Hugo Cavalcanti Melo Filho*
Na esteira do discurso fácil e desleal de atribuir toda a responsabilidade pelas mazelas do sistema previdenciário aos “privilegiados” servidores públicos, juízes e membros do Ministério Público, ampliado e difundido por propaganda oficial em todos os meios de comunicação, o governo encaminhou ao Congresso Nacional a sua proposta de Reforma da Previdência.
De nada adiantaram: atos públicos, manifestações das entidades dos servidores e magistrados, protestos de muitos parlamentares da base do governo, estudos comprovando a disparidade entre o discurso governista e as verdadeiras razões dos problemas observados na Previdência. Debalde foi, inclusive, a discussão travada nos Grupos de Trabalho do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (para inglês ver). Os propósitos anunciados na primeira semana de governo foram todos contemplados na PEC entregue ao presidente da Câmara dos Deputados. Para não ser injusto, uma única diferença: pouparam da degola os militares, em respeito ao “rumor de sabres”, como diria Jorge Zeverucha.
Exceto pela moralizante fixação do teto de remuneração para o serviço público, providência reclamada pela magistratura desde junho de 1998, a proposta governamental é um desastre para os servidores e ainda pior para juízes e membros do Ministério Público. Caso venha a ser aprovada, eliminará, de uma só vez, todos os pilares que sustentam o atual Regime Próprio: paridade entre proventos e vencimentos, integralidade de proventos, isenção de inativos e pensionistas, aspecto que não será aqui examinado.
Talvez o mais grave – e é o que será ressaltado – seja a criação de cinco categorias de servidores públicos no Brasil, a mais eficaz medida de desmonte do serviço público jamais perpetrada em nosso país. Com a aprovação, passaríamos a ter, com diferentes regras de aposentadoria, a saber: a) os servidores que já estejam aposentados; b) os que, embora não aposentados, tenham implementado as condições para a aposentadoria; c) os servidores que ingressaram antes da promulgação da Emenda Constitucional 20/98; d) os que ingressarem no serviço público antes da promulgação da Emenda proposta, e e) os que ingressarem no serviço público após a promulgação da Emenda proposta.
Com efeito, os aposentados continuariam com direito à paridade, isto é, seus proventos e pensões serão revistos na mesma proporção e na mesma data, sempre que se modificar a remuneração dos servidores em atividade. Além disso, continuarão sendo alcançados por “quaisquer benefícios ou vantagens posteriormente concedidos aos servidores em atividade, inclusive quando decorrentes da transformação ou reclassificação do cargo ou função em que se deu aposentadoria ou que serviu de referência para a concessão da pensão, na forma da lei”.
Mas não se livrariam da contribuição previdenciária, porque passariam a sofrer incidência da alíquota de 11% sobre o valor que exceder o limite de isenção adotado para o imposto de renda, hoje de R$ 1.058,00.
Aqueles que, embora em atividade, já houvessem implementado as condições para a aposentadoria com proventos integrais ou proporcionais poderiam se aposentar segundo as regras vigentes na data em que preencheram os requisitos, inclusive na hipótese do § 1.º, do atual artigo 8.º, da EC 20/98 (regra do pedágio). A isenção de que hoje são beneficiários passaria a ter natureza de abono e cessaria com a aposentadoria, porque, uma vez aposentados, passarão a contribuir, nos moldes indicados no parágrafo anterior. De toda sorte, manteriam o direito à paridade, como os que já se encontram aposentados.
Os servidores que não reunissem os requisitos para a aposentadoria até a promulgação da Emenda não poderiam se beneficiar da regra do pedágio. Somente teriam direito à aposentação com proventos integrais quando completassem 60 anos de idade e 35 de contribuição (os homens), e 55 anos de idade e 30 de contribuição (as mulheres). Para aposentadoria com proventos proporcionais ao tempo de contribuição, continuariam valendo as idades de 65 anos (homens), e 60 anos (mulher). Cumpre ressaltar que seria considerado “provento integral” o valor não superior à remuneração do cargo em que se deu a aposentadoria, calculado a partir dos valores das remunerações que serviram de base para as contribuições feitas aos Regimes Geral e Próprio de previdência, ao longo de sua vida profissional.
Não teriam os proventos limitados ao valor máximo pago no Regime Geral, que seria R$ 2.400,00, a menos que viesse a ser instituído o regime complementar público, previsto na PEC e após prévia e expressa opção do servidor. Aposentados, continuariam contribuindo para a previdência, sobre tudo o que excedesse o valor máximo de benefício (R$ 2.400,00). Não teriam direito à paridade com os servidores em atividade. Os seus benefícios seriam reajustados apenas “para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real, conforme critérios estabelecidos em lei”.
Mesmo os que se enquadram nesta hipótese seriam divididos em dois grupos: os que ingressaram no serviço público antes e depois da EC nº 20/98. Assim, os que entraram em exercício antes de dezembro de 1998, desde que tivessem o tempo de contribuição exigido, poderiam requerer aposentadoria a partir dos 48 anos, se mulher, e 53 anos, se homem. Ainda assim, para cada ano que anteciparem em relação às idades de 60 anos (homens) e 55 anos (mulher), teriam desconto de 5%. Os que entraram depois de dezembro de 1998, nem isso.
Por último, os que ingressarem após a promulgação da Emenda proposta. Além de todos as desvantagens elencadas no caso anterior, teriam os seus proventos limitados ao valor máximo de benefício, bastando para isso a instituição do regime de previdência complementar.
Como aceitar, passivamente, a aprovação de tais medidas? E o resultado do acolhimento da Proposta poderá ser ainda pior para a magistratura. Preocupa-nos o fato de não haver extensão expressa à magistratura das regras que resguardam direitos aos que já se encontrarem em atividade por ocasião da promulgação da Emenda. Todo o texto da PEC, até as alterações do artigo 8.º da EC 20/98, se aplica aos magistrados, por força do § 2.º, do mesmo artigo 8.º, e do artigo 93, VI, da Constituição. Mas a partir do artigo 3.º da PEC as referências são sempre aos “servidores”. Será que se pretende impingir aos magistrados condições ainda mais rigorosas? Com a palavra o Congresso Nacional.
Hugo Cavalcanti Melo Filho é presidente da Anamatra