Regulamentação do lobby traz benefícios à democracia

Autor: Bruno Torrano (*)

 

O lobby é um ofício nobre à causa democrática? Ou, ao contrário, apenas uma prática de grupos de pressão que buscam influenciar os processos de decisão coletiva mediante artifícios como bajulação, toma-lá-dá-cá e fraude?

Para bem examinar essas questões, devemos resistir à tentação de atribuir, em automático, qualidades negativas às palavras lobby e lobista. A má-fama desses termos tem motivações históricas? Pode ser que sim. É possível sugerir, por exemplo, especialmente após revelações recentes de grandes operações policiais, que a relação obscena entre poder econômico e poder político, permeada pelo constante desrespeito ao princípio republicano, tem sido a tônica da vida pública na nossa jovem democracia. A atividade de lobistas imorais, nesse cenário, certamente desempenhou papel relevante para a consumação da mais variada sorte de crimes contra a administração pública.

Mas a ação corruptora de outros agentes políticos e públicos também contribuiu para o mencionado estado de coisas, e nem por isso estamos dispostos a conferir sentido negativo às profissões que esses agentes exercem. Há uma boa razão para isso: é um equívoco repreender ofícios abstratos mencionando apenas atos criminosos praticados por agentes individuais concretos. Tal como eventuais desvios de magistrados, como venda de sentenças e decisões, não retiram a importância vital da magistratura no nosso âmbito institucional, o problema para a democracia não advém, por si só, da função de pressão política desempenhada por lobistas, e sim de lobistas concretos que instrumentalizam tal função com o propósito de praticar condutas ilegais. Se pudermos demonstrar que a tarefa exercida pelo lobista é, em si mesma, importante para a consolidação de valores democráticos, estaremos em condições de defender sua prática mesmo diante de previsíveis transgressões. Mas podemos demonstrar isso?

Creio que sim. Dentro da ideia de ofício abstrato, o lobby pode ser definido como exercício voluntário de pressão política em processos deliberativos de autoridades públicas, com o objetivo de obter decisão coletiva favorável a determinados interesses particulares. Desde logo, a definição pressupõe que o agente de relações governamentais não tenha controle sobre o resultado final da tomada de decisão. Ele cava um percurso específico para o rio, mas pode acontecer de as águas virem a correr por um canal construído pelo adversário político. Influenciar não é decidir e querer não é poder. Compreendido como “capacidade de influência”, o lobby vincula-se a noções como cidadania ativa, participação política, liberdade de pensamento, liberdade de expressão, liberdade de associação e pluralismo de ideias. Mais do que isso, relaciona-se à relevante tarefa de tornar mais informada a atividade decisória da autoridade pública. A rigor, o que devemos saber é “como” realizar esse lobby. E, aqui, entram em cena três aspectos fundamentais para o debate: publicidade, transparência e igualdade de influência política.

Existem dois modelos distintos de lobby: o modelo desregulado e o modelo regulado. No Brasil, o regimento interno da Câmara dos Deputados, para citar um exemplo, admite o credenciamento de entidades que “possam, eventualmente, prestar esclarecimentos” à Casa (art. 259). No entanto, apesar de tentativas históricas de regulação (PLS 25/84, PL 6132/90, PL 1202/07, PL 1961/15, PEC 47/16), inexistem, ainda, normas jurídicas mediando os procedimentos por meio dos quais o exercício de pressões políticas pode ser considerado legítimo. Por sua vez, um representante destacado do segundo modelo são os Estados Unidos da América, que historicamente deram atenção legislativa ao tema e aperfeiçoaram as regras que devem orientar a prática dos lobistas (Federal Regulation Lobbying Act — 1946; Lobbying Disclosure Act — 1995; Leadership and Open Government Act — 2007).

O ponto a ser ressaltado é que a ausência de regulação não significa que, hoje, nós não tenhamos uma rica indústria de lobistas atuantes. A questão, apenas, é que a falta de controle oficial dificulta que o grande público amealhe informações mais ou menos precisas de quem são esses lobistas, para quem trabalham, quais métodos costumam empregar para pressionar os parlamentares, e quais motivações realmente subjazem aos atos legislativos e administrativos elaborados pelas autoridades públicas.

Eis, aí, a conhecida “política de bastidores”: uma forma obscura, mas extremamente organizada e bem-sucedida, de influência política nos rumos da República. No modelo desregulado, o sucesso do pedido feito ao pé do ouvido do parlamentar pressupõe uma proposta que seja, aos olhos dele, sedutora. Por detrás dos panos, seria ingênuo imaginar que o fascínio da proposta fosse alcançado apenas mediante considerações relativas ao “bem comum”. Ao contrário, a falta de transparência e publicidade, aliada à estatura política e econômica daqueles que, já hoje, sabem da importância do lobby e destinam recursos consideráveis para equipar pessoal e logística nessa atividade, são fatores que incentivam trocas de favores espúrios e corrupção.

Outro defeito do modelo desregulado é este: o enfraquecimento do ideal de igualdade de influência política. Algumas pessoas alegam que a exigência de credenciamento de lobistas poderia conduzir a uma indevida reserva de mercado. Penso que um credenciamento que obedecesse satisfatoriamente aos princípios da eficiência e da universalidade poderia contornar esse problema. Essa, entretanto, é outra discussão. A pergunta que quero fazer, neste ensaio, é a seguinte: essa reserva já não existe?

Ora, a “política dos bastidores”, tal como feita hoje, é o exemplo paradigmático de um nicho de mercado disponível, sobretudo, a grupos de interesse que já possuem (i) capacidade privilegiada de organização, (ii) relevante capital político e/ou econômico e (iii), por diversos motivos, trâmite favorecido com figuras do alto escalão de poder. O modelo desregulado alimenta um seleto mercado de lobistas anônimos que têm muito mais chances de moldar o destino das decisões coletivas da República do que cidadãos comuns e empresas que não possuem os contatos certos na hora certa. É exatamente a falta de regulação que enseja um cenário elitista, seletivo e de influência política desequilibrada, no qual grandes especialistas da arte da comunicação e do convencimento, ou mesmo grupos de pressão menos habilidosos, mas tão influentes quanto, podem caminhar livremente entre os parlamentares representando alguns poucos agentes políticos. A abertura democrática aos processos de convencimento público é pressuposto para amenizar a desigualdade que existe nessa área. Não se trata, portanto, de recriminar o ofício dos lobistas, e sim de saber como podemos, por um lado, aumentar a transparência e publicidade de suas atividades e, por outro, colocar à disposição de toda a sociedade as benesses trazidas por serviços especializados em influência política nos processos decisórios.

Notem bem: a regulação aumentaria significativamente as chances de tornarmos nosso jogo político menos enigmático e desonesto. Mas ela não eliminaria, por completo, nem a “política de bastidores”, nem práticas criminosas como corrupção e tráfico de influência. A mera promulgação de uma nova norma jurídica não é capaz, por si só, de alterar o estado de coisas dentro do qual ela pretende agir. De nada adianta uma mudança formal do direito sem, por um lado, o comprometimento daqueles que estão encarregados de aplicar esse direito e, por outro, uma mudança cultural subjacente, vinda da própria comunidade. De toda forma, o fato de a norma jurídica poder vir a ser violada não conduz à conclusão de que a sua existência, em um primeiro momento, é dispensável ou indesejável. Normas estabelecem estados de coisas desejáveis, mas não deixam de ser válidas ou importantes pelo simples fato de existirem pessoas que não as obedecem. A prática, no Brasil, de milhares de homicídios por ano não retira a validade, e nem a importância, do artigo 121 do Código Penal, que proíbe exatamente o homicídio. De modo análogo, a regulação do lobby demarca um estado normativo desejável que não perde sua relevância mesmo diante da perspectiva de eventuais desvios por parte de agentes de relações governamentais. Nessa última hipótese, o correto não é vociferar, automaticamente, pela inutilidade da regulação, e sim exigir sanções rígidas e fiscalização perseverante.

 

 

 

Autor: Bruno Torrano  é mestre em Direito. Assessor de ministro no Superior Tribunal de Justiça. Professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).


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