Regras de transição em vigor da reforma da Previdência devem ser mantidas

Autor:  Victor Roberto Corrêa de Souza (*)

 

O artigo 24 da Proposta de Emenda Constitucional 287/2016 (Reforma da Previdência) traz a possibilidade de revogação de normas transitórias de emendas constitucionais anteriores (ECs 20, 41 e 47), elaboradas como parte de anteriores reformas previdenciárias. Assim dispõe o citado artigo 24, em seus incisos II, III e IV:

Art. 24. Ficam revogados os seguintes dispositivos:

[…]

II – da Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998:

a) o art. 9º; e

b) o art. 15;

III – da Emenda Constitucional nº 41, de 19 de dezembro de 2003:

a) o art. 2º;

b) o art. 6º; e

c) o art. 6º-A; e

IV – da Emenda Constitucional nº 47, de 5 de julho de 2005: o art. 3º.

Esses dispositivos, cuja revogação é pretendida, tratam de regras constitucionais de transição para servidores públicos civis, que previam, dentre outras disposições, direitos como a paridade de reajustes entre ativos e inativos e a integralidade remuneratória no momento da aposentadoria, de acordo com as condições ali expostas e com base na data de ingresso no serviço público do servidor.

Com a revogação destas regras de transição ora existentes, nota-se que o proponente quer implementar novas regras de transição para a concessão de aposentadorias aos servidores públicos que se inseriam nessas condições, que passariam a ser submetidos aos ditames dos artigos 2º e 3º da PEC 287. Vejamos se estas novas regras seriam constitucionais.

Segundo esses dois artigos da PEC, o novo regime seria aplicável a todos que tenham ingressado no serviço público antes da publicação da futura emenda, caso tenham idade menor que 50 e 45 anos (homem e mulher, respectivamente).

Caso a idade seja superior na data de publicação da referida emenda, o servidor terá o direito de se aposentar com 60/55 anos de idade (homem/mulher), 35/30 anos de contribuição (homem/mulher), 20 anos de efetivo exercício de serviço público, 5 anos de efetivo exercício do cargo em que pretenda se aposentar, e um pedágio de 50% do tempo de contribuição que faltaria para completar os 35/30 anos de contribuição.

Por outro lado, caso a idade seja inferior a 50/45 anos (homem/mulher), conforme artigo 3º da PEC, aplicar-se-ia ao servidor o novo regime de requisitos para aposentadoria, que, regra geral, prevê que será devida aposentadoria aos 65 anos de idade para qualquer servidor (homem ou mulher), com um tempo mínimo de 25 anos de contribuição (para uma aposentadoria de 76%), com o limite do teto máximo do RGPS, e com a possibilidade de utilização de regime de previdência complementar, por intermédio de entidades fechadas de natureza pública (Lei 12.618/2012, com o acréscimo do artigo 92 da Lei 13.328/2016).

Pela nova regra de transição, o servidor que não possuir a idade mínima (50/45 anos), mas que se encontre protegido pelas regras de transição das emendas 20/98, 41/2003 e 47/2005, perderá o direito às regras de transição anteriores (paridade e integralidade), de modo que só poderá se aposentar aos 65 anos de idade (homem ou mulher), com um tempo mínimo de 25 anos de contribuição (para uma aposentadoria de 76%), garantindo-se apenas a média aritmética simples de suas remunerações e uma reposição anual limitada à preservação do valor real do benefício (reposição inflacionária).

É o caso, por exemplo, de um servidor público do sexo masculino, com 39 anos de idade na data de publicação da hipotética emenda, que tenha ingressado no serviço público em 2001 (aos 23 anos de idade), e que tinha em seu patrimônio jurídico a expectativa de se aposentar com proventos integrais e paridade de reajustes, aos 60 anos de idade, quando já teria mais de 35 anos de contribuição, mais de 20 anos de serviço público, mais de 10 anos de carreira e mais de 5 anos no cargo em que pretenda se aposentar (artigo 6º da EC 41/2003).

Repentinamente, esse mesmo servidor se verá sem a possibilidade de se aposentar com proventos integrais e paridade, apenas aos 65 anos de idade, e ainda assim só terá 93% de aposentadoria, tendo que trabalhar até os 72 anos de idade, se quiser se aposentar com 100% de seu salário de benefício.

E o mais grave: se, neste mesmo exemplo, se tratasse de uma mulher, com os mesmos parâmetros do exemplo citado, esta servidora se aposentadoria aos 55 anos de idade, quando já teria os 30 anos de contribuição e os demais requisitos. Pelo texto da reforma, ela também só poderia se aposentar aos 65 anos de idade e teria que trabalhar até os 72 anos, se quiser 100% de seu salário de benefício. Enfim, para receber os mesmos 100% de aposentadoria que receberia aos 60/55 anos de idade (homem/mulher), nesse exemplo, o homem terá que trabalhar mais 12 anos e a mulher, pasmem, 17 anos!

Parece-nos claro que essa proposta de emenda constitucional, nesse artigo 24, pode ser qualquer coisa, menos razoável e, muito menos ainda, isonômica.

Como se não bastassem, estas medidas trazidas pelo artigo 24 da PEC 287 ferem a segurança jurídica e trazem, de modo desassombrado, lesão ao Estado Democrático de Direito.

É fato que a reforma previu, no artigo 5º da PEC 287, meios de preservação do direito adquirido (o que não seria necessário prever, pois se dessumiria do próprio texto original da Constituição). Contudo, não é apenas o direito adquirido que deve ser protegido, mas também as expectativas legítimas do cidadão/servidor público nos atos administrativos, legislativos e jurisdicionais emanados do Estado.

Por motivos diversos (mutação jurisprudencial, independência decisória, mudança de gestão, erros administrativos, erro judiciário, morosidade, discricionariedade administrativa ou legislativa consistente em motivação econômica, política, financeira, social, internacional etc.), os órgãos de poder estatal, passado um determinado lapso de tempo, dão novo direcionamento a seus anteriores e vigentes compromissos (modificando, anulando ou revogando seus atos legislativos, executivos ou jurisdicionais), deliberando, ou sendo impostos, a outras escolhas.

Todavia, essas mudanças não podem ser feitas sem o devido respeito ao princípio da proteção da confiança, à segurança jurídica e à estabilidade das relações entre o Estado e os cidadãos.

No Brasil, por exemplo, o princípio da proteção da confiança está expressamente consagrado no artigo 927, parágrafo 4º do CPC de 2015, e tem sua raiz histórica no artigo 27 da Lei 9.868/99, que prevê a possibilidade de se manter a eficácia de determinado dispositivo que venha a ser declarado como inconstitucional pelo STF, em razão da segurança jurídica.

Nesta reforma da Previdência que se aproxima, se aprovado o artigo 24 da PEC, tal princípio estará sendo potencialmente lesado pelo constituinte derivado, em relação a milhares de servidores civis que ingressaram antes de 31/12/2003, pois confiaram na existência de uma proteção jurídica de seu regime previdenciário, dada pelo Estado, quando optaram pela assunção de um vínculo laboral com o Estado de acordo com aquele regramento, em detrimento de outras possíveis escolhas profissionais, e, repentinamente, por uma mudança de entendimento do legislador/constituinte derivado, se veem desprotegidos quanto a seus direitos previdenciários.

Segundo Valter Shuenquener de Araújo: “Embora as leis não sejam perpétuas, especialmente nos dias de hoje, as alterações que elas sofrem devem levar em consideração a confiança que nelas foi depositada pelos seus destinatários. Consoante adverte KARL LARENZ, o legislador nunca elabora uma lei para toda a eternidade, mas ele também não a cria para que tenha vigência por um único dia e, por isso, ‘las leyes deben regir un futuro previsible’. Sobre o tema, também é oportuna a assertiva de KATHARINA SOBOTA de que ‘o que hoje é uma lei não deveria, dentro do que seja possível, sofrer uma abrupta e infundada modificação’. O legislador não tem liberdade ilimitada na criação de normas, e um dos objetivos do princípio da proteção da confiança é justamente o de fixar alguns limites. Nesse contexto, a Constituição exercerá uma valiosa função na preservação de expectativas legítimas. O Estado de Direito do século XX, e que se estende pelo século XXI, tem como um de seus principais fundamentos a necessidade de que a Constituição seja observada por todas as demais normas jurídicas. Isso serve para conter eventuais impulsos de uma maioria circunstancial tendente a abolir direitos previstos no texto supremo. […] A Constituição, portanto, também desempenha um relevante papel para o alcance da estabilidade das relações sociais e deve servir como instrumento para possibilitar uma firme tutela das expectativas legítimas dos cidadãos contra inesperadas alterações legais. Sendo assim, o legislador também pode sofrer uma vinculação futura da sua atuação. Um dispositivo legal ou constitucional criado no passado poderá, portanto, com amparo no princípio da proteção da confiança, restringir, sem agredir a democracia, a atuação do parlamento no futuro” (ARAÚJO, 2009, p. 172-173).

Do mesmo modo, Humberto Ávila: “A exigência de cognoscibilidade permite que o cidadão possa ‘saber’ aquilo que ‘pode ou não fazer’ de acordo com o Direito. Essa exigência, dentro de um estado de confiabilidade e de calculabilidade, capacita-o a, com autonomia e com liberdade, ‘fazer ou não fazer’, de modo que possa ‘ser ou não ser’ aquilo que deseja e que tem condições de ser. A segurança jurídica, em outras palavras, é um instrumento para que o cidadão possa saber, antes, e com seriedade, o que pode fazer, de modo que possa melhor ser o que pode e quer ser” (ÁVILA, 2012, p. 95).

Ora, há algo mais calculável e programável que uma aposentadoria, para o trabalhador? Há algo mais esperado, tendo em vista o envelhecimento e a saúde mais frágil do trabalhador, que uma aposentadoria? Há algo mais relevante que a legislação previdenciária em vigor, a se confiar, para alguém que espera uma aposentadoria (seja ela no serviço público, seja ela no Regime-Geral de Previdência Social)?

É certo que, diferentemente dos poderes Executivo e Judiciário, os membros do Poder Legislativo possuem uma liberdade criadora maior, para aperfeiçoar o ordenamento e mudar as regras que precisem ser modificadas, nos limites e formas permitidos pela Constituição e legislação respectiva. Todavia, o legislador não pode violar as expectativas legítimas dos cidadãos e editar uma lei ou alterar a Constituição, pondo de lado o princípio da proteção da confiança, desconsiderando a situação de todos aqueles que eram protegidos pela regra até então vigente, gerando com isso frustrações e inseguranças. Um comportamento como esse, por parte do próprio Estado-legislador (como o pretende a PEC 287), traz ao cidadão a sensação de que a legislação até então vigente não tinha valor ou eficácia alguma, e com isso abala os fundamentos que legitimam o princípio da legalidade e, por decorrência, o próprio Estado Democrático de Direito. É como descreveu Patrícia Baptista, em sua tese de doutorado: “A ninguém é dado confiar na vigência eterna de uma lei. Da mesma forma, a proteção da confiança não incide — porque a confiança não pode surgir legitimamente nesses casos — se há controvérsia sobre a constitucionalidade da lei, se esta era assumidamente provisória, se uma nova legislação estava em vias de aprovação ou, ainda, se a própria interpretação da legislação vigente é confusa e controvertida. A situação será outra, porém, na hipótese de retroatividade normativa. No Estado de Direito, o cidadão deve poder confiar em que as posições jurídicas por ele assumidas, com base em normas válidas e vigentes, alcancem os efeitos originalmente previstos. Mesmo que o regime legal vigente tenha de ser alterado por força de um interesse público prevalente, o particular deve poder contar com a proteção de sua posição jurídica, seja pela previsão de uma norma transitória, seja por meio de uma compensação em dinheiro. Nessas circunstâncias, a autonomia do legislador não se mantém absoluta, mas pode ser limitada para a proteção das expectativas que o cidadão legitimamente depositou na estabilidade da lei” (BAPTISTA, 2006, p. 133).

Dessa forma, a validade e, principalmente, a eficácia das emendas constitucionais 20/98, 41/2003 e 47/2005, no que atine às regras de transição por elas criadas, não pode ser desprezada pelo constituinte derivado, ao analisar o artigo 24 da PEC 287/2016, que pretende simplesmente revogar tais regras de transição, para pôr em seu lugar nenhuma regra de transição, caso o servidor público tenha ingressado antes de 31/12/2003 e tenha menos de 50 anos de idade, se homem, e 45 anos de idade, se mulher.

Para além da ofensa à isonomia que tal distinção apenas pela idade do trabalhador representa, há flagrantemente uma outra ofensa, que ocorre em relação à segurança jurídica, pois o servidor detinha em seu patrimônio jurídico um verdadeiro direito a se aposentar segundo as regras de transição até então existentes, válidas e eficazes e que, repentinamente, são revogadas, com tal projeto de emenda. Maior ofensa ao próprio Estado de Direito, em seu pilar da segurança jurídica, não existirá com esse artigo 24 da PEC!

Em conclusão, o referido artigo 24 da PEC 287/2016 trata de dispositivo de inconstitucionalidade flagrante, seja por que fere a igualdade entre as pessoas que já se encontram protegidas por regras de transição em vigor, seja por que delimita o direito por um paradigma (etário) que não tem qualquer conexão com o valor social do trabalho, que é fundamento da República brasileira (art. 1º, IV, da CF), seja por que a eventual aprovação da PEC 287/2016, com tal dispositivo, representará verdadeiro malogro da segurança jurídica e do próprio Estado de Direito, posto que frustrará a confiança depositada por todos aqueles que atualmente já possuem em seu patrimônio jurídico a expectativa de se aposentarem sob as regras de transição em vigor.

Repita-se: o Estado-legislador não tem a prerrogativa de suspender a aplicação das regras de transição por ele mesmo editadas, e até então em vigor, sem observar o grave impacto que esta sua atitude acarretará para vários trabalhadores do serviço público.

Portanto, o texto final da PEC 287 deve ser revisado para fins de ser excluída a previsão do artigo 24, mantendo-se as regras de transição até então em vigor, sob pena de diversas inconstitucionalidades e relevante abaulamento do Estado Democrático de Direito, aplicando-se suas eventuais novas regras apenas aos novos servidores que ingressem ao serviço público após eventual promulgação da emenda constitucional que venha a representar a reforma buscada pelo proponente.

 

 

 

 

Autor:  Victor Roberto Corrêa de Souza é juiz federal do 11º Juizado Especial Federal do Rio de Janeiro, especializado em matéria previdenciária, membro da Comissão de acompanhamento da reforma da Previdência, criada pela Ajufe, e doutorando do PPGSD/UFF.


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