A imprensa nacional deu conhecimento ao país sobre a condenação da senhora Eliana Tranchesi e outros envolvidos pertinentemente à operação narciso. Foi apenada a 94.5 anos de reclusão. A excelentíssima magistrada da 2a.Vara Federal de Guarulhos impôs esta condenação para dona da Daslu, loja de luxo, de SP, pela prática em concurso material crimes de descaminho, formação de quadrilha, descaminho tentado e falsidade ideológica.
Deste processo apenas tiraríamos algumas reflexões de ordem jurídica sob a ótica do direito penal.
O fato narrado com tipo penal cometido conforme a denúncia tem por objetividade jurídica a administração pública. A lei penal visa proteger a arrecadação de tributos e obstar a concorrência desleal no comércio enfim do ganho ilícito.
Todavia, pergunta-se: esta sentença condenatória em termos de justiça traria alguma lição deontológica para nação? Não. Teria efeito intimidativo? Não. Combateria a impunidade penal? Também, não. Compensaria colocar uma senhora portadora de câncer sério na cadeia? Também, não. De outro lado, seria razoável não aplicar nenhuma sanção? Também não? Se as provas conduziram a digna magistrada pela culpabilidade da ré, não seria melhor sequestrar todos os seus bens e fazê-la devolver ao cofre público, caso culpada com sentença transitada em julgado, o que de fato foi lesado? Caso esta solução não funcionasse, daí a restrição da liberdade mas não como uma pena de 94.5 que corresponde a prisão perpétua que o sistema constitucional impede. Não pode passar de 30 anos. No limite da pena em abstrato e com dosemetria justa. A pena aqui no Brasil, infelizmente nem intimida e nem ressocializa. A pena no Brasil é um nada jurídico. É uma piada. Nem sistema penitenciário organizado existe no Brasil e nada se faz. Todavia, algo tem que ser feito. É o direito posto.
Disse o mestre em direito: o direito se interpreta inteligentemente. Justificaria uma pena exasperada no tipo penal por exemplo, no latrocínio, sequestro com resultado morte, etc. mas não no caso noticiado.
No campo do direito processual penal, a prisão decretada ao meu ver, com todo respeito à digna magistrada e nós que já fomos magistrados e que tanto amamos a magistratura brasileira, foi flagrantemente equivocada, data vênia. Repito: a defesa social deve ser protegida e de outro lado, de haver o equilíbrio entre o direito de punir com o direito de defesa.Enfim,respeito ao princípio do contraditório,do devido processo legal, e aos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. Enfim, suum cuique tribuere.
Primeiro, em decorrência do princípio da inocência. Enquanto não transitar em julgado a sentença, a prisão não poderia ter sido decretada.
Segundo, a Lei 9.034,de 3.5.1995 que dispõe sobre a utilização de meios operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações criminosas, só não pode apelar quem for enquadrado e provado, crimes, em tese, em concurso material com o nomem juris de organização criminosa e não em outras espécies de concurso de agentes.
No caso telado, foi noticiado que a ré foi enquadrada em formação de quadrilha art.288 caput do CP. Se assim o é, difere juridicamente de organização criminosa bem como de associação criminosa e na doutrina há distinções nítidas. Destarte, também o tipo legal noticiado permite que a ré condenada responda em liberdade, consoante art.9º da mencionada lei. Qual é a razão que não se permite que a ré respondesse em liberdade, caso fosse enquadrada em organização criminosa e não em formação de quadrilha, porque atentatório a ordem pública, ensinamento do Prof. Guilherme de Souza Nucci p.259 apud Leis Penais e Processuais Penais Comentadas”. Ademais,o processo ultrapassou 120 dias impostos pelo art.8º da dita lei. O que justificaria o regime fechado inicial obrigatório para a organização criminosa, mas não para as outras espécies de concurso de agentes, segundo o mestre precitado. O ar.9º diz “o réu não poderá apelar em liberdade, nos crimes previstos nesta Lei. Reza o art.10 da Lei 9.034-1995 “os condenados por crimes decorrentes de organização criminosa iniciarão o cumprimento da pena em regime fechado, que não é o caso vertente, da Dona Daslu. A lei fala organização criminosa e não em quadrilha do art.288 do CPP. Diz a parêmia jurídica: “ao intérprete não é dado distinguir onde a lei não distingue”.
Ao meu ver, antes que submetesse a ré ao duplo grau de jurisdição com a prisão haveria uma antecipação de pena, o que o sistema penal veda.
Os argumentos ora albergados foram referendados pelas instâncias superiores, em seguida com a concessão do habeas corpus para que ela recorresse em liberdade, no que andou bem os tribunais superiores, e esta é a minha opinião, salvo melhor juízo. Repita-se: a sentença deve conciliar a razão com o coração. A aplicação severa da lei poder-se-á cometer injustiça”, disse o jurista Cícero.
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Abrão Razuk
Ex. Magistrado, advogado e autor de dois livros “Da penhora” e “Enfoques do Direito Processual Civil”, é colaborador da Enciclopédia Saraiva com dois verbetes. – é membro e vice-presidente da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras – Campo Grande/MS – e-mail abraorazukadv@hotmail.com