Repercussão geral e insubordinação à lei pelos tribunais

Por Sérgio Niemeyer

Tem havido um equívoco generalizado sobre como aplicar a disciplina da repercussão geral. O ponto de partida deve ser a lei. A questão sobre a repercussão geral está disciplinada nos artigos 543-A e 543-B do Código de Processo Civil.

De acordo com o caput do artigo 543-A, “o Supremo Tribunal Federal, em decisão irrecorrível, não conhecerá do recurso extraordinário, quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral, nos termos deste artigo”. A parte final do artigo, notadamente o adjunto adverbial deslocado remete o intérprete para o exame das demais disposições do próprio artigo 543-A a fim de esclarecer quando um recurso versa sobre matéria com repercussão geral.

A primeira regra, contida no 1º artigo do artigo 543-A, define os limites do que deve ser considerado questão de repercussão geral. Há repercussão geral quando o recurso aborda “a existência, ou não, de questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”. Ou seja, a repercussão geral é aquela matéria de conteúdo econômico, político, social ou jurídico que não apenas constitui o fundamento do direito subjetivo da parte, mas o ultrapassa porque a decisão sobre ela repercute no direito subjetivo de todo indivíduo da coletividade.

Assim, a violação dos direitos e das garantias fundamentais do indivíduo, porque constituem o limite da ação do Estado contra o(s) indivíduo(s), aí incluídas as questões sobre violação das cláusulas do devido processo legal e da ampla defesa, do primado do juiz natural etc., a ofensa aos direitos sociais, direitos políticos que conformam o direito de cidadania, o ultraje na consecução das metas sociais fincadas no artigo 3º da CF, entre outras, consubstanciam matérias idôneas com potencial repercussão geral a autorizar a apreciação do recurso em que sejam discutidas.

Há também repercussão geral “sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do [Supremo] Tribunal [Federal]” (parágrafo 3º do artigo 543-A). Requisito formal necessário para a subida do recurso, que atua ao lado dos demais pressupostos ou requisitos de admissibilidade recursal, é a dedução de preliminar por meio da qual a parte recorrente procure demonstrar a existência da repercussão geral (§ 2º do artigo 543-A).

Ao tribunal de origem cabe somente constatar a existência desta preliminar, exatamente porque requisito de admissibilidade. No entanto, nenhum juízo de valor sobre seu conteúdo poderá ser realizado, sob pena de incorrer em abuso de jurisdição e usurpação da competência do STF. Essa é a única conclusão possível, dado à expressa provisão contida no § 2º do artigo 543-A, o qual, explicitamente, determina que o conteúdo da preliminar do recurso, em que a parte cuida de demonstrar a existência da repercussão geral, deverá ser apreciada exclusivamente pelo STF.

Ao estatuir que a apreciação da preliminar de existência de repercussão geral é exclusiva do STF, a lei, sob o império da qual todos estão submetidos, inclusive e principalmente os magistrados, que apenas a devem aplicar, exclui a apreciação da repercussão geral da jurisdição dos tribunais onde se origina o recurso. Resta a esses tribunais, portanto, um resquício de jurisdição, ou uma jurisdição precária consistente apenas da verificação da dedução ou não da preliminar de repercussão geral. Havendo, satisfeito estará esse requisito para franquear o acesso ao STF, ao qual caberá, com exclusividade, o exame do conteúdo daquela preliminar.

Se o STF, ao apreciar a questão, negar a existência de repercussão geral, a “decisão valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, que serão indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do STF” (parágrafo 5º do artigo 543-A).

Esse indeferimento liminar, contudo, não pode ser pronunciado pelos tribunais de origem, mas apenas pelo próprio STF, consoante o seu Regimento Interno. É o que se dessume do artigo 327, caput, do RISTF, segundo o qual a Presidência do STF deverá recusar os recursos cuja matéria não ofereça repercussão geral em razão de precedente do STF. Aos tribunais de origem, quando muito, cabe selecionar um ou alguns recursos que versem idêntica matéria para encaminhá-los ao STF, sobrestando os demais até o pronunciamento definitivo do STF sobre a matéria.

Sobrevindo tal pronunciamento, “os recursos sobrestados serão apreciados pelos Tribunais, Turmas de Uniformização ou Turmas Recursais, que poderão declará-los prejudicados ou retratar-se” (parágrafo 3º do artigo 543-B).

Isso significa que, proferido o julgamento de mérito sobre a questão de repercussão geral proferido no(s) recurso(s) que foram encaminhados ao STF, aqueloutros recursos que versavam matéria idêntica e haviam sido sobrestados poderão ter um de dois destinos: ou a) serão declarados prejudicados, na hipótese de a decisão recorrida estar alinhada com a decisão do STF sobre a questão da repercussão geral; ou b) deverão ser devolvidos ao órgão fracionário do tribunal de origem para que se retrate ou não, na hipótese de a decisão recorrida ser dissonante daquela proferida pelo STF sobre a questão de repercussão geral.

Aqui cabe observar que o juízo de prejudicialidade não equivale a indeferimento liminar do recurso, mas à declaração de que está prejudicado porque a decisão recorrida afigura-se em harmonia com o quanto decidiu o STF sobre a matéria de repercussão geral em que o recurso se baseava. E mais, tal juízo de prejudicialidade vale apenas para os recursos que haviam sido sobrestados, e não para aqueles que aflorem depois do julgamento da repercussão geral. E mais, só quando a matéria for idêntica, não para aquelas que são análogas ou semelhantes, porque tanto a analogia quanto a semelhança não guardam relação de sinonímia com a identidade. O que é idêntico, o é em todos os aspectos. Já o que é análogo ou semelhante, o é por identidade de um ou mais elementos, mas não todos. É a lei que exige o requisito da identidade de matéria, não da semelhança ou analogia delas.

Por outro lado, o juízo de admissibilidade de recurso extraordinário pelos tribunais de origem é precário e não faz coisa julgada. Tanto isso é verdade que a última palavra sobre a admissibilidade de recurso extraordinário caberá ao próprio STF, que poderá inadmitir recurso admitido pelo tribunal de origem, bem como admitir recurso não admitido pelo tribunal de origem. No primeiro caso, o recurso subirá sem mais. No segundo, por meio de agravo nos próprios autos.

É nessa segunda hipótese que se tem assistido um enorme desvio e abuso de jurisdição, pois os tribunais de origem têm indeferido liminarmente o recurso de agravo nos próprios autos, usurpando, com isso, a competência do STF, pois tal apreciação incumbe apenas e exclusivamente ao próprio STF. Em outras palavras, a jurisdição dos tribunais de origem a respeito do agravo nos próprios autos é ainda mais reduzida, precaríssima, limitada apenas à formação do recurso. Nenhum, frise-se, nenhum juízo de valor pode o tribunal de origem fazer sobre a admissibilidade ou mérito do recurso de agravo. Falta-lhe autorização legal para tanto. Portanto, faltam-lhe competência e jurisdição sobre a matéria nele vertida.

Isso é o que se infere do processamento do agravo nos próprios autos que está disciplinado no artigo 544 do CPC, com a redação dada pela Lei 12.322/2010, lei que a todos vincula, inclusive aos tribunais de origem, seus principais destinatários. De acordo com o artigo 544, não há nenhuma autorização para o tribunal de origem proferir juízo de admissibilidade, conhecimento ou mérito do agravo nos próprios autos. Sua competência limita-se ao processamento de formação do recurso, atribuindo-lhe a lei as seguintes tarefas: intimar o agravado para, no prazo legal, oferecer resposta; verificar o recolhimento do preparo e do porte de remessa e retorno; regularizar os autos; e remetê-los ao tribunal de instância extraordinária.

Qualquer juízo de admissibilidade que importe conhecimento, ou não, ou de mérito do agravo (como o indeferimento liminar fundando na inexistência de repercussão geral, ou em que o recurso extraordinário fora inadmitido porque a decisão recorrida aplica a decisão do STF sobre a repercussão geral) pelo tribunal de origem representará insubordinação à lei, desvio do artigo 544, e, no caso do agravo nos próprios autos em recurso extraordinário, usurpação da competência do STF a desafiar reclamação.

Só o STF pode apreciar o agravo nos próprios autos. Até porque, em razão do parágrafo 5º do artigo 543-A, o STF está autorizado a revisitar a matéria e rever a tese esposada sobre a questão de repercussão geral que constituiu o fundamento da decisão de inadmissibilidade do extraordinário pronunciada pelo tribunal de origem. Dessa forma, o recurso de agravo, nos próprios autos, serve também a tal propósito, i.e., ao fim de provocar o STF para que possa decidir se aceita ou não rediscutir a questão da repercussão geral caso o agravo inculque haver no recurso extraordinário a que visa liberar fundamentos suficientes que, primo ictu oculi, aconselhem a superação da orientação anteriormente firmada.
Sérgio Niemeyer é advogado, mestre e doutorando em Direito pela USP

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