por José Levi Mello do Amaral Júnior
A Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004 (Reforma do Poder Judiciário) eliminou uma polêmica que havia na doutrina brasileira: aquela sobre o status dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos.
Em outras palavras, a Emenda nº 45 esclareceu qual a posição hierárquica dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos no sistema de fontes do Direito brasileiro.
Desde a Constituição do Império do Brasil, de 1824, o Direito pátrio pratica o mecanismo de recepção da norma internacional. Vale destacar: pratica-o, desde então, em termos mais ou menos uniformes.
De início, o Chefe de Estado firma, no âmbito internacional, o tratado ou convenção. Admite-se que a assinatura se dê por um plenipotenciário do Chefe de Estado (em geral, o Ministro de Estado das Relações Exteriores ou um Embaixador).
A seguir, o ato é submetido à aprovação definitiva do Congresso Nacional, o que acontece por meio de decreto legislativo (inciso I do artigo 49 da Constituição de 1988).
Detalhe: o decreto legislativo é – segundo explica Pontes de Miranda – uma lei sem sanção, ou seja, um ato do Congresso Nacional que tem a mesma estatura de uma lei, mas que se completa sem a intervenção do Presidente da República. Manifesta uma competência que é exclusiva do Poder Legislativo (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969, tomo 3, 2ª edição, São Paulo: RT, 1970, p. 142).
Enfim, aprovado, o ato internacional é promulgado. A promulgação se dá por decreto presidencial. É quando o tratado ou convenção recebe o “exequatur”, isto é, passa a ter eficácia no Direito brasileiro. O decreto presidencial de promulgação não é imperativo constitucional ou legal. Trata-se de uma “praxe tão antiga quanto a Independência e os primeiros exercícios convencionais do Império” (REZEK, José Francisco. Direito internacional público, 6ª edição, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 83).
Assim, parece tranqüilo concluir que o tratado internacional, seja qual for a sua matéria, inclusive direitos humanos, ingressa no Direito brasileiro com status, com força, com hierarquia de lei. Mais especificamente, comporta-se como uma lei ordinária, porque a maioria requerida para a aprovação do decreto legislativo que recepciona o tratado é a mesma exigida para a aprovação de uma lei ordinária: a maioria simples (artigo 47 da Constituição de 1988).
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal segue este entendimento (por exemplo, o RE nº 80.004/SE, relator para o Acórdão o Ministro Cunha Peixoto, julgado em 1o de junho de 1977, e a ADInMC nº 1.480-3/DF, relator o Ministro Celso de Mello, julgada em 4 de setembro de 1997).
No entanto, surgiu polêmica no que toca a tratados internacionais sobre direitos humanos. Houve quem advogasse a tese de que esses teriam estatura maior. Suas normas valeriam como se normas constitucionais fossem. Assim seria por força do parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição de 1988:
“Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”
Com efeito, ressalvada a declaração final, a norma aludida não é novidade no constitucionalismo pátrio.
O Ministro Aliomar Baleeiro, comentando norma similar constante da Constituição de 1946 (“Art. 144. A especificação dos direitos e garantias expressas nesta Constituição não exclui outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios que ela adota.”) afirmava não se tratar de dispositivo auto-executável, pressupondo um direito civil a ser legislado pela União (RE nº 59.871/RS, Relator o Ministro Aliomar Baleeiro, julgado em 31 de maio de 1966).
Por sua vez, Gilmar Ferreira Mendes, atento às características do mecanismo de recepção do texto constitucional originário – aprovação de decreto legislativo por maioria simples – advertia que o simples reconhecimento de estatura constitucional aos tratados internacionais sobre direitos humanos implicaria “ admitir que a Constituição concebida como um texto rígido tornar-se-ia flexível, pelo menos para o efeito da adição de novos direitos”. Ademais, eventual contrariedade a tratado dá ensejo a recurso especial, e não a recurso extraordinário (MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional, São Paulo: Saraiva, 1996, p. 178).
Neste sentido é a também sempre precisa lição de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, que lembra, ainda, a natureza prolixa da enumeração de direitos da Constituição de 1988. Dela, dificilmente algum fica de fora. Assim, afirma, parece inútil uma regra como a do § 2ª do art. 5º (FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais, 5ª edição, São Paulo: Saraiva, 2002, p. 100 e 101).
O Supremo Tribunal Federal aplicou o mesmo entendimento para os tratados ou convenções internacionais sobre direitos humanos. Confira-se, a propósito, julgamento em que foi debatida a Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de São José da Costa Rica (HC nº 72.131-1/RJ, Relator o Ministro Moreira Alves, julgado em 23 de novembro de 1995).
A Emenda nº 45 consagrou esta leitura ao acrescentar o seguinte parágrafo 3º ao artigo 5º da Constituição de1988:
“Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”
Portanto, os tratados ou convenções internacionais sobre direitos humanos que sejam – ou melhor, desde que sejam – recepcionados nos termos do processo de aprovação das emendas constitucionais (art. 60 da Constituição de 1988) terão o status das normas constitucionais.
Por outro lado, os tratados ou convenções internacionais sobre direitos humanos recepcionados segundo o mecanismo usual de recepção – aquele por meio de decreto legislativo – terão, ou melhor, continuarão a ter, induvidosamente, força de lei ordinária.
As duas vias convivem. O parágrafo 3º do art. 5º da Constituição de 1988 faculta a recepção dos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos por intermédio de uma emenda constitucional e não exclui a recepção pelo mecanismo tradicional, por meio de um decreto legislativo.
Em verdade, a maior virtude do novo dispositivo constitucional é sepultar a polêmica referida. Com efeito, não traz nenhuma novidade. Isso porque, já no modelo constitucional originário de 1988, nada impedia que o conteúdo de um tratado ou convenção internacional fosse posto em uma proposta de emenda constitucional – a ser deliberada nos termos do art. 60 da Constituição de 1988 – e viesse a vigorar, por exemplo, como uma lei constitucional autônoma.
O que não se poderia admitir – e o parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição de 1988 não o admite – é que um tratado internacional (ainda que sobre direitos humanos), aprovado por maioria simples no Congresso Nacional, gozasse da força de uma norma constitucional sem ter cumprido o especialíssimo processo de emenda do artigo 60 da Constituição de 1988.
Andou bem – muitíssimo bem – no particular a Emenda nº 45.
Revista Consultor Jurídico, 26 de Janeiro de 2005