A recente proposta da senadora Íris Rezende (PMDB–GO), com parecer do senador Demóstenes Torres (DEM-GO), para redução constitucional da maioridade penal e sua pronta adesão por parte dos membros da Comissão de Constituição e Justiça (12 votos a favor e dez contra1), mostra que, apesar de parecer atender a um antigo clamor social, a questão está longe de ser pacífica.
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que a votação reflete um falso sentimento social de impunidade em relação a adolescentes autores de atos infracionais (infrações equiparadas aos crimes previstos no Código Penal Brasileiro). A votação, mesmo apertada, corresponde à expectativa de familiares que tiveram parentes vítimas de atos infracionais cometidos por menores de 18 anos.
No entanto, a questão não é apenas de sentimento coletivo e vontade social, mas antes de tudo é jurídica. É como se houvesse dois planos paralelos e conexos: a realidade jurídica e a social. Assim, cumpre analisar a recente proposta de redução da maioridade penal para os 16 anos sob ambas as óticas. Vejamos.
O sistema de garantias da Infância e Juventude: a Constituição Federal de 1988, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90).
Pela primeira vez na história jurídica brasileira, a Magna Carta concede especial destaque para os direitos e garantias fundamentais do ser humano. A dignidade da pessoa humana assume relevante valor ao ser consignado como fundamento da República Federativa do Brasil, logo no artigo 1º, inciso I.
No seu artigo 4º, inciso II2, a Constituição orienta o Estado brasileiro a se pautar pela prevalência dos direitos humanos. O artigo 5º, por sua vez, apresenta um amplo rol de direitos e garantias individuais. Com isso, o legislador constituinte deslocou significativamente esses direitos para uma posição topograficamente privilegiada na Constituição: esses direitos precedem a própria organização e estrutura do Estado brasileiro.
O artigo 2273 da Lei Maior inaugura no sistema jurídico brasileiro a adoção da proteção integral a crianças e adolescentes, com absoluta prioridade. Em complementação, o artigo 2284 estabelece a inimputabilidade penal dos menores de 18 anos. No entanto, não obstante seja estabelecida a inimputabilidade, a própria Magna Carta não deixa de orientar a forma de responsabilização de jovens menores de 18 anos. Indica o próprio artigo 227, incisos IV e V que:
“IV — garantia de pleno e formal conhecimento da atribuição de ato infracional, igualdade na relação processual e defesa técnica por profissional habilitado, segundo dispuser a legislação tutelar específica;
V — obediência aos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, quando da aplicação de qualquer medida privativa de liberdade”.
Pela mera análise dos institutos ora assinalados, percebe-se claro link entre os direitos e garantias fundamentais dos indivíduos e os direitos das crianças e adolescentes. Afinal, como propugna a teoria da proteção integral, crianças e adolescentes são titulares da dignidade da pessoa humana e por isso destinatários de todas as garantias fundamentais de qualquer pessoa adulta, acrescidas daquelas garantias específicas que visam assegurar o pleno e saudável desenvolvimento das crianças e adolescentes.
Como se vê, o sistema que se instaura não é o de impunidade, mas de inimputabilidade penal com responsabilização orientada pelos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar da pessoa em desenvolvimento quando da aplicação de qualquer medida que resulte na privação de liberdade de adolescentes.
Assim, a norma dos artigos 227 e 228 conectam-se diretamente com o artigo 1º, III da Magna Carta e com os direitos fundamentais do artigo 5º5. Em especial destaque é forçoso observar o próprio caput do artigo 5º que assegura a todos a igualdade perante a lei, sem distinção de qualquer natureza e o devido processo legal e a ampla defesa, nos termos do inciso LV.
Assim, tem-se que os direitos das crianças e adolescentes integram o rol de garantias do inciso 5º, não sendo possível a discriminação de adolescentes de maneira a violar a sua dignidade de pessoa em especial condição de desenvolvimento.
Isto significa dizer que a norma dos artigos 227 e 228 integram o rol de cláusulas pétreas abrangidas pelo artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV6 da Constituição Federal, segundo o qual não é possível ao Poder Legislativo deliberar acerca de medidas tendentes a abolir direitos e garantias fundamentais. Sendo a proteção integral da Criança e do Adolescente uma garantia fundamental desta parcela da sociedade, apresenta-se igualmente inalterável.
É manifestamente inconstitucional, portanto, propostas que visem a redução da maioridade penal. Além de violar a cláusula pétrea constitucional, a proposta de redução da idade penal vai contra parâmetros internacionais de proteção aos direitos humanos, como no caso da convenção sobre os direitos da criança ratificada pelo Brasil7. Com tal confirmação, o Brasil comprometeu-se internacionalmente a respeitar os direitos das crianças e adolescentes, estando, portanto, suas deliberações legislativas subordinadas a estas diretrizes.
Em poucas palavras: crianças e adolescentes são titulares de todos os direitos e garantias fundamentais pertencentes a todos os indivíduos e são detentores de uma proteção especial que lhes concede uma situação de direitos adicionais, igualmente fundamentais, que devem ser respeitados e que são intangíveis, nos termos da própria Constituição Federal.
O ECA e as formas de responsabilização de adolescentes acusados da prática de atos infracionais
Pela doutrina da proteção integral entende-se que crianças e adolescentes são sujeitos de direito em condições especiais por estarem passando por um processo de desenvolvimento biopsicossocial. Isto quer dizer que merecem ser tratadas com maior cuidado e atenção.
Atendendo ao texto constitucional, o legislador estabeleceu no Estatuto da Criança e do Adolescente, regras para proteger e responsabilizar crianças e adolescentes. Portanto, é preciso desde já desmistificar a idéia de que adolescentes autores de atos infracionais “fazem o que querem e ainda saem impunes”. A idéia de que adolescentes saem ilesos de processos judiciais quando autores de delitos é notícia que não se coaduna com a realidade jurídica brasileira.
O procedimento para apuração, imputação de ato infracional e responsabilização de adolescentes encontra-se descrito nos artigos 112 a 128 do Estatuto da Criança e do Adolescente. O artigo 1128, por sua vez, desfia uma série de medidas sócio-educativas aplicáveis a adolescentes autores de atos infracionais, sendo tais medidas variadas, abrangendo desde as mais brandas como a advertência até as mais severas como a internação.
A medida considerada mais severa, que implica em verdadeira privação de liberdade, já é amplamente aplicada pelas Varas da Infância e Juventude, em franco desrespeito ao ECA e à Constituição Federal. Conforme informações fornecidas pela própria Fundação Casa (ex-Febem), atualmente encontram-se privados de liberdade, em São Paulo, um total de 5.730 jovens, sendo que deste total 51% cometeram um delito de natureza patrimonial (notadamente o roubo), contra apenas 6% que cometeram homicídios dolosos9.
Não obstante o roubo possa ser crime considerado grave (na medida em que se configura com a violência física contra a vítima), a internação não parece ser a melhor solução. A privação de liberdade deveria ser, antes de tudo, reservada apenas para atos infracionais mais graves, como aqueles que resultam em morte da vítima.
Para os delitos de cunho puramente patrimonial, o Judiciário deveria destinar medidas como prestação de serviços à comunidade aliadas à liberdade Assistida, pronta inserção no sistema educacional e encaminhamento para programas de profissionalização. Tais medidas certamente produziriam efeitos sociais mais satisfatórios do que o pronto encarceramento de jovens em unidades de privação de liberdade.
Seria uma forma de viabilizar a responsabilização de jovens com as regras constitucionais e legais existentes. Com isso, a internação destinar-se-ia somente para aqueles crimes notadamente graves, como o homicídio doloso, o estupro etc. (crimes considerados hediondos pelo artigo 1º da Lei 8072/90)10.
Paralelamente à realidade jurídica, é preciso levar em conta os constantes apelos sociais pela redução da maioridade penal11, especialmente após fatos relevantes e de grande repercussão social como a morte da adolescente Liana Friedenbach em 2003 e da criança João Hélio em 2006.
Tais mobilizações sociais são importantes manifestações da comunidade e denotam o sentimento público em busca de seriedade nas punições, celeridade dos processos, justiça etc. No entanto, há que se levar em conta que a alteração das legislações penais, como resposta a crimes graves ocorridos na sociedade, leva à propulsão do chamado direito penal de emergência que, ao contrário do que se pode imaginar, não melhora o sistema penal criando mais rigor na aplicação das penas, mas antes estabelece disparidades e desproporcionalidades, prejudicando a apropriada resposta penal a crimes graves. O Estado deve assumir um papel de racionalizador das respostas penais, não podendo se deixar levar por fatos sociais isolados de grande clamor comunitário.
Antes de mais nada, propostas levadas pelo clamor popular são insufladas de sentimentos vingativos por parte da sociedade que se sente ofendida, violada e ameaçada ante crimes barbaramente cometidos. Ora, somente a título de exemplo, pode-se citar a polêmica Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8072/90) que foi promulgada com o intuito de endurecer o sistema penal e punir mais severamente autores de crimes graves (homicídio, latrocínio, estupro, tortura etc.)12.
O resultado de tal alteração legislativa parece não ter sido capaz de barrar a criminalidade, que constantemente vem se agravando e se mostrando mais cruel. Isso porque tal lei encontra-se em vigor há mais de dez anos! Ao que tudo indica, então, endurecimento penal não é a solução para a redução da violência. Como então seria possível prevenir a violência?
Segundo Cesare Beccaria, a mera certeza da punição (seja ela qual for) é suficiente para prevenir a ocorrência de delitos13. Portanto, pode-se concluir que o endurecimento de medidas repressivas destinadas aos adolescentes, ao contrário do que se pretende, pode contribuir para gerar um agravamento da violência perpetrada por jovens no Brasil.
Seria melhor aplicar a já existente legislação, de maneira proporcional ao delito praticado por um adolescente. A mera resposta vingativa e emocional não nos levará a bem social algum.
A situação das unidades de internação — questões práticas
As unidades de internação de adolescentes acusados da prática de atos infracionais mostram-se bastante ineficazes no seu intuito ressocializador. No mais das vezes, as unidades são insalubres, superlotadas e adotam práticas institucionais de tortura.
O fato é de notório conhecimento público e muitas organizações brasileiras e internacionais14 já se manifestaram no sentido de que o sistema prisional brasileiro e as unidades de internação de jovens não asseguram a ressocialização, mas antes de tudo são centros de violação dos direitos humanos.
Consta de reportagem do jornal O Estado de S.Paulo que o Brasil sofre de um déficit de vagas no sistema carcerário de 154,9 mil. Com a eventual redução da maioridade penal par 16 anos de idade, seria necessário ampliar o sistema carcerário brasileiro para abrigar tais jovens, inclusive construindo-lhes áreas reservadas, pois não podem ser privados de liberdade juntamente com adultos.
Será que o Estado brasileiro consegue suprir a falta de vagas e de condições dignas de cumprimento de pena? Será que a redução da maioridade para 16 anos não acarretará maior caos carcerário? Será que tal medida, ao revés do que se pretende, não promoverá ainda maior inserção dos jovens em organizações criminosas, que têm sua estrutura plenamente formada dentro dos presídios?
Com certeza, a colocação de jovens nesse sistema provocaria frontal violação aos seus direitos fundamentais (artigo 227, caput), visto que desconsideraria a situação de peculiar condição de desenvolvimento do adolescente e ainda o exporia a situação de risco. De sorte que, por todo o aqui exposto, não deve seguir tramitação a proposta de emenda constitucional para redução da maioridade penal para 16 anos. Espera-se que tal proposta seja rejeitada pela Câmara dos Deputados e que a sociedade seja esclarecida de uma vez por todas da inutilidade de tal medida.
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Tamara Amoroso Gonçalves é estudante do 5º ano do curso de direito da PUC-SP, assistente de pesquisa de Laura Davis Mattar no programa GRAL (Gênero, Reprodução, Ação e Liderança), da Fundação Carlos Chagas, com apoio da Fundação MacArthur (2005-2006) e assistente da profª dra. Silvia Pimentel no projeto de Mandato Participativo no Comitê CEDAW