Sérgio Rodrigo Martínez
professor adjunto do curso de Direito da Universidade Estadual do Oeste do Paraná, doutor em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná
1. A Humanização da Ação Pedagógica
Paulo Freire, em sua obra Pedagogia do Oprimido, trata da questão da “vocação” e da “desumanização”. “Vocação” humanitária individual no sentido do “eu” que busca respostas a seus problemas, visando alcançar a cidadania, a justiça, o “ser mais” e, por que não dizer, a própria felicidade, como realização pessoal e coletiva. “Desumanização”, o “ser menos”, como antítese do pensamento anteriormente descrito, no sentido de opressão e de injustiça.
A questão da “vocação” e da “desumanização” apresenta-se como uma dialética humana verificada por Freud, na obra Mal-estar da Civilização, entre um “criar” e um “instinto de destruição”, que prevalece nos caminhos da sociedade contemporânea belicista, apesar dos avanços conscienciais já obtidos.
No ensino jurídico tal dialética pode ser verificada em situações nas quais tanto discentes como docentes se apresentam em posições opostas, ora humanizados, ora como desumanizantes.
A antítese é bem delimitada pelo processo de ensino que acaba por transformar vocações e ideais em um discurso racional falsamente neutro, dogmático e tecnicista, cuja existência somente se justifica para a manutenção de privilégios e desigualdades sociais seculares.
Dentro desse contexto, as faculdades, em sua maioria, passam a ser representantes de um pensamento unívoco de mercado, mantendo os perfis dos futuros profissionais dentro de um modelo que reproduz, nos futuros detentores da função de operacionalizar a Jurisdição, os mesmos valores tradicionais surgidos no Liberalismo.
Verifica-se aí todo um ciclo vicioso a indicar o caminho enviesado a seguir: uma postura dogmática e tradicional dos docentes e uma formação direcionada dos discentes em favor de um contexto excludente de mercado, díspar da realidade social.
Uma possível resposta na tentativa de minimizar tais antagonismos está na instauração de uma pedagogia jurídica conscientizadora, visando à formação de uma nova racionalidade a influenciar a estrutura econômica da sociedade, pela premissa da tutela dos Direitos Humanos. Esse processo educativo pressupõe a crítica teórica, mas também uma efetiva interação perante a realidade.
Isso se faz pela conjugação do ensino e da pesquisa com a extensão, cujo efeito maior seja a saída do mundo das idéias dos bancos escolares, em busca do enfrentamento da realidade, verificados na práxis do enfrentamento dos problemas sociais. Humanização que se produz pelo impacto que a realidade produz como embasamento da teoria, fazendo a todos, docentes e discentes, visualizarem-se como responsáveis pelo presente e futuro da sociedade.
Desse modo, uma metodologia de intervenção deve gerar condições para uma mudança individual na percepção dos discursos da racionalidade jurídica, em face de seus conflitos reais com a efetiva aplicabilidade dos Direitos Humanos. Daí se pensar nas possibilidades de atuação de um grupo de estudos capaz de formar operadores do Direito com “vocação” para responsabilidades e missão social, ou, ao menos, com a noção de que as salas de aula podem ser uma caricatura mal acabada da realidade social brasileira.
2. A Superação da Educação Bancária
Paulo Freire caracteriza a “educação bancária” como o procedimento metodológico de ensino que privilegia o ato de repetição e memorização do conteúdo ensinado. Assim, o docente, figurativamente, por meio de aulas expositivas, “deposita” na cabeça do aluno conceitos a serem exigidos, posteriormente, na avaliação, quando então, aquele obtém o “extrato” daquilo que foi “depositado”.
A afirmação da predominância da “educação bancária” no ensino jurídico deve ser vista com seriedade. Tal análise se faz a partir da constatação do excesso de teoria que circunda as salas de aula das Faculdades de Direito. Questionar, negar a legitimidade das estruturas jurídicas arcaicas não é algo possível na “educação bancária”, pois, pelo ensino tradicional, meramente expositivo, cabe ao aluno apenas assimilar a realidade teórica transmitida pelo professor. Memorizar e repetir são as saídas possíveis, já que serão essas as atividades mentais a serem exigidas nas avaliações, usualmente caracterizadas como “provas”.
Mantida a prevalência das aulas expositivas como procedimento didático-pedagógico, muito pouco se pode fazer para alterar o atual estado das coisas em matéria de ensino jurídico, pois que, tais perfis de competências e habilidades são referenciais inadequados à formação profissional competente para atender as demandas sociais atuais.
Segundo Paulo Freire, essa estrutura expositiva é capaz de reduzir o ensino a algo insubsistente, muito aquém de possibilitar uma efetividade do processo de ensino e aprendizagem em face do mundo real. Nesse sentido, regras jurídicas potencialmente injustas ou até tecnicamente incorretas (inconstitucionais), por vezes contrárias aos interesses da maioria da população, tem sua racionalidade e aceitação reproduzida nos cenários das salas de aula, pelos discursos recriados nas transmissões dos docentes. Como exemplo, o que dizer da validação jurídica das ditaduras?
Criam-se, daí, como se pode pressupor, profissionais “bancários” do Direito, com atuação centrada nas racionalidades jurídicas assimiladas na academia.
A antítese a esse estado de coisas inicia-se com a exigência da presença de um docente com perfil de agente humanizador. Apto a utilizar conteúdos e metodologias de ensino sensíveis às transformações culturais e novas demandas sociais existentes. Isso é necessário porque se deve levar em consideração que o docente de hoje nada mais foi do que o aluno do ensino jurídico de ontem, potencialmente educado mediante a utilização de aulas expositivas (“bancárias”).
Integrando-se tais idéias, um perfil sugestivo para a docência contemporânea no ensino jurídico poderia conter os seguintes elementos:
transmissão crítica e criativa dos conhecimentos, obtidos mediante constante processo de investigação;
problematização e estimulação à produção de soluções harmônicas com conteúdo social;
utilização diversificada de técnicas pedagógicas de ensino e aprendizagem;
discernimento e auto-avaliação pedagógica (reciclagem constante);
liderança em formação de grupos de estudo;
inteligência emocional;
ética voltada à responsabilidade social.
Para ocorrerem mudanças substanciais nos cursos jurídicos, mister se faz o reconhecimento da prevalência da “educação bancária” e seu enfrentamento pelo acolhimento de novos perfis docentes a serem seguidos pelas Faculdades de Direito.
3. A Dialogicidade nos Cursos de Direito
Dialogicidade, segundo Paulo Freire, está em permitir aos alunos agir e refletir sobre a ação pedagógica realizada, diferente de um refletir exclusivo da mente do professor. Aí se chega à práxis, ou a “teoria do fazer”, com ação e reflexão simultâneas, em reciprocidade.
O diálogo ganha importância ao permitir a liberdade de expressão, ao conceder aos participantes do processo de ensino e aprendizagem o controle da ação. Dialogar para refletir, dizer para construir seu entendimento. Não há como questionar sem diálogo, pois monólogo significa imposição do conhecimento. Dialogar significa expor-se em público, combater a imposição de conteúdos e ajustar coletivamente a compreensão dialética do conhecimento problematizado, por novas vias de esclarecimento.
Dialogar no Ensino Jurídico é viável e necessário. Discutir teses doutrinárias, enfrentar jurisprudências conflitantes, questionar leis com base em princípios constitucionais e humanitários, sugerir e investigar novas abordagens é algo acessível ao professor do Direito. Não se trata de o próprio professor apresentar o questionamento e sua solução, trata-se de permitir ao aluno, individualmente ou em grupo, buscar a resolução do conflito, constituindo criativamente soluções.
Em via adversa, a ação antidialógica dos professores estaria sua atuação como paradigma da estrutura tradicional imposta, no sentido de conduzir a aprendizagem dos alunos à repetição e à memorização de conceitos preconcebidos sobre a realidade jurídica e social, a qual também lhe foi posta durante sua formação.
A mudança para a ação docente dialógica está na adoção do lema cooperação em sala de aula, na qual o professor deixa o seu papel de propagandista de regras jurídicas e passa a desempenhar, lado a lado com seus alunos, uma parceria transformadora da sociedade, na revisão do sentido de suas regras. Nesse processo, a interação (cooperação) entre professor e alunos é fundamental para o desenvolvimento das atividades de ensino dialógicas. Se, na abordagem tradicional ou “educação bancária”, o professor se coloca em um pedestal de autoridade, afastando-se do contado direto com os alunos, na pedagógica crítica esse contato não pode mais ser evitado.
Com essa mudança, o professor dialógico passa acompanhar o desenvolvimento da história educacional dos alunos. Aqui surge o ponto de rompimento com a tradicional escola jurídica, das aulas magistrais ou expositivas. A surgimento do processo pedagógico dialógico, senão novo, ao menos é mais democrático, no qual o professor não é o operador do Direito, mas o educador de fato. Ele tem o dever de garantir aos alunos o máximo de acesso eficaz e crítico ao conhecimento proposto no conteúdo programático, alicerçado na realidade existencial do grupo e nos seus pontos fortes individualizados.
Outra ação dialógica a ser adotada está na organização profissional da atividade pedagógica. A organização inicia-se pela preparação do conteúdo programático a ser ministrado no ano, semestre, bimestre, mês, aula, e finda-se com o feedback reprogramático das avaliações realizadas. Num processo cíclico de auto e heteroconhecimento, obtido por meio de avaliações, que sejam capazes de orientar o professor a conhecer as aptidões de seus alunos.
O início da ação dialógica organizadora se dá antes do contato entre professor e aluno, e depende da escolha de opções para o conteúdo programático, a serem debatidas com os alunos. Opções de conteúdo que não devem só permitir aos alunos pensar criticamente sobre o estudo no semestre ou ano letivo, mas também estar de acordo com sua percepção da realidade. Ou seja, eleger um conteúdo programático sob a forma de uma pedagogia crítica requer a dialogicidade da dialogicidade, na montagem cooperativa dos conteúdos a serem objeto de futuro diálogo em sala de aula.
Um exemplo bem sucedido de investigação para a elaboração de um conteúdo programático seria aquele que leva em consideração, por meio de questionários, entrevistas e dissertações, a realidade daquele determinado grupo de alunos, focando a aprendizagem em tópicos correlacionados com aquela base vivencial em que estão situados.
Quanto ao processo de avaliação, na pedagogia crítica de Paulo Freire, a avaliação escolar tem um significado diverso daquele verificado na “educação bancária” tradicional dos cursos de Direito. Aqui, a avaliação é diagnóstica e somativa, seus intuitos são de possibilitar ao professor medir o rendimento dos alunos com vistas na análise de seu próprio rendimento como educador. Nesse sentido, a avaliação não mais atua como um instrumento punitivo ou retributivo, mas como um ato de constatação se a ação do professor possibilitou a seus alunos cumprir os objetivos traçados na programação das atividades.
A partir da formulação dos conteúdos, passa-se à preparação central da metodologia de trabalho em sala de aula, tendo por base o processo de problematização dos conhecimentos, em face da realidade. Problematizar a partir da própria realidade do aluno é permitir que ele possa refletir sobre sua situação social, percebendo-a no contexto histórico.
A problematização é essencial no processo de ensino e aprendizagem dialógico, visto que possibilita aos alunos assumir o papel questionador dos conteúdos. Permite também, instigar a heurística de alternativas jurídicas para a solução dos conflitos, ou seja, a criatividade necessária para inovar e melhorar a eficácia do sistema jurídico e jurisdicional.
Como ressalta Paulo Freire, todo processo de mudança crítica deve respeitar em primeiro lugar a estrutura tradicional cristalizada. Logo, a dialogicidade educacional não busca eliminar o tradicional (“oprimir o opressor”), mas apenas contribuir para o seu aprimoramento constante. Desse modo, qualquer modificação para melhor, na busca do “ser mais”, consiste em garantir a todos a liberdade de posicionamento, de expressão e de manutenção de sua práxis educacional.
Em geral, isso representa um grande dilema existencial não só para o ensino jurídico, mas para a atividade educacional em todas as áreas do conhecimento, pois a busca por “ser mais” implica comparar e também permitir que o “ser mais” advenha do outro, cuja visão de mundo seja diversa e se mantenha.
Daí o entendimento de Paulo Freire de que só há liberdade e libertação individual, quando se entende a posição do outro e não lhe repete os atos na mesma oportunidade (exemplo do aluno crítico ao processo pedagógico, que depois assume a idêntica postura de professor tradicional). Evoluir é antes de tudo aprender a respeitar diferenças e agir com intencionalidade transformadora, mas sem imposições, educando pelo auto-exemplo. Isso implica em buscar e demonstrar, em suas ações, aquilo que seja “melhor para todos”, dentro de uma realidade em que sua ação possa ser vista, copiada, criticada e até mesmo aprimorada, representando um ciclo de aprendizagem onde todos evoluem continuamente. Contrariando os versos cantados por Elis Regina, “ainda somos os mesmos”, porém não mais “vivemos como os nossos pais…”.
Referências Bibliográficas
FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 27.ª ed. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1987.
MARTÍNEZ, Sergio Rodrigo. Manual da educação jurídica. Curitiba: Juruá, 2003.
MARTÍNEZ, Sergio Rodrigo. Pedagogia jurídica. Curitiba: Juruá, 2002.