Reforma trabalhista altera posição de sindicatos na improbidade administrativa

Autor: Rafael Carvalho Rezende Oliveira (*)

 

O presente ensaio tem por objetivo investigar a posição jurídica dos sindicatos no contexto da Lei 8.429/1992 (Lei de Improbidade Administrativa – LIA) a partir da promulgação da Lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista).

Inicialmente, é relevante destacar que a incidência da LIA depende da prática do ato de improbidade administrativa (artigos 9º, 10, 10-A e 11 da LIA) por agentes públicos, isoladamente ou em conluio com terceiros (artigos 2º e 3º da LIA), contra a Administração Pública direta e indireta e demais entidades indicadas no artigo 1º da LIA.

Enquanto o sujeito ativo é aquele que pratica o ato de improbidade e que, portanto, será réu na respectiva ação judicial de improbidade administrativa, o sujeito passivo é a vítima do ato de improbidade.

As definições dos sujeitos passivos e ativos são relacionais e interligadas, ou seja, somente será considerado ato de improbidade administrativa aquele praticado pelos referidos sujeitos ativos contra os sujeitos passivos enumerados no artigo 1º da LIA.

Quanto aos sujeitos ativos, os atos de improbidade podem ser praticados por agentes públicos, conforme definição ampla fornecida pelo artigo 2º da LIA:

“Art. 2.º Reputa-se agente público, para os efeitos desta lei, todo aquele que exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nas entidades mencionadas no artigo anterior”.

Os agentes públicos, portanto, são as pessoas físicas responsáveis pela manifestação de vontade do Estado e a função pública, no caso, pode ser exercida de forma remunerada ou gratuita; definitiva ou temporária; com ou sem vínculo formal com o Estado.

Ao lado dos agentes públicos, o artigo 3º da LIA admite que a improbidade seja pratica, ainda, por aquele que, “mesmo não sendo agente público, induza ou concorra para a prática do ato de improbidade ou dele se beneficie sob qualquer forma direta ou indireta”.

De acordo com a referida norma, a aplicação das sanções de improbidade elencadas no artigo 12 da Lei 8.429/1992 aos terceiros pressupõe a prática de improbidade administrativa por agentes públicos.

Isto porque o artigo 3º da Lei 8.429/1992 exige condutas por parte de terceiros, vinculados aos agentes públicos. Induzir ou concorrer para a improbidade depende necessariamente do conluio com determinado agente público.

Da mesma forma, ao mencionar o benefício, direto ou indireto, com a prática da improbidade, a referida norma parte da premissa de que o ato de improbidade administrativa foi praticado pelo agente público. Em suma: caso não seja comprovada a prática de improbidade por agente público, não serão aplicadas as sanções de improbidade administrativa ao terceiro.[1]

O STJ tem exigido a presença do agente público no polo passivo da ação de improbidade administrativa como pressuposto para aplicação das sanções da Lei 8.429/1992 aos particulares (terceiros), afigurando-se legítima, no entanto, a propositura de ação civil pública em face exclusivamente do particular para ressarcimento ao erário.[2]

No tocante à incidência da LIA sobre as pessoas jurídicas, notadamente na qualidade de “terceiro” (artigo 3º da LIA), a doutrina apresenta posições divergentes.

Parcela da doutrina sustenta que as pessoas jurídicas não podem ser consideradas sujeitos ativos da improbidade. Isto porque a referida norma exige a indução e/ou o concurso para a prática do ato de improbidade, atitudes que somente poderiam ser praticadas por pessoas físicas.[3]

Entendemos, contudo, que os terceiros, mencionados no artigo 3º da LIA, referem-se tanto às pessoas físicas quanto às pessoas jurídicas.[4] Da mesma forma, o STJ já decidiu que “as pessoas jurídicas que participem ou se beneficiem dos atos de improbidade sujeitam-se à Lei 8.429/1992”.[5]

A possibilidade de enquadramento das pessoas jurídicas como “terceiros” na prática de atos de improbidade é justificada a partir dos seguintes argumentos: a) a norma não faz distinção expressa entre pessoas físicas e jurídicas, não justificando a restrição na sua interpretação; b) ainda que os verbos “induzir” e “concorrer” tenham relação com condutas de pessoas físicas, a norma considera terceiro aquele que se beneficie da improbidade sob qualquer forma direta ou indireta, o que é perfeitamente aplicável às pessoas jurídicas; c) as sanções de improbidade são aplicáveis, “no que couber”, aos terceiros, havendo compatibilidade entre várias sanções e as pessoas jurídicas, como ocorre, por exemplo, no ressarcimento ao erário; d) a pessoa jurídica, enquanto sujeito de direito, possui personalidade jurídica própria e não se confunde com os seus sócios, razão pela qual pode se beneficiar do ato de improbidade, independentemente do benefício de todos os seus sócios; e) as pessoas jurídicas respondem civilmente pelos danos causados por seus prepostos e dirigentes, não havendo motivo para se afastar a responsabilidade no caso de improbidade administrativa.

Ora, a partir da premissa de que as pessoas jurídicas podem praticar atos de improbidade administrativa, sujeitando-se, no que couber, às sanções tipificadas no artigo 12 da LIA, nada obsta que os sindicatos sejam responsabilizados por eventuais atos de improbidade praticados por seus membros.

Fixada a possibilidade de enquadramento dos sindicatos como potenciais sujeitos ativos, na forma do artigo3º da LIA, analisaremos, a seguir, a (in)viabilidade do seu enquadramento como sujeito passivo (vítima) da improbidade.

Nesse ponto, é fundamental a interpretação do artigo inaugural da Lei de Improbidade.

Ao indicar as vítimas da improbidade administrativa, o artigo 1º, caput, da LIA faz referência à “entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual”.

Em complemento, o parágrafo único do citado dispositivo legal dispõe que também pode ser vítima a “entidade que receba subvenção, benefício ou incentivo, fiscal ou creditício, de órgão público bem como daquelas para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com menos de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual, limitando-se, nestes casos, a sanção patrimonial à repercussão do ilícito sobre a contribuição dos cofres públicos”.

Conforme destacamos em obra específica sobre o tema, a interpretação adequada do parágrafo único do artigo 1º da LIA seria a restrição da sua incidência às entidades que percebam individualmente tais benefícios para realização de interesses públicos específicos.[6]

De forma semelhante, Emerson Garcia sustenta a inaplicabilidade da LIA às entidades que recebam subvenções, benefícios ou incentivos genéricos da Administração, exigindo-se que o recebimento destes tipos de fomento esteja “associado à consecução de determinado fim de interesse público, cuja individualização deve resultar clara pelas circunstâncias de sua concessão”, sob pena de incluirmos no conceito de sujeitos passivos da improbidade administrativa todas as microempresas e empresas de pequeno porte do País, que recebem tratamento jurídico diferenciado (artigos 146, III, d, 170, IX, e 179 da CRFB; LC 123/2006), bem como as pessoas físicas isentas do Imposto de Renda.[7]

Em suma, não se enquadram no conceito de sujeito passivo da improbidade administrativa as entidades que recebem subvenções, benefícios ou incentivos genéricos da Administração, desvinculados de interesses públicos individualizados a serem atendidos.

A questão é saber se os sindicatos se encaixam no caput ou no parágrafo único do artigo 1º da LIA.

Registre-se, desde logo, que os sindicatos são pessoas jurídicas de direito privado que não sofrem interferência ou intervenção do Poder Público, conforme dispõe o artigo 8º, I, da CRFB.[8]

Não obstante a natureza privada, os sindicatos devem registrar seus estatutos no Ministério do Trabalho, na forma do artigo 558 da CLT, conforme entendimento fixado na Súmula 677 do STF, que estabelece: “Até que lei venha a dispor a respeito, incumbe ao Ministério do Trabalho proceder ao registro das entidades sindicais e zelar pela observância do princípio da unicidade”.

Tradicionalmente, os sindicatos, pessoas jurídicas de direito privado, poderiam ser considerados vítimas da improbidade e legitimados ativos para a respectiva ação judicial, uma vez que eram destinatários de contribuições sindicais compulsórias que ostentavam natureza tributária.[9]

As contribuições sindicais sempre foram consideradas contribuições parafiscais, espécies de tributos (artigo 149 da CRFB; artigo 217, I, do CTN; e artigos 578 a 610 da CLT). O caráter parafiscal da contribuição significa que as receitas auferidas serão destinadas, no caso, aos sindicatos e não ao orçamento geral do Estado.[10]

Em razão da destinação específica de tributos aos sindicatos, tais pessoas jurídicas integravam o rol de sujeitos passivos potenciais da improbidade, uma vez que se inserem no conceito de “entidade para cuja criação ou custeio o erário haja concorrido ou concorra com mais de cinquenta por cento do patrimônio ou da receita anual”, previsto no artigo 1º da Lei 8.429/1992.[11]

No caso, o erário deve ser interpretado de forma ampla para englobar os recursos provenientes do orçamento, bem como os recursos de natureza tributária, que não ingressam no orçamento, destinados às pessoas privadas indicadas pelo ordenamento jurídico, como ocorre no caso dos sindicatos.

Contudo, com a alteração dos artigos 578 e 579 da CLT pela Lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista), a contribuição sindical deixou de ser obrigatória e passou a depender de prévia e expressa autorização dos que participarem de uma determinada categoria econômica ou profissional, ou de uma profissão liberal.

Vale dizer: a Reforma Trabalhista retirou a compulsoriedade da contribuição sindical e, com isso, alterou a sua natureza jurídica que deixou de ser tributária.

Destarte, com a ausência de obrigatoriedade da contribuição sindical, os sindicatos, a partir de agora, não poderão ser enquadrados como potenciais vítimas da improbidade administrativa, uma vez que deixam de se enquadrar no artigo 1º da LIA.

 

 

 

Autor: Rafael Carvalho Rezende Oliveira  é procurador do município do Rio de Janeiro, advogado e árbitro, sócio fundador do escritório Rafael Oliveira Advogados Associados. É pós-doutor pela Fordham University School of Law (New York), doutor em Direito pela UVA-RJ, mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ e especialista em Direito do Estado pela Uerj. Também é membro do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro (Idaerj), professor adjunto de Direito Administrativo do IBMEC. Leciona na Emerj, no Curso Forum e em cursos de pós-graduação da FGV e Cândido Mendes.


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