Luiz Antônio Bogo Chies*
SUMÁRIO: Introdução – 1. Um enfoque problemático sobre o trabalho externo no quadro da execução penal – 2. A prova para concessão da remição – 3. A remição pelo trabalho externo e sua prova num enfoque de garantias – Considerações finais – Bibliografia
Introdução:
Neste breve estudo, cujo objetivo se prende ao desenvolvimento de estratégias críticas de suplante dos antagonismos do sistema de execução penal e da realidade prisional na qual se realizam as penas privativas de liberdade, buscamos como objeto de análise um tópico que entendemos ser de relevância no contexto atual em face do redimensionamento das relações de trabalho e das questões de segurança pública. Tal tópico se constitui no ponto de intersecção entre o trabalho do apenado e a expectativa de remição (enquanto direito de execução penal) que se gera a partir de suas atividades laborais.
Com efeito, delimitando-se sucintamente a questão, e entendendo-se a remição “como a possibilidade de o preso abater, do cômputo temporal da pena privativa de liberdade, os dias efetivamente trabalhados durante seu encarceramento, na proporção, conforme o art. 126, § 1º, da Lei de Execução Penal, de três dias de trabalho por um de pena” (ALVIM, 1991: 79), podemos considerar, num primeiro momento, que a remição se vincula com os postulados do “paradigma da recuperação”, como peça chave deste, numa perspectiva de sua coerência e racionalidade.
Dentro desta lógica o instituto permite que o vínculo entre trabalho e pena privativa da liberdade – existente desde os momentos de gênese da prisão como modalidade punitiva basilar dos sistemas penais modernos – apresente-se redimensionado, exaltando por um lado as “propriedades terapêuticas” do trabalho na “cura social” (tratamento) do apenado e, por outro, a expectativa do sistema socioeconômico em receber, após o período da punição, um indivíduo moldado (ou renovado) em sua capacidade e potencial de disciplina para se inserir no sistema de produção e mercado de trabalho.
Entretanto, a acrítica busca pela realização do “mito do bom presídio” não permitiu ao legislador, e não obstante ser a Lei de Execução Penal (LEP) do ano de 1984, dotar o sistema de eficientes mecanismos de anteparo aos ventos neo-liberais e econômico-globalizantes. A omissão, o desinteresse e até mesmo a impotência do Estado (aqui sendo-se otimista e talvez ingênuo) em dotar a realidade carcerária de “produtivos” postos de trabalho, bem como a vigente política mundial de precarização das relações laborais, apressaram o desvelamento do caráter paradoxal dos termos da Lei de Execução Penal e da realidade carcerária em relação ao trabalho e à remição.
Diante de tal quadro aquilo que de saudável se poderia buscar no trabalho prisional ficou esvanecido no complexo jogo conflitante dos interesses opostos do Estado e dos apenados; aquele mais preocupado em manter a máscara ética do paradigma adotado, estes na incessante batalha contra o tempo de prisão, na qual a remição converteu-se em importante arma, vez que enfraquece (pelo abatimento parcial) o poderoso inimigo que é o tempo.
Tal jogo, desigual na capacidade de enfrentamento das partes cujas forças estão em correlação (e isso mesmo no plano das “batalhas” jurisdicionais), tem provocado como um de seus mais nefastos efeitos uma negação acrítica (tradicional e pré-moderna) não só dos conteúdos dos dispositivos normativos atinentes ao sistema de execução penal em si, mas também desses quando enfocados sob o necessário prisma de sua contaminação constitucional, restando, assim, consubstanciadas graves distorções na interpretação e aplicação judicial dos termos legais.
Buscamos nosso objeto de análise numa dessas distorções. E esta se consubstancia no indeferimento, por parte das instâncias judiciais, do direito à remição obtido através de atividades laborais desenvolvidas a título de trabalho externo; sobretudo àquelas na qual a relação laboral do apenado se dá com um “empregador” privado, com ou sem vínculo formal de emprego, ou mesmo naquelas em que as atividades são desenvolvidas de modo autônomo pelo condenado.
Quanto à questão o dado concreto que exsurge como mais intrigante decorre da contradição entre a posição da doutrina – que se pode considerar unânime no sentido de que não faz a lei qualquer distinção quanto à natureza do trabalho desenvolvido pelo apenado, podendo então a remição ser obtida tanto pelo trabalho interno como pelo externo [1] , sendo as atividades manuais ou intelectuais, agrícolas ou industriais, não se excluindo sequer o artesanato [2] , desde que autorizado pela administração do estabelecimento – e o posicionamento casuístico do Judiciário, em especial nas decisões de 1º Grau de Jurisdição, que em muitas oportunidades resta por indeferir os pedidos de remição pelo trabalho externo sob a alegação de “inviabilidade de fiscalização e prova das atividades e do tempo de trabalho” [3] .
Ao que se percebe da controvérsia é que esta se centra mais na perspectiva da prova (comprovação) do efetivo cumprimento e do tempo das atividades laborais executadas a título de trabalho externo (perspectiva que se agrava nas relações com “empregador” privado, sobretudo aquelas nas quais o vínculo é informal, e ainda mais quando as atividades são de natureza autônoma por parte do apenado).
Tais são, pois, os motivos que nos levam a delimitar nosso objeto de estudo, a partir das reflexões que propomos nos itens seguintes, na questão da prova para fins de remição pelo trabalho externo sob o enfoque de um sistema de garantias.
1. Um enfoque problemático sobre o trabalho externo no quadro da execução penal
O trabalho, enquanto elemento inserido no sistema de execução penal brasileiro encontra previsão geral no artigo 39 do Código Penal, sendo regulamentado (em legislação especial) no Título II (Do condenado e do internado), Capítulo III da Lei de Execução Penal (Lei nº 7.210/84) que, em suas três seções, abrangendo os artigos 28 a 37, trata respectivamente das disposições gerais do trabalho, do trabalho interno e do externo.
A regulamentação do ordenamento jurídico brasileiro acerca do trabalho do preso se compatibiliza com as disposições presentes nas Regras Mínimas da Organização das Nações Unidas. Em nossa realidade, pois, conforme destaca Rodrigo Sánches Rios (1994), o trabalho do preso registra, ao menos no plano formal-legal, as três principais características da concepção moderna do trabalho penitenciário: ausência de aflitividade; remuneração; e, obrigatoriedade.
A questão da obrigatoriedade do trabalho do preso, mesmo enquanto elemento inserido na execução da pena privativa de liberdade, é problemática já em sua relação com os limites da intervenção legal do Estado na liberdade individual, bem como diante da garantia constitucional que veda penas de trabalhos forçados (artigo 5º, XLVII, “c”, da Constituição Federal de 1988), mas aparentemente (e no plano formal da lei) encontra-se “apaziguada” – mesmo que não isenta de pertinentes críticas – pelos dispositivos da Lei de Execução Penal que apresentam o trabalho não só como um dever do preso (artigo 28), exaltando suas finalidades educativas e produtivas, mas também como um direito do condenado (artigo 41, II).
Assim o trabalho penitenciário, entendido enquanto um direito do condenado, em decorrência da lógica da execução penal representa um elemento que se inclui no sistema progressivo de execução da pena, do que decorre tratamento diferenciado quanto à possibilidade dos apenados, em diferentes situações, terem acesso ao trabalho nas modalidades previstas na lei.
Nesse sentido duas são, portanto, as modalidades de trabalho regulamentadas: o interno e o externo. A distinção primeira entre ambos está na possibilidade de acesso por parte dos apenados. O trabalho externo é limitado aos presos em regime fechado, sendo a estes admissível “somente em serviço ou obras públicas realizadas por órgãos da administração direta ou indireta, ou entidades privadas, desde que tomadas as cautelas contra a fuga e em favor da disciplina” (artigo 36 da LEP) [4] . Para os presos em regime semi-aberto o trabalho externo é acessível após o cumprimento de 1/6 (um sexto) da pena [5] .
Já os apenados que cumprem pena no regime aberto, ou este alcançam através de progressão de regime, devem comprovar, segundo os critérios legais, que estão trabalhando ou possuem a possibilidade de fazê-lo imediatamente (artigos 36, § 1º, do Código Penal e 114, I, da LEP). Tal regulamentação acerca do trabalho na legislação de execução penal nos permite cogitar, entretanto, que o trabalho no regime aberto não se insere numa estrita perspectiva de um trabalho penitenciário, mas sim aponta prioritariamente para relações com vínculo exclusivamente privado ou mesmo de natureza autônoma, extra influência da administração do estabelecimento carcerário.
Assim, se indubitável que o trabalho no regime aberto é, em sua dimensão objetiva, um trabalho externo, duvidoso será, entretanto, que o “espírito” da Lei de Execução Penal – ou mesmo a “indecifrável” vontade do legislador – tenha pretendido alcançar aos apenados de diferentes regimes (sobretudo àqueles que cumprem pena em regime semi-aberto e aberto) as mesmas oportunidades de vínculos e relações de trabalho.
Nossa hipótese – que é buscada não num sentido de sua aceitação, mas sim na expectativa de perceber o quão problemático se apresenta o sistema na correlação de sua perspectiva formal-legal com a de sua adequabilidade na realidade social – conduz ao entendimento de que o trabalho externo para os apenados em regime semi-aberto, conforme a legislação vigente, tem (ou tinha) como expectativa um vínculo relacional sempre mediado pelo Poder Público através da administração penitenciária: seja em sua oferta direta; seja também através de serviços ou obras públicas realizadas por órgãos da administração direta ou indireta, ou entidades privadas; seja ainda através de vínculos de parceria formalizados entre o Poder Público e empresas privadas, como os chamados Protocolos de Ação Conjunta (PAC) existentes no Rio Grande do Sul.
Com efeito podemos supor que ainda que dessas relação possam, sobretudo na última hipótese, decorrer vínculos empregatícios entre apenados e empregadores privados, estes vínculos não se caracterizam (ou são exigidos por lei) como resultado essencial ou indeclinável da relação de trabalho, em sua dimensão penitenciária, no regime semi-aberto. Lembremo-nos que o próprio artigo 28, § 2º da Lei de Execução Penal estabelece que o trabalho do preso não está sujeito ao regime da Consolidação das Leis do Trabalho.
Já no que tange ao trabalho do apenado em regime aberto, como mencionamos, na hipótese proposta a legislação nos permite cogitar uma intencional direcionalidade para que os apenados desse regime comprovem, a fim de nele estarem inseridos, um vínculo de emprego ou, ao menos, uma regular ocupação laboral autônoma, independente da influência ou intervenção da administração penitenciária na obtenção desse “requisito” do regime.
Um outro elemento, objetivo e normativo, a nos apontar a plausabilidade dessa hipótese está justamente no critério legal (nunca colocado em perfeita prática) que promove a distinção entre os estabelecimentos penais e indica as “categorias” de apenados (categorias essas pelo critério de regime de execução de pena privativa de liberdade) às quais cada tipo de estabelecimento se destina.
Estas normas são encontradas sob o Título IV da Lei de Execução Penal (Dos Estabelecimentos Penais) que, respectivamente em seus Capítulos II (artigos 87 a 90), III (artigos 91 e 92) e IV (artigos 93 a 95), trata da Penitenciária, da Colônia Agrícola, Industrial ou similar e da Casa de Albergado.
Nesse sentido as Penitenciárias seriam estabelecimentos destinados aos condenados à pena de reclusão, em regime fechado (artigo 87 da LEP), as Colônias Agrícolas, Industrias ou similares aos condenados que cumprem pena em regime semi-aberto (artigo 91 da LEP), e as Casas de Albergado seriam destinadas ao cumprimento das penas em regime aberto e de limitação de fim de semana.
As próprias peculiaridades de cada tipo de estabelecimento penal já indicam o favorecimento ou não de determinados tipos de trabalho.
Volvendo-nos à especificidade do trabalho externo poderemos com facilidade cogitar que, na coerência do vínculo legal entre o regime semi-aberto e o típico estabelecimento que lhe é destinado – as Colônias Penais –, as atividades laborais externas em expectativa legal para os apenados em execução nesse regime estariam muito mais voltadas para a área “externa” do alojamento em si, mas não necessariamente “externa” ao contexto do cárcere, ou, no máximo, restrita a locais adjacentes ao estabelecimento.
Por óbvio que o “trabalho externo” favorecido por esse vínculo legal entre um regime e um estabelecimento típico, no caso do regime semi-aberto, tenderá a atividades que estejam sob a administração direta ou indireta (mediante parcerias) com o Poder Público, via administração do estabelecimento.
Já o similar vínculo (regime/estabelecimento) existente na relação Casa de Albergado e regime aberto, nos termos legais, é favorecedor de toda uma “natureza” distinta do que se poderá (ou poderia) chamar de trabalho externo. As Casas de Albergado se caracterizam, conforme artigo 94 da Lei de Execução Penal, por serem (deveriam ser!) prédios situados em centros urbanos, separados dos demais estabelecimentos, nos quais estariam ausentes os obstáculos físicos contra a fuga.
Estabelecimentos com esta localização “privilegiada” e com tais “detalhes” arquitetônicos – ausências de obstáculos físicos contra fuga – são favorecedores de que as atividades laborais desenvolvidas pelos apenados que abrigam possam ser tipicamente as com vínculo empregatício privado, ou mesmo em regulares prestações autônomas de serviço, vez que então o efetivo trânsito do apenado pelo espaço social “extramuros” – via de regra necessário a tais modalidades de trabalho – estará assegurado com facilidades.
Estas observações, portanto, interpretamos como um reforço a nossa hipótese de que a legislação, em sua intencionalidade inicial, não pretendia que o sistema de execução penal permitisse, mesmo a título de trabalho externo, as mesmas possibilidades e oportunidades de vínculos e relações laborais aos apenados dos distintos regimes, inclusive àqueles em regime semi-aberto em diferenciação com àqueles em regime aberto.
E esta hipótese nos permite ler com olhos de instigação crítica a seguinte observação de Alvim:
Visto em si mesmo, o trabalho externo não constitui uma novidade nem sequer um apanágio dos regimes progressivos da pena privativa de liberdade. Basta-se a esta afirmação relembrar que mesmo nos períodos anteriores da história do direito criminal os presidiários sempre trabalharam extramuros – nas construções de obras públicas e em locais insalubres –, embora tal tipo de trabalho não se lhes tocasse como um direito ou regalia, destacando-se, contrariamente, como uma imposição da rusticidade da repressão penal. (1991: 71)
Nesse sentido, ao buscarmos um enfoque histórico dos vínculos entre trabalho e pena privativa da liberdade passaremos, após uma percepção de cumplicidade de gênese desta com aquele, pela identificação de fases e sistema nos quais o desenvolvimento da relação provoca uma confusão de ambos elementos – trabalho e privação da liberdade – numa mesma modalidade punitiva.
É pois a confusão entre esses dois elementos dentro de uma mesma modalidade penal que os sistemas progressivos de execução da pena privativa de liberdade têm buscado eliminar no regramento do trabalho prisional, e em especial o brasileiro quando buscou no instituto espanhol da redención de las penas por el trabajo a inspiração para o instituto da remição. Alvim assim também o percebe:
Com a declarada adoção do regime progressivo – pelo qual a pena privativa de liberdade compõe-se, em função do grau de liberdade desfrutado, de estágios (fechado, semi-aberto e aberto), do mais severo ao mais suave, atentando-se sempre à conduta do recluso –, o trabalho externo toma outra feição, prática e jurídica, assumindo sua concretização uma tentativa de fincar o início do processo de reinserção social do preso e afastando-se, portanto, daquele antigo signo de açodamento do castigo penal. (1991: 71)
Mas, não obstante os avanços que se pode pretender imputar aos sistemas progressivos quanto à relação trabalho e pena privativa da liberdade (imputações essas que devem sempre ser permeadas de um enfoque crítico para que não se convertam em mera exaltação de falácias bem mascaradas), o que se pode perceber no contraste entre nossa legislação e àquilo que de saudável se busca obter através do trabalho do apenado é a permanência de antigos ranços; entre esses o da imagem de que o preso deve, prioritariamente, trabalhar – quase de modo “forçado” (a obrigatoriedade do trabalho prisional) – em serviços e obras públicas que exijam grande carga de esforço físico (a imagem da bola de ferro nos pés de um preso construindo estradas de ferro ou trabalhando em pedreiras ainda é viva no imaginário social), ou mesmo sob a vigilância permanente dos agentes de custódia.
Tais ranços, quando conjugados com a omissão do Estado em estruturar o sistema de execução penal ao menos nos termos mínimos da Lei (incluindo também a construção de estabelecimentos adequados e a criação de vagas de trabalho prisional), bem como ainda somados às próprias alterações da conjuntura socioeconômica mundial e às aletrações globalizantes do mundo do trabalho (alterações que com maior contundência são sentidas nas áreas periféricas e marginais do globo, como a América Latina), promovem um quadro complexo, confuso e problemático no qual, novamente por deficiência legal e postura acrítica dos seus aplicadores, restamos diante de um sistema que não está (ou não se entende) instrumentalizado para lidar com a realidade ambígua e paradoxal.
E é o trabalho externo parte dessa realidade ambígua e paradoxal. Sob qualquer hipótese e perspectiva os termos da Lei de Execução Penal e a estrutura carcerária não estão aptos a cumprir as expectativas consignadas pelo legislador. Tampouco a realidade permitirá que essa perspectiva – benéfica ou nefasta – possa ser concretizada. Não há mais lugar, no mundo do trabalho precário e da competitividade global, para que as disposições legais de 1984 acerca do trabalho do preso (rançosas ou não) encontrem viabilidade; e isso mesmo que, na acriticidade de alguns, resista a vã esperança e crença na visão (“mítica”) do “bom presídio”.
Mas se a conjuntura atual aponta-nos alguns caminhos, não menos ambíguos do que os já trilhados – a exclusão total do apenado; a exploração privada dos estabelecimentos e dos presos; o desvelar crítico de um novo (ou redimensionado) paradigma punitivo; ou ainda um caminhar utópico, mas viável, para modelos outros de resolução de conflitos –, a urgência no enfrentamento dos paradoxos atuais passa, ao menos em nosso entender, também por uma postura de revitalização crítica do papel do trabalho em seu vínculo com as modalidades penais. E, nesse sentido, entendemos ainda ser de fundamental importância o enfoque da remição pelo trabalho externo, sobretudo a partir do resgate das garantias legais que esse direito viabiliza, não obstante que o ranço tradicional em muito resista.
2. A prova para concessão da remição
Dentro do plano daquilo que se poderia imputar – sobretudo a partir da análise acima feita – como a “normalidade” do trabalho penitenciário nos termos da Lei de Execução Penal (e isso tanto no que tange ao trabalho interno como ao externo), pode-se considerar que a questão da prova deste enquanto elemento gerador do direito de remição não se apresenta , a princípio, como algo problemático.
Pelo contrário, a pretensão legal é clara na previsão de que o controle das atividades laborais dos apenados deve ser exercido pela autoridade administrativa penitenciária, que é o órgão, portanto, competente para atestar o cumprimento e as condições deste “dever” do preso, como se depreende da leitura do caput do artigo 129 da Lei de Execução Penal:
Art. 129. A autoridade administrativa encaminhará mensalmente ao Juízo da Execução cópia do registro de todos os condenados que estejam trabalhando e dos dias de trabalho de cada um deles.
Parágrafo único. Ao condenado dar-se-á relação de seus dias remidos.
E novamente a lei, através de seus termos, indica-nos que seu “espírito” primeiro destoa da realidade fática consumada, em especial no que tange ao trabalho externo.
Nesse sentido convém retornarmos um pouco a um tema que poderia ter sido inserido no item anterior, mas que para fins de nossa análise se conjuga melhor com este tópico atinente à prova do trabalho para fins de remição.
O caput do artigo 37 da Lei de Execução Penal, dentre outras disposições, deixa-nos clara a perspectiva de que as atividades às quais terá o apenado direito (e dever) a título de trabalho externo serão autorizadas pela direção do estabelecimento [6] . Essa disposição, pois, pode ser interpretada como mais um reforço ao entendimento de que a expectativa da lei era a de que o acesso a todas atividades desenvolvidas a título de trabalho externo – seja por apenados em regime fechado (dentro das restrições já comentadas), seja pelos do regime semi-aberto – fosse, ao menos num grau mínimo de controle e influência, intermediado pela esfera administrativa do estabelecimento penitenciário, senão a esta vinculadas as próprias atividades.
Do vínculo que podemos vislumbrar entre os termos dos mencionados artigos 37 e 129 da Lei de Execução Penal, naquilo que destacamos, verifica-se pois que o ordenamento jurídico, e seu conseqüente sistema, molda-se a partir de uma perspectiva de coerência, gerando a expectativa de que a prova – dotada de credibilidade – de efetivo desenvolvimento de atividades laborais pelo apenado, para fins de que a este seja reconhecida e declarada a remição, seja ofertada pela própria autoridade administrativa.
A coerência, salientamos, está numa perspectiva da lei que presume que o trabalho interno sempre se dará sob o conhecimento (inclusive determinação) e fiscalização do ente administrativo, e o trabalho externo também por este será, ao menos, mediado e fiscalizado em face da natureza dos vínculos que são esperados na alocação de “vagas” aos apenados.
Diante de tais presunções e pretensas “coerências” a questão da prova do “efetivo trabalho” do apenado, para fins de reconhecimento e declaração judicial de remição, tenderia a se resumir e a se exaurir (ao menos na expectativa legal) no documento (cópia do registro) que a autoridade administrativa deve mensalmente encaminhar ao Juízo da Execução (nos termos do caput do artigo 129 da LEP [7] ).
Nesse sentido, que é restrito à análise de uma perspectiva de lógica e de coerência dos dispositivos legais – portanto crente na possibilidade (ou ficção) de realização perfeita do sistema projetado nas normas, e que não leva assim em consideração os paradoxos de sua concretização – a questão da prova na remição aparece-nos em extrema singeleza.
Mas nem a própria doutrina se contenta com tal solução quando se permite avançar para mais além dos textos legais e tangenciar as realidades que estes pretendem regrar. Nesses casos, partindo sobretudo do entendimento de que a inoperância do órgão administrativo não pode ser causa da não obtenção do direito do condenado, restam por admitir que diante da falta do registro ou cópia de que trata o caput do artigo 129 da Lei de Execução Penal possa o apenado provar de outra forma, e por outros meios idôneos, seu período e quantum de trabalho a fim de obter o abatimento de pena pela remição.
Cabe aqui questionarmos, entretanto, se a inoperância do órgão administrativo, a ser considerada, deve dizer respeito tão só ao registro das atividades laborais e/ou ao encaminhamento da cópia deste ao Juízo, o que justificaria então a utilização de outro meio idôneo de prova, ou se pode ainda se referir a outras esferas de omissão, como a da própria oferta “normal” (na perspectiva tradicional do sistema) de trabalho, o que então nos abriria outras possibilidades no que tange ao direito à remição e os meios probatórios para tal fim.
E, em nosso entendimento, é a própria ambivalência da natureza jurídica conferida ao trabalho do preso – uma bizarra mescla de direito e dever – bem como da dimensão ética do trabalho em si na sociedade moderna que nos poderão conduzir a uma resposta adequada.
São tais conteúdos, sobretudo naquilo que de ambíguo encerram quando confrontados com a realidade concreta do mundo do trabalho num sistema capitalista e (agora visivelmente) globalizante, que criam – mesmo que paradoxalmente em relação à perspectiva excludente do sistema – de forma inexorável a obrigação do Estado em viabilizar oportunidades laborais a todos os apenados, ou, na omissão fática dessa hipótese, preservar e garantir os direitos daqueles que por tal omissão sejam afetados.
Assim, diante da natureza jurídica conferida ao trabalho do preso e dos conteúdos éticos do trabalho na sociedade moderna o Estado – quer isso seja aprazível ou não ao sistema que o sustenta e ao qual está vinculado por estreitos laços de gênese – encontra-se impedido de se isentar ao reconhecimento dos efeitos de sua omissão, não obstante o fato de que a lei, nesse sentido, está a pretender efeitos somente na hipótese da não omissão do Estado.
Logo, a inexistência – pela incapacidade ou impotência gestora e administrativa do Estado – de oportunidades laborais internas ou externas ao sistema penitenciário que alcancem todos os apenados não pode ser escudo para que o Estado se isente de reconhecer e garantir o direito à remição daqueles que, não por omissão própria (legítima por suposto), deixaram de realizar atividades de tal ordem.
Por outro turno, em havendo a admissibilidade por parte do sistema de que outras modalidades de trabalho externo sejam obtidas pelo apenado – modalidades que para sua existência pouco ou nada resultam da intervenção dos órgãos da administração penitenciária, restringindo-se esta a intervir na viabilização e fiscalização do trânsito do apenado ao ambiente externo nos horários judicialmente autorizados – a tais modalidades também se vincula a obrigação do Estado quanto ao reconhecimento e declaração da remição.
E não é ilógico assim considerar pois que a admissibilidade dessas modalidades de trabalho (com vínculos exclusivamente privados – formais ou informais na sua dimensão de relação de emprego – ou meramente autônomas) pelo sistema de execução penal se dá a partir da exigência dos mesmos requisitos expostos legalmente para o trabalho externo. Logo, seja a admissão de tais modalidades motivadas pela percepção crítica ou acrítica da necessidade de adaptação do sistema de execução penal à atual conjuntura social do mundo do trabalho, seja ainda por um mero mecanismo de “apaziguamento” das tensões geradas pela própria omissão Estatal (incapacidade intencional ou não, e até mesmo impotência) em suprir os estabelecimentos das vagas de trabalho exigidas pela perspectiva tradicional da lei, o que se tem em concreto é que tais modalidades de trabalho são entendidas como a realização em concreto do “benefício” (direito) legal do “trabalho externo”. E, em assim sendo compreendidas, nenhuma razão há para que o efeito legal do trabalho penitenciário – interno ou externo – não se produza também a partir delas, ou seja, que nessas não se opere a remição.
Mas não obstante o exposto a questão parece retornar ao seu ponto de partida, vez que em não havendo nessas modalidades de trabalho externo uma intervenção mais ativa da administração penitenciária, sobretudo no controle “oficial” e direto das atividades e da mensuração temporal do trabalho, perdura a pergunta acerca da prova do trabalho efetivado para fins de remição.
Uma resposta a tal pergunta, como a entendemos, parece-nos que já consta nas análises anteriores, ou seja: não estando a possibilidade do trabalho externo a depender exclusivamente da iniciativa e gestão vinculada à administração penitenciária, não estará a sua prova, para fins de remição, também na dependência exclusiva do registro mensal a que se refere o artigo 129 da Lei de Execução Penal; nesse sentido a prova deverá ser buscada em documentação idônea, ou mesmo em declarações testemunhais a que se possa imputar credibilidade, que atestem, perante a esfera jurisdicional, o efetivo cumprimento de atividades laborais permitindo, também, sua quantificação temporal.
E a coleta de um conjunto probatório que nesse sentido possa adquirir validade formal e substancial perante uma execução penal jurisdicionalizada não é nenhuma ficção ou utopia em nosso sistema, basta que se interprete o mesmo como um sistema de garantias, como pretendemos analisar no item seguinte.
Ademais, poderemos ainda verificar que alguns registros da administração penitenciária, conforme o nível de garantismo com o qual estivermos comprometidos, deverão ser interpretados como adequados aos termos do caput do artigo 129 da Lei de Execução Penal, ainda que não se referiram restritamente ao registro do trabalho realizado em si.
3. A remição pelo trabalho externo e sua prova num enfoque de garantias
As reflexões procedidas nos itens anteriores delimitam nosso objeto, sob um de nossos enfoques de análise, dando-lhe o seguinte matiz: a questão da prova do efetivo trabalho e de sua mensuração temporal, para fins de reconhecimento e declaração de remição, em casos de trabalho externo desenvolvido a partir de relações laborais exclusivamente privadas – com ou sem vínculo formal de emprego – ou em atividades de natureza autônoma, cuja origem não se deve a iniciativas e intervenções da administração penitenciária.
Para enfrentar a análise desse objeto sob esse enfoque partimos de dois postulados (também admitidos a partir das reflexões procedidas nos itens anteriores): a) independente das motivações possíveis se verifica a admissibilidade, por parte do sistema de execução penal, da modalidades laborais supra mencionadas sob a caracterização legal do “trabalho externo”; b) que a prova do trabalho do preso, para fins de remição, ainda que ordinariamente se vincule ao registro da administração penitenciária, cuja cópia deve ser encaminhada ao Juízo, pode, independente desde, ou na sua omissão, ser buscada e realizada por outros meios idôneos.
Diante de tal delimitação e postulados o que propomos a seguir é um enfoque da questão da prova da remição, no trabalho externo, sob o prisma de um sistema legal de garantias e uma execução penal jurisdicionalizada (como nos indica a base principiológica do ordenamento jurídico brasileiro).
Para tanto devemos partir de uma percepção acerca da forma pela qual se dá o acesso do apenado a uma dessas modalidades “especiais” de trabalho externo.
Nesse sentido o que se verifica a partir das práticas e praxes judiciais é que, no que tange a concessão e admissão casuística dessas “especiais” modalidades de trabalho externo, uma vez alcançados pelo apenado aqueles que são os requisitos objetivos exigidos por lei para o deferimento do direito – inserção no regime semi-aberto e cumprimento de um lapso temporal mínimo de um sexto da pena privativa de liberdade [8] – seu pedido é encaminhado, via de regra acompanhado de um documento no qual se consubstancia a proposta de trabalho (“emprego”), ao Juízo da Execução a fim de que o analise e decida.
A tramitação judicial desses pedidos – que se note: pela peculiaridade dos vínculos e condições nas quais o trabalho será realizado, ou seja, sem a intervenção direta ou mediata da administração penitenciária, passaram a exigir a decisão jurisdicional, fugindo assim à esfera de decisão exclusiva da autoridade administrativa, como propunha a “normal” expectativa do artigo 37 da Lei de Execução Penal – segue os termos propostos pelos artigos 194 a 197 da Lei de Execução Penal, e em especial os do artigo 196. Assim, uma vez protocolado o pedido, conseqüência legal será a manifestação do Ministério Público sobre o mesmo.
Com efeito, e não obstante a possibilidade de outras determinações, como por exemplo a requisição de exames e laudo por parte de alguma equipe técnica, uma vez deferido o pleito será o estabelecimento penitenciário oficiado a fim de que libere o apenado nos períodos (horários e dias da semana) fixados, viabilizando-se, assim, o desenvolvimento das atividades laborais – trabalho externo – por parte desse.
Uma vez que as atividades laborais desenvolvidas pelo apenado através dessas modalidades de trabalho externo não possuem vínculo direto ou indireto com a administração penitenciária é compreensível que esta não proceda registros na exata perspectiva do caput do artigo 129 da Lei de Execução Penal. Mas, não obstante isso, indubitável é que a administração penitenciária possuirá registro não só da autorização judicial para o trabalho externo do apenado, bem como manterá registro de suas saídas do estabelecimento e retornos ao mesmo, conforme horários determinados pelo Juízo.
Diante de tal fato não há, pois, como se falar em inexistência de registro por parte da administração penitenciária, ainda que o conteúdo do registro que esta mantém se diferencie – num enfoque rigoroso – daquele implícito e em perspectiva no dispositivo legal.
Com efeito, uma vez pleiteada a remição pelo apenado que se insere numa dessa modalidades (“especiais”) de trabalho externo nada impede que parte da prova seja buscada através de documentação fornecida pela administração penitenciária que ateste o período (e mesmo a quantidade de dias) de liberação do apenado – saída e retorno – a partir dos termos da autorização judicial obtida no pedido de trabalho externo. E um documento com tal conteúdo, sob um adequado prisma de enfoque, entendemos que se compatibiliza com o disposto no caput do artigo 129 da Lei de Execução Penais, eis que em verdade se refere a declaração de quantos dias o apenado saiu do estabelecimento para trabalhar, uma vez que somente para tal fim sua saída foi autorizada pelo Juízo.
O comentado acima de certa forma nos conduz a uma situação e raciocínio de “obviedade” (mas que nem sempre é assim admitido), ou seja: uma vez deferido o trabalho externo ao apenado, o que implica em sua saída diária do estabelecimento prisional, bem como sabendo-se que sua saída foi autorizada porque é condição sem a qual não se efetiva a atividade laboral, e portanto ocorrendo em função do trabalho e não por outro motivo ou para outra finalidade, tem-se que, não obstante possível inexistência de fiscalização e vigilância direta, a cada dia de saída efetiva-se um dia de trabalho. Logo, e mesmo para os reticentes, trata-se aqui no mínimo de se estabelecer uma “presunção” em favor do apenado; e presunção que entendemos adequada e substancialmente válida eis que decorre da imediata lógica das dinâmicas que dão origem e se estabelecem na perspectiva concreta dessas modalidades de trabalho externo.
E com efeito, se pretendemos crer que estamos vivendo (ou exigir que vivamos) num Estado democrático de direito, no qual o sistema jurídico é um sistema de garantias, é tal presunção – que se filia em analogia, ou mesmo em decorrência, na base principiológica constitucional em que se encontra consubstanciada a presunção de inocência (artigo 5º, LVII, da Carta de 1988) – que deve servir de norte e elemento balizador das manifestações e decisões judiciais nos pedidos de remição pelo trabalho externo a partir das modalidades laborais que estamos a examinar.
Mas se tal presunção, e alguns poderão assim objetar, não é absoluta, cabendo possibilidade de prova em contrário – o que respalda o “temor público” na falta da fiscalização e vigilância direta sobre o trabalho externo do apenado – devemos nos lembrar que o sistema jurídico processual penal pátrio sustenta ser o ônus da prova suportando por quem alega a situação, fato, circunstância ou elemento que dela depender, como se depreende do artigo 156 do Código de Processo Penal.
Logo, alegada suspeita contra a presunção descrita, no que tange a efetivação das atividades laborais externas por parte do apenado e quantificação temporal das mesmas, caberá à parte que tal alegação fizer produzir a prova pertinente. E se tal suspeita tem sua origem, via de regra, numa manifestação do Ministério Público, por óbvio é que a este órgão, como clara parte que é num sistema jurisdicionalizado de execução penal, cabe o ônus de sua prova. Em similar sentido, e mesmo diante do complexo equívoco que ainda vivenciamos no que tange a “gestão da prova” pelo Juiz – mácula inconcebível num sistema que se pretende de garantias –, cogitamos admitir (mas não sucumbir sem crítica) a vigente permissibilidade legal de que o próprio Juízo diligencie no sentido da produção de tal prova. Inexistindo, entretanto, a produção da prova em comento mantém-se, no mínimo, a presunção enquanto já suficiente para que a remição seja deferida a partir dos critérios de cálculo legalmente estabelecidos: um dia de pena abatido a cada três dias de trabalho.
Assumindo-se, pois, o prisma de um sistema de garantias poderíamos concluir nossa reflexão nos seguintes termos: no que tange às modalidades “especiais” de trabalho externo que vimos analisando os registros (quando atestados, certificados etc) de saída e retorno do apenado do estabelecimento prisional, após o deferimento judicial do pedido de trabalho externo e nos termos desse deferimento concretizados, são prova idônea para que seja reconhecida e declarada a remição nos termos da lei, eis que consubstanciam presunção válida do efetivo cumprimento do trabalho e viabilizam a mensuração dos dias trabalhados.
Não obstante tal conclusão entendemos ainda, e sobretudo como cautela diante da presunção descrita não ser absoluta, que qualquer pedido de remição que tenha por atividade laboral motivadora uma dessas “especiais” características ainda se faça acompanhar por outros documentos que auxiliem a comprovação da efetividade do trabalho e de sua mensuração temporal, tais como (por exemplo) declarações do empregador, declarações de clientes (para situações de trabalho autônomo), documentos comprobatórios de relações de prestação de serviço, entre múltiplos outros que possam favorecer a convicção do Juízo, num reforço ao direito que vá mais além da própria presunção já verificada.
E até mesmo admissível, em nosso entendimento, sustentar-se que estes últimos elementos probatórios referidos, mesmo que desacompanhados da cópia dos registros acima enfocados, são suficientes para viabilizar o reconhecimento e declaração da remição nessas modalidades “especiais” de trabalho externo. Por óbvio, entretanto, que mais completa estará a prova quanto maior for o número de elementos apresentados para a demonstração da situação, fato ou circunstância alegada.
Considerações finais:
O caráter ambíguo da relação trabalho e prisão (novamente) é o que exsurge com clareza nestas reflexões. Tal relação, que se pode imputar como constante desde a gênese dos sistemas punitivos que adotam a privação da liberdade como sua execução penal basilar, vem-se redimensionando, entretanto, de forma sempre utilitária ao sabor das exigências do mercado de mão-de-obra sem, contudo, perder aquela característica da ambigüidade.
Igualmente um discurso de perspectiva legitimante sempre se fez companheiro da relação. Na verdade a modernidade exige a si mesma, bem como a suas instituições e dinâmicas, fundamentações através das quais se possa(m) apresentar em pretenso conteúdo racional e “ético”. Sem tais fundamentações, ou discurso, a própria modernidade careceria da pretensa legitimidade que a sustenta e, por outro lado, não poderia mascarar seus favorecimentos aos exercícios privilegiados de poder.
A manutenção da coerência entre a lógica do instrumental legitimante (discurso, fundamentações, etc.), que em muito passa pelos termos do ordenamento jurídico positivado pelo Estado, e a realidade concreta não é, entretanto, uma “tarefa” isenta da produção de lacunas, contradições e efeitos colaterais que atuam na própria denúncia deslegitimante do sistema; sobretudo quando o próprio sistema se encontra em fase redimensionamento de suas dinâmicas e potencialidades. No campo do trabalho prisional é em parte isso que estamos vivenciando.
Nossas reflexões apontam para a compreensão de que o trabalho penitenciário – e mais especificamente aquela sua modalidade que se denomina “trabalho externo” – foi regulamentado no ordenamento jurídico brasileiro dentro de uma perspectiva legitimante e de coerência com os conteúdos éticos do trabalho na sociedade moderna, industrial e capitalista. Sua vigente regulamentação legal, ainda que recente (eis que a lei é de 1984), olha para o passado… e nas dinâmicas do interesse de um sistema prisional que é “fábrica de disciplina” busca os termos nos quais assenta as regras e as modalidades do labor penitenciário do recluso. Mas sua “prática” se consolida enquanto contemporânea de substanciais alterações no mundo das relações de trabalho (flexibilizantes e precarizadas), que contribuem para que a prisão, de “fábrica de disciplina”, converta-se em preponderante “fábrica de exclusão e neutralização”.
E neste contexto a tensão permanente entre os pólos de interesses antagônicos se amplia, dando (de forma crítica ou não) novas feições possíveis às realidades anteriormente “programadas” e que então poderão se perpetuar enquanto institutos (ou práticas) redimensionados para a manutenção legitimante do “apaziguamento” social – nacortização legal do conflito – ou poderão ser convertidos, através de sua percepção estratégica, em elementos de resistência contra a torrente “conformadora” do sistema tradicional.
É assim que entendemos a atual “posição” da remição pelo trabalho externo no quadro da execução penal brasileira. O trabalho externo, como hoje se permite realizar – em muito através de modalidades especiais de relação privada, ou de forma autônoma, que prescindem da intervenção da administração penitenciária para sua consolidação – aparece-nos, menos do que um redimensionamento crítico, como um efeito colateral da própria incapacidade (ou desinteresse) do Estado em prover o sistema penitenciário do mínimo estrutural necessário à manutenção de sua “máscara legitimante”. Mas, não obstante isso (a origem acrítica dessas modalidades), aparece-nos também como uma possibilidade de se revitalizar, estrategicamente, aquilo que se pode considerar como um elemento minimamente saudável do sistema de execução penal; ou seja: sua caracterização como também um sistema jurídico de garantias através das quais a cidadania e a dignidade humana são princípios informadores e balizadores de qualquer intervenção Estatal que possa recair sobre o condenado, sendo então, pois, compromisso fundamental do Estado mais a oferta de oportunidades ao apenado do que a supressão dessas.
Nesse sentido, então, que interpretamos a questão da prova na remição pelo trabalho externo (da forma já exposta no item 3) como também inserida na postulação de um sistema jurídico que se constitui enquanto um sistema de garantias e que, portanto, produz como resultado uma contaminação coerente de sua base principiológica em todas as dimensões concretas de incidência das normas legais, norteando seus efeitos a partir da compreensão crítica dos tensionamentos sociais experienciados no contexto atual.
Assim, e sobretudo num país latino-americano (periférico e marginalizado), quando alguém fala em remição por trabalho externo e busca “reprimir” o reconhecimento e declaração daquela por argumentos da formalidade tradicional quanto à sua possibilidade e prova, será saudável que se guarde o alerta consubstanciado na seguinte decisão prolatada pela Juíza Nilda Margarete Stanieski Pellizer [9] :
… seria por demasiado, ao tempo atual em que o desemprego grassa para pessoas altamente qualificadas, (dir-se-á o que de um apenado?) exigir-se o emprego com CTPS, contrato ou outro formalismo. Sabemos que as atividades paralelas, autônomas, criadas pelo desespero do desemprego e da fome para a sobrevivência são em grande número em todas as cidades deste país continental. Não há contradita quanto a realização do trabalho pelo apenado, há é formalidade que não é adequada ao momento social.
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* Professor Adjunto da Universidade Católica de Pelotas (Escolas de Serviço Social e Direito), responsável pela disciplina de Sociologia Jurídica. Doutor em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad del Museo Social Argentino (Buenos Aires – Argentina).
[1] Encontramos tal unanimidade em todas as obras utilizadas como referencias bibliográficos desse estudo.
[2] No que tange ao artesanato existe uma limitação legal presente no § 1º do artigo 32 da Lei de Execução Penal que assim dispõe: “Deverá ser limitado, tanto quanto possível, o artesanato sem expressão econômica, salvo nas regiões de tursmo.”
[3] E isso não obstante, ao menos no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, já existirem diversos julgados consolidando o entendimento de que não há, para fins de remição, distinção legal entre as naturezas do trabalho. Por emplo: Recurso de Agravo nº 690002605, 1ª Câmara Criminal do TJRS, Relator Jorge Alberto de Moraes Lacerda, julgado em 21/03/1990; Agravo nº 697227122, 2ª Câmara Criminal do TJRS, Relator Moacir Leopoldo Haeser, julgado em 11/12/1997; Recurso de Agravo nº 697229466, 3ª Câmara Criminal do TJRS, Relator José Eugenio Tedesco, julgado em 18/12/1997; Agravo nº 698251063, 2ª Câmara Criminal do TJRS, Relator José Antônio Hirt Preiss, julgado em 17/09/1998; Agravo Regimental nº 70000462671, 2ª Câmara Criminal do TJRS, Relator José Antônio Hirt Preiss, julgado em 29/12/1999; Agravo nº 698507670, 6ª Câmara Criminal do TJRS, Relator Alfredo Foerster, julgado em 18/03/1999.
[4] Cumpre destacar que o anteprojeto de reforma da Lei de Execução Penal, na nova redação deste artigo, veda por completo o trabalho externo aos presos em regime fechado. Existe, ainda, mesmo na redação vigente, uma limitação que estabelece que o número máximo de presos será de 10% do total de empregados da obra (artigo 36, § 1º, da LEP).
[5] Para os apenados que progrediram do regime fechado ao semi-aberto, não obstante alguma divergência jurisprudencial, pode-se considerar que este lapso temporal já se terá cumprido vez que mesmo que é estabelecido como requisito objetivo para a progressão de regime.
[6] Lei de Execução Penal
Art. 37. A prestação de trabalho externo, a ser autorizada pela direção do estabelecimento, dependerá de aptidão, disciplina e responsabilidade, além do cumprimento de um mínimo de um sexto da pena.
Parágrafo único. Revogar-se-á a autorização de trabalho externo ao preso que vier a praticar fato definido como crime, for punido por falta grave, ou tiver comportamento contrário aos requisitos estabelecidos neste artigo
[7] Saliente-se, ainda, que os termos da LEP parecem indicar que, encaminhado pela autoridade administrativa ao Juízo da Execução mensalmente a cópia do registro de todos os condenados que estejam trabalhando e dos dias de trabalho de cada um deles, a remição poderia (ou deveria) ser reconhecida e declarada de ofício pelo Juízo. Podemos assim supor não só pelo teor do parágrafo único do artigo 129, que dispõe, imediatamente aos termos do caput, que ao condenado dar-se-á relação de seus dias remidos, como também pela perspectiva do artigo 195 da LEP que gera a possibilidade de iniciativas de ofício ao Juízo da Execução no procedimento judicial em espécie.
[8] Quanto a este requisito ver observação da nota 6.
[9] Tal decisão foi prolatada no Processo de Execução Penal nº 40212144, cuja tramitação se deu perante a Vara das Execuções Penais da Comarca de Pelotas, Rio Grande do Sul. A remição pelo trabalho externo foi reconhecida neste caso, não sem antes haver recurso de agravo por parte do Ministério Público.