Autor: Rogerio Neiva Pinheiro (*)
O tema “reforma trabalhista” pode ter muitos sentidos e alcances, inclusive a depender do momento em que for tratado. Nos dias de hoje a referida expressão tem se limitado ao Projeto de Lei 6.787/2016.
Nos debates que estão se desenvolvendo nas diversas arenas, principalmente políticas e acadêmicas, um dos principais aspectos envolvem a ideia do “negociado versus legislado”. E boa parte das divergências centram-se nos limites dos conteúdos dos acordos e convenções coletivas de trabalho. Porém, há um aspecto que talvez não esteja recebendo tanta atenção, e será o objeto do presente texto, o qual envolve a previsão do artigo 611-A, § 3º e 4º da CLT, que estabelece a sistemática de compensações decorrentes de concessões e a neutralização das compensações diante da anulação das concessões.
A intenção no presente texto é tratar do tema sob uma perspectiva pouco usual, envolvendo construções da área de resolução apropriada de disputas.
Não é preciso muitos estudos empíricos para constatar que na dinâmica das negociações coletivas, apesar de longas pautas de reivindicações, a principal pretensão dos trabalhadores geralmente é a busca de ganho real em termos salariais, ou ao menos a reposição da inflação. E, ao mesmo tempo, esta é a principal fonte de resistência patronal.
Ou seja, ambas as partes, em regra e na prática, elegem o mesmo alvo para centrar suas forças, a acabam seguindo, a partir desse alvo, uma dinâmica de busca de concessões e compensações. Por exemplo, reduz-se o intervalo intrajornada e, como compensação específica, aumenta-se o adicional de horas extras. Em outro exemplo, aumenta-se o salário como pretendido pelos trabalhadores e, como compensação, reduz-se as condições do plano de saúde.
Na área de Resolução Apropriada de Disputas há uma relevante obra de autoria dos professores William Ury, Jeanne Brett e Stephen Goldberg, denominada Getting Disputes Resolved, na qual é colocada um conceito de grande importância para reflexão sobre o cenário das negociações coletivas e o mencionado mecanismo previsto no PL 6.787/2016. Trata-se da ideia de que os conflitos podem ser resolvidos a partir de três abordagens ou “approaches”, as quais envolvem o plano dos interesses, dos direitos e do poder.
Inclusive os autores recorrem à representação de tais abordagens por meio de círculos concêntricos, na qual na parte mais externa se encontra o poder, na parte intermediária os direitos e no centro os interesses.
Resolver conflitos por meio do poder significa solucionar o impasse com o uso da força ou recursos de poder disponíveis. Quando diante de um conflito no ambiente de trabalho acerca da execução de uma tarefa o chefe diz “faça assim porque eu quero”, o impasse estaria sendo resolvido com a presente abordagem, valendo-se o superior da sua autoridade. Nos conflitos coletivos a greve consiste em mecanismo de solução da disputa por meio do poder, sendo que, a depender da categoria e da situação, a greve pode ser de maior ou menor poder.
Já a solução de conflitos no plano dos direitos significa apurar quem, do ponto de vista jurídico, tem mais razão. Quando o conflito é solucionado pela via heterocompositiva, envolvendo a imposição da sentença judicial, seria a solução típica com base nos direitos. Também é possível que a solução autocompositiva seja com base nos direitos, o que ocorre quando as partes, e principalmente advogados, de forma evoluída e racional, discutem seus riscos e constroem uma solução considerando o que poderia ocorrer caso a disputa fosse resolvida pela via heterocompositiva.
Assim, quando se faz um acordo em conflitos individuais na Justiça do Trabalho “dividindo o risco”, na realidade a solução seria autocompositiva, mas estaria sendo, predominantemente, resolvida com base no “approach” focado nos direitos. Este exemplo envolve aquilo que se relaciona com o conceito de negociação baseada em critérios, a qual abordo no livro de minha autoria, sobre o tema da Negociação Trabalhista, desenvolvendo algumas possibilidades que podem ser consideradas para a solução de conflitos individuais submetidos à Justiça do Trabalho.
Já a solução baseada em interesses ocorre em outro nível. Primeiramente, para a compreensão do conceito de interesses é fundamental partir da sua distinção com o conceito de posição, a qual é muito bem trabalhada no clássico Como Chegar ao Sim, escrito pelos professores Roger Fisher, Willian Ury e Bruce Paton, também da chamada “Escola de Harvard”.
Posição consiste no meio que elegemos para satisfazer determinada necessidade. Interesse consiste na própria necessidade. Teoricamente, dinheiro nunca pode ser considerado interesse, devendo ser tratado como posição. Interesse é o que está por trás da busca pelo dinheiro, qualquer que seja o contexto, inclusive disputas judiciais, individuais ou coletivas.
No emblemático exemplo dos irmãos que brigavam pela laranja, presente em quase todos os manuais de negociação, após a mãe dividir a laranja ao meio como forma de resolver o conflito, um irmão espreme a laranja e bebe o suco, jogando o bagaço fora, ao passo que o outro joga o suco fora e come o bagaço. Ou seja, a posição era laranja, mas o interesse de um era o suco e do outro o bagaço.
Portanto, a solução do conflito no plano dos interesses significa compreende-los e buscar formas de solução que otimizem os interesses de ambas as partes.
Essas premissas podem ser consideradas para reflexão da proposta do PL 6.787/2016, quanto aos § 3º e 4º do artigo 611-A da CLT. Para melhor reflexão, convém transcrever a redação dos dispositivos, a qual corresponde ao seguinte:
“§ 3º Na hipótese de flexibilização de norma legal relativa a salário e jornada de trabalho, observado o disposto nos incisos VI, XIII e XIV do caput do art. 7º da Constituição, a convenção ou o acordo coletivo de trabalho firmado deverá explicitar a vantagem compensatória concedida em relação a cada cláusula redutora de direito legalmente assegurado.
§ 4º Na hipótese de procedência de ação anulatória de cláusula de acordo ou convenção coletiva, a cláusula de vantagem compensatória deverá ser igualmente anulada, com repetição do indébito.” (NR)”
O presente mecanismo, ainda que contribua com a segurança jurídica e traga alguma dose de “justiça da negocial”, na medida em que afasta a “pegadinha” de buscar uma vantagem na negociação em troca de uma concessão e depois procurar anular a concessão mantendo a vantagem, consolida a cultura da negociação baseada na barganha posicional e afasta a negociação baseada em interesses.
Existem muitas situações nas quais é possível pensar em atendimento ou otimização dos interesses, envolvendo a lógica do chamado “ganha-ganha”, sem necessidade de trabalhar com o “perde-ganha” ou “ganha-perde”, principalmente nas negociações coletivas.
No fundo, o que todo dirigente sindical-laboral busca, raciocinando no plano dos interesses, consiste na satisfação da categoria. E o aumento salarial nem sempre consiste no único meio para isto. Da mesma forma, é ingenuidade imaginar que uma empresa ou segmento empresarial, administrada de forma adequada e eficiente, considere que a única variável relevante para o seu funcionamento consiste no impacto financeiro de uma negociação coletiva.
O grande desafio consiste na análise de todos os interesses envolvidos e na busca de soluções que os atendam, olhando o que está por trás das posições. E para isto é importante fugir da cultura da negociação no plano dos direitos ou das posições, tentando enxergar além, isto é, procurando construir soluções que satisfaçam e otimizem os interesses.
Autor: Rogerio Neiva Pinheiro juiz do Trabalho da 10ª Região, membro do Comitê Gestor da Conciliação do Conselho Nacional de Justiça, juiz auxiliar da Vice-Presidência do TST e membro da Comissão Nacional de Promoção à Conciliação do Conselho Superior da Justiça do Trabalho. Mestre e doutorando em psicologia pela UnB.