Regras do Código são adequadas para contratos eletrônicos

por Paulo Sá Elias

É de autoria dos filósofos alemães a clássica distinção entre o espírito (Geist) e a natureza (Natur), bem como a polêmica diferença entre cultura (Kultur) e civilização. Alfred Weber (irmão de Max Weber), seguido por alguns historiadores e filósofos alemães, consideram a cultura como a fase do processo histórico em que a capacidade criadora dos grupos apresenta-se mais rica espiritualmente, criando as grandes religiões e filosofias, prestigiando o desenvolvimento da reflexividade, da serenidade e da disposição moderadora da alma. É a fase de maior inspiração e brilhantismo nas artes e no Direito. A civilização, ao contrário, é a fase decadente e técnica deste processo. Destaca-se pela repetição das grandes criações culturais, apesar de inovadora na ciência e nas revoluções tecnológicas (1).

A cultura, seguindo o sentido proposto, origina-se na sabedoria, na aplicação da mente humana em abstrações, reflexões e momentos de contemplação. Já a civilização, apresenta-se como resultado da experiência social, do aprimoramento intelectual e técnico ao longo do tempo. Nesse sentido, pretende-se esclarecer e justificar a postura adotada em nossos escritos, considerando conveniente e interessante recordar as diferenças entre esprit de géometrie e esprit de finesse propostas no século XVII pelo filósofo e matemático francês Blaise Pascal.

O espírito de geometria é positivista, pragmático, opera com raciocínios mecânicos e ordenados a partir de modelos objetivos. É interessado na eficiência e no poder. O espírito da finura, ao contrário, é o espírito da sensibilidade e da sutileza. É o que busca os princípios entrevistos e pressentidos. Atua com sagacidade, agudeza do espírito e eficácia. A modernidade, como diz José Ricardo Cunha, sempre foi dirigida pelo espírito da geometria associando-o ao pensamento cientificista, deixando ao espírito de finura um plano tido como secundário, menos importante, associado à poesia e às artes. “A hermenêutica e a interpretação foram capturadas e controladas pelo espírito da geometria para sempre apresentadas simplesmente como técnicas de leitura e delimitação das proposições jurídicas.”(2)

O rigor do raciocínio jurídico, o pragmatismo saudável na observação dos fatos sociais (3), o espírito da finura, a hermenêutica a e a interpretação das normas jurídicas ocupam posição fundamental neste trabalho, uma vez que a melhor doutrina (especialmente em nosso sistema jurídico romano-germânico/continental) considera cientificamente irresponsável qualquer estudo sobre as conseqüências das inovações tecnológicas de informática e telemática nas relações jurídicas que ignorarem a massa crítica, a experiência jurídica, o sentido e o alcance das leis já existentes. A propósito, Miguel Reale em passagem memorável em um dos seus recentes escritos ressalta a questão:

Não faltaram críticas à aprovação do novo Código Civil, oriundas de três ordens de motivos: A primeira não merece senão breve alusão, porque relativa a jovens bacharéis, jejunos de experiência jurídica, que se aventuraram a formular juízos negativos sobre uma lei fundamental que nem sequer leram [viveram] ou viram, somente pelo fato de seu projeto originário datar de cerca de trinta anos. Compreende-se que as inteligências juvenis, entusiasmadas com as novidades da Internet ou a descoberta do genoma, tenham decretado a velhice precoce do novo Código, por ter sido elaborado antes dessas realizações prodigiosas da ciência e da tecnologia, mas os juristas mais experientes deviam ter tido mais cautela em suas afirmações, levando em conta a natureza específica de uma codificação, a qual não pode abranger as contínuas inovações sociais, mas tão somente as dotadas de certa maturação e da devida “massa crítica”, ou já tenham sido objeto de lei. […] De mais a mais, não vejo porque a Internet implica em alterar o Código Civil, pois os negócios jurídicos concluídos por intermédio dela não deixam de ser negócios jurídicos regidos pelas normas do Código Civil, inclusive no que se refere aos contratos de adesão. A Internet atua apenas como novo meio e instrumento de intercâmbio e acordo de vontades, não interferindo na substância das disposições legais quanto aos direitos e deveres dos contratantes.(4)

Tais aspectos diferenciadores e conceituais de civilização e cultura são apresentados simplesmente com o objetivo de facilitar a compreensão da responsabilidade que o jurista deve ter na atualidade frente às profundas alterações promovidas pela informática e a telemática nas relações jurídicas e na vida em sociedade. Como bem lembrou a excelente Cláudia Lima Marques, a maior tendência da Internet é para globalização, pois no meio eletrônico desaparecem os limites (borders) estatais e territoriais. É realmente muito complicado tornar efetiva a regulamentação estatal ou assegurar competência das jurisdições estatais na Internet(5). Lembra ainda a autora da famosa aula inaugural de Erick Jayme na Academia de Direito Internacional de Haia, quando resumiu com brilhantismo o fenômeno da Spät-postmoderne(6).

As imposturas intelectuais

É verdade que parte do trabalho doutrinário nesta nova área do Direito parece caminhar bem distante (até exageradamente) do vasto perímetro de atuação e interesse da ciência jurídica. Em razão disso, julga-se conveniente ressaltar que não é recomendável ao pesquisador responsável o desvio da análise das características e das conseqüências jurídicas envolvendo temas da natureza do assunto aqui tratado em prol de aspectos técnicos de informática e telemática, muitas vezes desconhecidos dos juristas de gerações anteriores e que servem (quase sempre) ao oculto e insensato objetivo de causar impressão ou perplexidade. Tais comportamentos são muito semelhantes às impostures intellectuelles descritas por Alan Sokal e Jean Bricmont. (7)

A propósito, considero importante ressaltar alguns trechos da referida obra, cuja leitura é recomendada aos pesquisadores e pensadores da área jurídica. É bem verdade que Alan Sokal, sendo físico, parece não dar muita importância às diferenças entre os fundamentos epistemológicos(8) das ciências do espírito em relação às ciências naturais(9). Afirma-se isso, pois parte de suas críticas draconianas mostraram tal característica de forma extremamente evidente (apesar das contradições quando das abordagens acerca do cientificismo). No livro (escrito em co-autoria com Bricmont) que surgiu como explicação para a sua polêmica paródia: “Transgredindo as fronteiras: em direção a uma hermenêutica transformativa da gravitação quântica” — (publicada como seríssimo artigo científico em respeitado periódico norte-americano), os referidos autores apresentam com muita coragem reflexões interessantes sobre algumas características presentes no mundo acadêmico/científico.

Destacam o efeito nefasto que o abandono do pensamento claro e a escrita clara tem sobre o ensino e a cultura. “Os estudantes aprendem a repetir e a enfeitar discursos que mal entendem. Eles podem até, se tiverem sorte, fazer carreira acadêmica sem nada entender tornando-se especialistas na manipulação de um jargão erudito.”(10) É a manifestação de arrogância e espetáculo de uma comunidade intelectual em que todos repetem frases que ninguém entende.

Observa-se o fascínio de determinados autores pelo discurso obscuro, pelo apelo à autoridade em lugar da lógica, às teorias especulativas que passam por ciência estabelecida, analogias forçadas e absurdas, confusão entre o sentido técnico e o corriqueiro das palavras, na ostentação de uma erudição superficial evidenciada pela apresentação de termos técnicos (com objetivos intimidadores) em contextos em que eles são totalmente irrelevantes, entre outras características assustadoras. Para os autores, são as ciências sociais que mais sofrem quando o absurdo e os jogos de palavras substituem a análise crítica e rigorosa das realidades sociais.

A propósito, em relação ao argumento da autoridade, sugerem às ciências humanas que busquem inspiração em um dos melhores princípios metodológicos das ciências naturais, ou seja: avaliar a validade de uma proposição com base nos fatos e no raciocínio que a sustentam, sem olhar para as qualidades pessoais ou o “status” social do seus defensores ou detratores. É impressionante como este princípio cai como uma luva para a comunidade jurídica brasileira.

No epílogo do polêmico livro, os autores sugerem algumas observações relevantes que devem merecer a atenção do cientista. Complementando as orientações com algumas passagens da obra, reunimos 10 itens principais: 1º – é uma excelente idéia saber do que se está falando — para falar de assuntos de forma sensata, equilibrada, é preciso compreender as teorias científicas relevantes em nível bastante profundo e inevitavelmente técnico; 2º – Nem tudo que é obscuro é necessariamente profundo.

Em muitos casos, se os textos parecem totalmente incompreensíveis, isso se deve à razão de que não querem dizer absolutamente nada; 3º – É importante a precaução com o argumento da autoridade (explicado logo acima no parágrafo anterior); 4º – Considerar o fato de que muitos autores utilizam intencionalmente a ambigüidade como subterfúgio; 5º – Quando se combina negligência do empírico com muito dogmatismo cientificista, pode-se incorrer na pior das elucubrações; 6º – A atitude científica deve ser entendida bem amplamente como respeito à clareza e coerência lógica das teorias; 7º – Como disse Noam Chomsky(11), se você (como cientista) sentir muita dificuldade em tratar de problemas reais, há uma série de meios para evitá-los. “Um deles é perseguir quimeras que não têm realmente importância. Outro é envolver-se em cultos acadêmicos que são bastante divorciados de qualquer realidade e que oferecem defesa contra lidar com o mundo como ele realmente é.”; 8º – Não se pode pôr em dúvida que a ciência, como instituição social, está ligada ao poder político, econômico e militar — sendo que o papel desempenhado pelo cientista pode ser, muitas vezes, extremamente pernicioso; 9º – Muitas pessoas estão simplesmente irritadas com a soberbia de determinados cientistas, especialmente os pós-modernistas e suas típicas expressões como “problematização”, “relativização”, “não-linear”, “multidimensional”, etc.; 10º – A crítica do passado deve iluminar o futuro e não levar apenas a contemplar as cinzas. Enfim, a esperança é pelo “surgimento de uma cultura intelectual que seja racionalista mas não dogmática, científica mas não cientificista(12), receptiva a idéias e argumentos mas não frívola(13), politicamente progressista mas não sectária.”(14)

Em relação aos contratos por meios eletrônicos, conforme demonstramos em livro de nossa autoria (no prelo), há cada vez mais o aumento da utilização deste novo meio de contratar para a realização de negócios jurídicos das mais variadas naturezas (comerciais, de consumo e até mesmo privados, de direito civil). Os contratos realizados por meios eletrônicos já representam parcela considerável das transações comerciais, especialmente entre empresas. O comércio eletrônico, no Brasil, movimentou 8,7 bilhões de dólares em 2003. No mundo já são 825 milhões de usuários de computadores conectados à Internet. Nos Estados Unidos 187 milhões, com movimento de 819 bilhões de dólares em e-commerce (comércio eletrônico). Deste total, 721 bilhões em negócios eletrônicos entre empresas (B2B — business to business) e 97,5 bilhões em negócios com consumidores finais (B2C — business to consumers).

A preocupação da doutrina no que diz respeito a regulamentação é atenuada em razão da evidente possibilidade de utilização de espécies normativas (já existentes) relacionadas com os negócios jurídicos em geral — especialmente as disposições do Código Civil de 2002 e do Código de Defesa do Consumidor.

Acreditamos ter conseguido demonstrar no referido livro a complexidade de algumas situações e o surgimento de questões que ultrapassam o poder de previsão dos doutrinadores de outrora, afinal há muito já se dizia que nem as leis nem os senatus-consultos poderiam ser escritos de tal maneira que em seu contexto ficassem compreendidos todos os casos em qualquer tempo ocorrentes — “Neque leges, neque senatusconsulta ita scribi possunt, ut omnes casus qui quandoque inciderint comprehendantur”.

Devemos interpretar a realidade atual. Como era de se esperar, a hermenêutica jurídica exerce papel decisivo nesta questão. Auxilia a melhor compreensão e possível adequação dos novos fenômenos em relação a todo sistema jurídico já existente. Atuar em sentido contrário, pode, muitas vezes, acarretar graves antinomias, inseguranças e diversos equívocos. Não podemos esquecer que o direito tem um compromisso inafastável com a utilidade, com soluções justas e socialmente adequadas.

Eis a razão pela qual a criação de novas espécies normativas em relação ao tema deve sempre passar por criterioso processo de elaboração e verificação de indispensabilidade. A famosa máxima “Scire leges non hoc est, verba earum tenere, sed vim ac potestatem” — saber as leis não é conhecer-lhes as palavras, porém a sua força e poder, isto é, o sentido e o alcance respectivos” ocupa lugar de destaque nos estudos relacionados com o tema do referido livro e com todas as demais áreas associadas.

Verificamos, no entanto, que há um consenso entre os autores de que a ausência de padrões e regulamentação de determinadas questões relacionadas com as especiais características dos contratos eletrônicos têm impedido a expansão (ainda maior) do comércio eletrônico. Tais questões estão relacionadas principalmente com as provas e as dúvidas sobre a segurança das transações jurídicas em meios eletrônicos.

O estudo dos contratos eletrônicos e da formação do vínculo deve estar sempre associado ao estudo da teoria geral dos contratos, sua evolução histórica e os princípios fundamentais dos contratos, entre os quais destacamos: a liberdade de contratual, a supremacia da ordem pública, o consensualismo, a relatividade dos contratos, obrigatoriedade dos contratos, revisão dos contratos (onerosidade excessiva), boa-fé, probidade, confiança e leal cooperação.

Aliás, como foi possível notar, um dos pontos de maior importância na atual teoria dos contratos (especialmente nos realizados por meios eletrônicos) é a confiança, a eticidade, a influência da moral, que provocam (juntamente com outros fatores) o surgimento de diversos institutos protetivos de interesse dos contratantes. São claramente coligados os preceitos de ordem moral e jurídicos na busca pelos ideais da justiça, retratados, como exemplo, no princípio da boa-fé, na cláusula rebus sic stantibus, a de escala móvel, a vedação ao enriquecimento sem causa e demais figuras admitidas no mundo jurídico.

Obviamente, partindo destas noções gerais, conseguimos analisar e compreender melhor as características específicas das contratações por meios eletrônicos, bem como apresentar as melhores soluções do ponto de vista jurídico.

Um dos principais questionamentos relacionados com a base teórica da nossa recente pesquisa era justamente o fato de existir ou não o que a doutrina denominou de novo paradigma de contrato. Verificamos que não deve ser perseguido um novo paradigma de contrato, uma vez que, historicamente, após as alterações fundamentais (estruturais), a teoria geral dos contratos permanece com capacidade de ajuste e adaptação para fenômenos como o desenvolvimento do comércio eletrônico. Não há que se falar em nova teoria dos contratos em razão do surgimento e desenvolvimento dos contratos eletrônicos.

Verificamos que a doutrina civilista de melhor qualidade ressalta que na hermenêutica do Código Civil de 2002, destacam-se hoje os princípios constitucionais e os direitos fundamentais, que se impõem às relações interprivadas e aos interesses particulares, fazendo prevalecer uma verdadeira constitucionalização do Direito Privado. Há uma sobreposição dos princípios constitucionais em relação à posição anteriormente ocupada pelos princípios gerais de direito. Diversos autores (como exemplo, Gustavo Tepedino) lembram que o intérprete deve tornar clara a subordinação da norma de direito positivo em relação ao conjunto de disposições com maior grau de generalização, que é o caso da Constituição Federal. Não podemos deixar de notar as profundas alterações ideológicas que atualmente ocorrem no âmbito do Direito Privado, a partir da estruturação do Estado Social. As conseqüências das diversas alterações no Direito Privado que destacamos ao longo do trabalho, são muito relevantes em nossa pesquisa pois, como já ressaltado, o exame de cláusulas contratuais não pode mais limitar-se ao controle de ilicitude ou verificação da conformidade da avença às normas regulamentares expressas relacionadas à matéria. Ao interpretar os contratos, especialmente os eletrônicos, devemos verificar se a atividade econômica privada está atendendo aos valores constitucionais.(15)

Verificamos ainda na doutrina, que a compreensão da situação dos contratos atualmente pode ser sintetizada em duas aproximações. A primeira destaca o ato de autonomia privada e o fato de que as intervenções externas devem ser consideradas sempre como atos de exceção e limitadas em sua abrangência. O segundo padrão é o exposto a todas as intervenções externas autorizadas pelo ordenamento jurídico, uma vez que o estado de fato (fattispecie) e da pessoa são necessariamente considerados.

Como destacamos, a preocupação específica no que diz respeito aos contratos ligados às novas tecnologias de informática e telemática reside (no estágio atual de desenvolvimento) no quase sempre presente desequilíbrio entre as partes. Não tão-somente no aspecto econômico, mas no tecnológico e cultural, especialmente em países como o nosso.

Há uma desproporcionalidade técnica e científica. A diferença cultural e tecnológica entre o Brasil e países como Alemanha, Espanha, Inglaterra, Estados Unidos é imensa. Os abusos que assistimos atualmente na área de telecomunicações, como exemplo, retratam esta realidade.

Para grandes corporações estrangeiras, a imposição de determinadas regras e comportamentos contrários à eqüidade (especialmente aos consumidores de serviços) é relativamente fácil em países onde há um considerável deficit cultural e retardada inclusão tecnológica, especialmente no que diz respeito à ausência de rápida compreensão do funcionamento e da extensão do impacto provocado por todo o sistema tecnológico na sociedade e nas relações jurídicas, o que inclui até mesmo a dificuldade na visualização das inovadoras, inteligentíssimas e ardilosas abordagens comerciais e de marketing, muitas vezes carregadas de aspectos contrários ao lícito, justo, moral (que estão muito além do dolus bonus ou puffing — exagero publicitário) e que também são tardiamente percebidas ou identificadas pelos operadores ou pensadores do Direito.(16)

Em relação a formação do vínculo, validade, segurança e demais problemas relacionados com os contratos eletrônicos, verificamos que não há motivo para perplexidade. Como ocorre em todo o mundo, especialmente em razão das recomendações da United Nations Commission on International Trade Law — UNCITRAL, não se deve negar efeitos jurídicos, validade ou eficácia à informação apenas pelo fato de apresentar-se na forma de mensagem eletrônica.

A MPV 2.200-2/2001 instituiu a ICP-Brasil – Infra-Estrutura de Chaves Públicas Brasileira com o objetivo de garantir a autenticidade, a integridade e a validade jurídica de documentos em forma eletrônica, das aplicações de suporte e das aplicações habilitadas que utilizem certificados digitais, bem como a realização de transações eletrônicas seguras. Também dispõe que consideram-se documentos públicos ou particulares, para todos os fins legais, os documentos eletrônicos de que trata a referida MPV, ressaltando que as declarações constantes dos documentos em forma eletrônica produzidos com a utilização de processo de certificação disponibilizado pela ICP-Brasil presumem-se verdadeiros em relação aos signatários, na forma do art. 131 do Código Civil de 1916 (atual art. 219 do Código de 2002) e que o disposto na referida MPV não obsta a utilização de outro meio de comprovação da autoria e integridade de documentos em forma eletrônica, inclusive os que utilizem certificados não emitidos pela ICP-Brasil, desde que admitido pelas partes como válido ou aceito pela pessoa a quem for oposto o documento. A MP 2.200-2/2001 permanece em vigor em razão do disposto no art. 2º da Emenda Constitucional nº 32, de 11 de setembro de 2001 (que dispõe que as medidas provisórias editadas em data anterior à da publicação daquela emenda continuam em vigor até que medida provisória ulterior as revogue explicitamente ou até deliberação definitiva do Congresso Nacional). Há perspectiva da elaboração de nova espécie normativa para tratar desta questão substituindo esta medida provisória.

O tema é tratado na legislação projetada em trâmite no Congresso Nacional (Projeto de Lei nº 7.316/2002 — relator Dep. Jorge Bittar) — aprovado com emendas pela Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática em reunião ordinária realizada em 1 de dezembro de 2004. Este projeto, como destacamos, encontra-se em harmonia com a legislação internacional relacionada ao tema, especialmente a Diretriz da Comunidade Européia e as orientações da UNCITRAL.

Ainda, segundo o texto do projeto, a aposição de uma assinatura eletrônica deve referir-se inequivocadamente a uma pessoa natural ou jurídica e ao documento eletrônico ao qual é aposta. A assinatura eletrônica será reconhecida quando aposta durante o prazo de validade do certificado em que está baseada e respeitadas as restrições indicadas neste (quando aposta após a revogação do certificado em que está baseada ou que não respeite as restrições indicadas neste equivale à ausência de assinatura).

As denominadas assinaturas eletrônicas avançadas, seguindo o padrão europeu, têm o mesmo valor jurídico e probante das assinaturas manuscritas, na forma do art. 219 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 — Código Civil. Segundo o texto do projeto, documento eletrônico é uma seqüência de bits elaborada mediante processamento eletrônico de dados, destinada a reproduzir uma manifestação do pensamento ou de um fato; assinatura eletrônica, o conjunto de dados sob a forma eletrônica, ligados ou logicamente associados a outros dados eletrônicos, utilizado como método de comprovação da autoria; assinatura eletrônica avançada, a assinatura eletrônica que: a) esteja associada inequivocadamente a um par de chaves criptográficas que permita identificar o signatário; b) seja produzida por dispositivo seguro de criação de assinatura; c) esteja vinculada ao documento eletrônico a que diz respeito, de tal modo que qualquer alteração subseqüente neste seja plenamente detectável; e d) esteja baseada em um certificado qualificado e válido à época da sua aposição.

Outro tema interessante e que merece destaque é o caso do internet banking — a utilização de computadores para movimentações bancárias. A responsabilidade pela segurança do sistema é do banco. O usuário deve seguir as orientações de segurança propostas pelas instituições bancárias, mas ocorrendo alguma falha nestas prevenções (justamente em razão da desproporção técnica e científica do usuário em relação ao banco) — tal situação não deve servir como argumento para evitar que a instituição bancária venha a ressarcir o usuário das fraudes que normalmente ocorrem neste segmento. A segurança do meio eletrônico colocado a disposição do usuário do serviço bancário deve ser risco profissional do fornecedor de serviços bancários. É importante ressaltar ainda que mesmo nas contratações eletrônicas entre iguais, típicas do chamado B2B (Business to Business) e naquelas próprias do Direito Civil não podemos deixar de considerar em toda a sua extensão, os princípios gerais dos contratos, razão pela qual devem ser sempre amplamente estudados e considerados.

Nos contratos realizados por meios eletrônicos, a formação do vínculo está necessariamente associada com o estudo dos contratos realizados nestes novos meios. Contratos eletrônicos representam uma das modalidades de contratação. A formação do vínculo apresenta maiores questionamentos especialmente no que diz respeito aos negócios jurídicos realizados a distância.

Como sabemos, o vínculo contratual nasce quando a proposta e a aceitação se integram. Antes porém, observamos que a formação de qualquer contrato passa por sucessivos atos que se praticam antes que os interessados o concluam. A conhecida “carta de intenções” (LOI — Letter of Intent) como exemplo, quando não adequadamente redigida e controlada, acaba servindo como importante elemento de prova para responsabilização extra-contratual no âmbito das negociações preliminares.

Em relação às negociações com pessoa presente, considera-se também “presente” aquela pessoa que contrata por telefone ou por meio de comunicação semelhante. Para nós, são exemplos de comunicação entre presentes, para esses efeitos, aquelas realizadas com a utilização da tecnologia existente nos softwares de comunicação instantânea, tais como o Skype, ICQ (AOL/Mirabilis), Microsoft Messenger e demais sistemas de troca de mensagens instantâneas/instant messaging, conferência eletrônica on-line em geral, VoIP (Voice over IP — voz sobre protocolo de Internet), etc.

O importante a destacar, é que a comunicação realizada nesses ambientes é efetivamente instantânea e as partes estão naquele exato momento, assim como em uma ligação por telefone “convencional”, conversando entre si. Não há intermediadores e nem grandes lapsos temporais que possam descaracterizar a instantaneidade.

Importante ressaltar ainda, que não podemos considerar o e-mail tradicional como comunicação entre presentes, justamente por existir quebra na instantaneidade, isto é, ao enviar um e-mail, não é possível garantir que o mesmo chegará ao destino naquele exato momento, além disso, seu iter é variado e passa por diversos intermediários (com maior possibilidade de retenção, redirecionamento e até mesmo extravio), tal como a já saudosa correspondência epistolar (convencional). Pessoa presente, portanto, é aquela que conversa diretamente com o policitante (proponente, ofertante, o que está fazendo a proposta) — mesmo que por algum outro meio moderno de comunicação a distância. E mais: ainda que os interlocutores estejam em cidades, estados ou países diferentes.

As disposições do Código Civil de 2002 e teorias atualmente existentes sobre a formação do vínculo contratual são na maioria das vezes apropriadas aos contratos eletrônicos. É evidente que a doutrina, conforme verificamos no referido livro (no prelo), reclama com razão por algumas alterações que melhorariam o tratamento da matéria.

Notas de rodapé

1- GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1992. p. 46 – cap. III – item 26

2- CUNHA, José Ricardo. Fundamentos axiológicos da hermenêutica. In: BOUCAULT, C.E.; RODRIGUEZ, J.R. (Org). Hermenêutica Plural – possibilidades jusfilosóficas em contextos imperfeitos. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 351

3- Vamos considerar a definição dicionarizada de HOUAISS, destacando a ênfase do pensamento filosófico na aplicação das idéias e nas conseqüências práticas de conceitos e conhecimentos. Filosofia utilitária. A validade de uma doutrina é determinada pelo seu bom êxito prático. E denominar para o exemplo proposto, como “pragmatismo não saudável”, aquele que sacrifica princípios jurídicos fundamentais para a consecução de objetivos a curto prazo.

4- REALE, Miguel. O novo código civil e seus críticos. Miguel Reale – “Website” pessoal. 2001. Disponível em: . Acesso em: 15 jan. 2002.

5- MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor – O novo regime das relações contratuais. 3ª ed. Rev. atual. São Paulo: RT – Revista dos Tribunais, 1998. p. 88-90 – citando CARRACOSA GONZÁLEZ, Globalización y derecho internacional privado, p. 11.

6- “Experimentamos um sentimento de perda da segurança de uma existência protegida pelas instituições tradicionais, como o Estado e os juízes estatais. Em verdade, a globalização é caracterizada pelo fato de os Estados não serem mais os centros do poder e da proteção da pessoa humana. Os Estados estão cedendo grande parte de seus poderes aos mercados. As regras da concorrência determinam a vida e o comportamento dos seres humanos. A existência de um mercado global permite fusões de grandes empresas, resultando em um poder econômico gigantesco, que deixa aberta a questão da proteção do indivíduo que gostaria de manter seu posto de trabalho, proteção tradicionalmente fornecida pelo Estado. Para preencher este vazio legal, os juristas reclamam a criação de um sistema mundial de proteção contra as práticas anticoncorrenciais.” – JAYME, Erick. apud MARQUES, Cláudia Lima. Opus citatum, p. 91, in fine e 92.

7- BRICMONT, Jean.; SOKAL, Alan. Fashionable Non-sense: Postmodern Intellectuals’ Abuse of Science. New York: Picador, 1998. *dd / Imposturas intelectuais. Tradução de Max Altman. Rio de Janeiro: Record, 1999. (Publicado originalmente em francês sob o título “Impostures intellectuelles”).

8- Por curiosidade: “[…] A ciência sem epistemologia – supondo-se que isto seja imaginável – é primitiva e confusa. Entretanto, caso o epistemólogo, que procura um sistema claro, o tenha encontrado, ele está propenso a interpretar o conteúdo da ciência por meio de seu sistema e a rejeitar seja o que for que não se ajuste ao seu sistema. O cientista, contudo, não pode se dar ao luxo de levar tão longe seu empenho pela sistemática epistemológica….O cientista, por este motivo, deve parecer ao epistemólogo sistemático um oportunista inescrupuloso.” EINSTEIN, Albert. Remarks concerning the essays brought together in this cooperative volume. apud BRICMONT, Jean; SOKAL, Alan. Opus citatum. p. 69

9- Cf. BRICMONT, Jean; SOKAL, Alan. op. cit. p. 61 e 287 (notas de rodapé).

10- Id. ibidem. p. 224

11- Professor norte-americano de filosofia da linguagem no MIT – Massachussets Institute of Technology. Área de atuação: política, lingüística, semiótica e filosofia.

12- Cientificismo é a tendência a valorizar excessivamente as noções científicas ou pretensamente científicas em qualquer campo da vida prática, intelectual ou moral. Concepção filosófica de matriz positivista que afirma a superioridade da ciência sobre todas as outras formas de compreensão humana da realidade, por ser a única capaz de apresentar benefícios práticos e alcançar autêntico rigor cognitivo. Cf. HOUAISS, op. cit.

13- Inútil, superficial, que tem pouca importância; inconsistente.

14- BRICMONT, Jean; SOKAL, Alan. op. cit. passim, especialmente p. 201-228 ; 276 ; 286-287.

15- Cf. TEPEDINO, Gustavo. As Relações de Consumo e a Nova Teoria Contratual. Publicações da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acesso em: 31 jul 2003.

16- Cf. MARQUES, Cláudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor (um estudo dos negócios jurídicos de consumo no comércio eletrônico). São Paulo: RT, 2004. 544p.

Paulo Sá Elias é professor universitário e advogado especialista em Direito da Informática e T.I.

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