julgamento do referido processo no STF, o ministro Luiz Fux assinalou que o direito ao sigilo bancário é relativizado quando presentes recursos de fonte pública, pois quem contrata com o Poder Público não pode ter segredos, especialmente se a revelação for necessária para o controle da legitimidade do emprego dos recursos públicos, arrematando que a contratação pública não pode ser feita em esconderijos envernizados por um arcabouço jurídico capaz de impedir o controle social quanto ao emprego dessas verbas.

Parece óbvio, portanto, que as transações realizadas pelo Estado não podem se valer de um inexistente direito à confidencialidade, nos moldes daquele protegido pelos incisos X e XII, do artigo 5º da Constituição Federal, para se furtarem ao princípio da publicidade.

No acesso às operações bancárias realizadas com recursos públicos, não se vislumbra transgressão, nem mesmo reflexa, ao instituto do sigilo bancário, urgindo que os tribunais prossigam flexibilizando suas interpretações em lides que envolvam verbas emanadas dos cofres públicos, devendo imperar a completa transparência, visando ser preservado o interesse da coletividade, sem a qual não se atingirá a tão almejada, e ainda tão distante, justiça social.

 

 

 

 

Autor:  Tania Nigri  é especialista e mestre em Direito Econômico e autora do livro O Sigilo Bancário e a Jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, lançado pela Editora IASP – Instituto dos Advogados de São Paulo.


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