SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. Precedentes. 3. Introdução do requisito da repercussão geral no direito pátrio e disciplina do direito intertemporal. 4. Conceituação legal de decisão que enfrente questão de repercussão geral. 5. Teria a Emenda Constitucional conferido um poder discricionário ao STF? 6. O casuísmo entrevisto na disciplina legal da repercussão geral. 7. Procedimento no STF e intervenção do “amicus curiae”. 8. Apreciação da argüição de repercussão geral pela Turma Julgadora. 9. Reflexos do reconhecimento da falta de repercussão geral. 10. Poderes de controle da repercussão geral pelo Presidente e pelo Relator, no STF. 11. O procedimento regimental de apreciação da argüição de repercussão geral pelo Plenário do STF. 12. Recursos internos no STF. 13. O verdadeiro meio idealizado para limitar o volume de recursos em função da falta de repercussão geral. 14. O juízo de admissibilidade na instância local. 15. Recursos extraordinários posteriores a decisões do STF sobre a não-repercussão geral de determinada questão. 16. Controle pelo relator no STF. 17. Regulamentação da Súmula vinculante do STF. 18. Conclusões.
1. Introdução
Dois dispositivos constitucionais relativos a função do STF, cuja eficácia se achava pendente, foram recentemente regulamentados pelo legislador ordinário. Trata-se do § 3º do art. 102 da Constituição, que condiciona a admissibilidade do recurso extraordinário ao requisito da repercussão geral, e o art. 103-A, também da Constituição, que instituiu o poder do STF de editar súmula vinculante.
Coube à L. 11.418, de 19.12.2006, introduzir no CPC os arts. 543-A e 543-B, para disciplinar, no mecanismo do recurso extraordinário, a aplicação do requisito constitucional da repercussão geral. Sua publicação ocorreu no DOU de 20.12.2006, com a previsão do vacatio legis de sessenta dias. A entrada em vigor, portanto, deu-se no dia 18 de fevereiro de 2007.
A L. 11.471, também de 19.12.2006, cuidou da disciplina da edição, revisão e cancelamento de enunciado de súmula vinculante pelo STF. Foi publicada, igualmente, no DOU de 20.12.2006, mas sua vigência foi estipulada para três meses após a publicação, de modo que está vigorando a partir de 21 de março de 2007.
Ambas as leis tem o confessado propósito de limitar o número de processos que sobem ao STF, que atualmente corresponde a uma autêntica avalanche de proporções incompatíveis com a sua natureza de corte constitucional.
A par disso, busca-se fortalecer a autoridade daquela Corte como guardiã da Constituição, prestigiando sua jurisprudência, como reveladora da última palavra em termos de definição das questões constitucionais, o que, em última análise, pode evitar a continuidade e repetição infinita de causas iguais em todos os níveis do Poder Judiciário.
Prevalência da vontade constitucional legitimamente definida e redução da duração dos processos nas instâncias inferiores são, portanto, a meta que as inovações da legislação processual perseguem, no afã de tornar mais efetivas as garantias fundamentais de acesso à justiça e de duração mínima do processo em juízo (CF, art. 5º, XXXV e LXXVIII).
2. Precedentes
Tanto no direito constitucional brasileiro como no direito comparado há registros históricos de uma orientação segura que prestigia o critério seletivo das Cortes Supremas no exame das questões próprias do recurso extraordinário.
Esse tipo de recurso nunca teve a função de proporcionar ao litigante inconformado com o resultado do processo uma terceira instância revisora da injustiça acaso cometida nas instâncias ordinárias. A missão que lhe é atribuída é de uma carga política maior, é a de propiciar à Corte Suprema meio de exercer seu encargo de guardião da Constituição, fazendo com que seus preceitos sejam corretamente interpretados e fielmente aplicados. É a autoridade e supremacia da Constituição que toca ao STF realizar por via dos julgamentos dos recursos extraordinários.
São as grandes questões da ordem constitucional que a doutrina ocidental aponta como o objeto capaz de explicar a instância recursal extraordinária. Sem um filtro prévio que detecte a presença de uma questão nacional em torno da discussão travada no processo, é inevitável a transformação do STF numa nova instância recursal. Foi a falta de filtragem da relevância do recurso extraordinário que levou o STF a acumular anualmente milhares e milhares de processos, desnaturando por completo seu verdadeiro papel institucional e impedindo que as questões de verdadeira dimensão pública pudessem merecer a apreciação detida e ponderada exigível de uma autêntica corte constitucional.
O problema é antigo e universal. A Constituição anterior o enfrentou por meio do mecanismo então denominado ‘argüição de relevância’. Por se tratar de remédio concebido durante a ditadura militar, a reconstitucionalização democrática do país, levada a efeito pela Carta de 1988, a repeliu por completo, ao invés de aprimorá-la ou substituí-la por outro meio de controle que desempenhasse a mesma função mas de maneira mais adequada ao Estado Democrático de Direito.
Daí a EC 45 ter se curvado à necessidade de implantar no § 3º do art. 102 de nossa Constituição, a exigência de que a admissibilidade do recurso extraordinário perante o STF ficasse subordinada à demonstração, pelo recorrente, da repercussão geral da questão constitucional debatida na decisão impugnada.
Foi nesses moldes que o direito norte-americano, fonte histórica do sistema de controle da constitucionalidade pelo Poder Judiciário, sempre concebeu o apelo extraordinário à Suprema Corte, sob o rótulo do certiorari 2. E é da mesma forma que esse tipo de recurso tem sido tratado no direito constitucional comparado contemporâneo nos diversos países democráticos.
LUIZ MANOEL GOMES JÚNIOR, em comentário à EC 45, registra dois exemplos de regulamentação estrangeira que bem evidenciam a importância da filtragem dos recursos extraordinários. O primeiro é extraído do novo Código de Processo Civil do Japão, segundo o qual o direito de recorrer à Suprema Corte fica subordinado a um controle baseado no juízo daquela corte que reconheça, previamente, a existência de contrariedade a alguma decisão sua ou o envolvimento de questão de direito relevante 3.
Outro exemplo significativo é o do Código de Processo Civil nacional argentino, cujo art. 280 foi alterado para acolher tal requisito para a admissão do recurso extraordinário sob a denominação de “gravedad institucional” 4. Tal como prevê, entre nós, a EC 45, também no direito argentino, o recurso extraordinário para alcançar o exame de mérito da Suprema Corte tem de revelar uma repercussão geral (ou institucional) a ser extraída do seu objeto revelado pelas razões recursais 5.
3. Introdução do requisito da repercussão geral no direito pátrio e disciplina do direito intertemporal
O regime da Constituição anterior ensejou a criação da argüição de relevância como mecanismo de filtragem do recurso extraordinário, expediente que a Constituição de 1988 repeliu. O momento histórico determinou a repulsa, visto que havia um clamor, ao tempo de ditadura, contra a total discricionariedade com que o STF decidia em sessão secreta sobre a relevância, ou não, do recurso, sem necessidade de qualquer motivação ou fundamento.
A matriz constitucional do recurso extraordinário veio, porém, a sofrer significativas alterações por força da EC 45, de 08.12.2004, dentre elas a que figurou no novo §3º acrescido ao art. 102 da Constituição. Por força desse dispositivo, doravante caberá à parte fazer, em seu recurso, a demonstração da “repercussão geral das questões constitucionais discutidas no caso”. À luz desse dado, o STF poderá, por voto de dois terços de seus membros, “recusar” o recurso. Ou seja: está o Tribunal autorizado a não conhecer do recurso extraordinário se, preliminarmente, entender que não restou demonstrada a “repercussão geral” das questões sobre que versa o apelo extremo.
Foi, sem dúvida, a necessidade de controlar e reduzir o sempre crescente e intolerável volume de recursos da espécie, que passou a assoberbar o Supremo Tribunal a ponto de comprometer o bom desempenho de sua missão de Corte Constitucional, que inspirou e justificou a reforma operada pela EC 45.
A regulamentação do dispositivo constitucional inovador se fez por meio da L. 11.418/06, que acrescentou dois novos artigos ao CPC, no âmbito da disciplina do recurso extraordinário: o art. 543-A e o art. 543-B. No primeiro foram traçadas regras de definição do que se deva entender por repercussão geral das questões constitucionais debatidas no processo; e no segundo, instituíram-se regras simplificadoras da tramitação de outros extraordinários pendentes com veiculação de igual controvérsia. O Regimento Interno do STF foi adaptado para cumprir as inovações contidas nos arts. 543-A e 543-B do CPC por meio da ER 21, aprovada em 23.03.2007 e publicada no Diário da Justiça de 03.05.2007.
Disciplinando o direito intertemporal, o art. 4º da L. 11.418/2006, dispôs que sua aplicação se dará aos recursos interpostos a partir do primeiro dia de sua vigência, ou seja, a partir do dia 18/02/2007. Continuam fora da sistemática da repercussão geral todos os recursos extraordinários pendentes antes daquela data, que estejam tramitando nas instâncias locais ou no STF.
É de se ressaltar que o controle de admissibilidade criado pelo novo § 3º do art. 102 da Constituição é específico do recurso extraordinário, pelo que não poderá se estendido ao recurso ordinário perante o STF, e tampouco ao especial e outros recursos manejáveis no âmbito do STJ.
4. Conceituação legal de decisão que enfrente questão de repercussão geral
Para justificar o recurso extraordinário não basta ter havido discussão constitucional no julgado recorrido. O STF não conhecerá do recurso “quando a questão constitucional nele versada não oferecer repercussão geral” (art. 543-A, caput).
Por repercussão geral, a lei entende aquela que se origina de questões “que ultrapassem os interesses subjetivos da causa”, por envolver controvérsias que vão além do direito individual ou pessoal das partes. É preciso que, objetivamente, as questões repercutam fora do processo e se mostrem “relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico” (art. 543-A, § 1º).
Para que o extraordinário, portanto, tenha acesso ao STF, incumbe ao recorrente demonstrar, em preliminar do recurso, a existência da repercussão geral (art. 543-A, § 2º). A apreciação da matéria será exclusiva do STF, isto é, não passará pelo crivo do tribunal de origem; e seu pronunciamento se dará em decisão irrecorrível (art. 543-A, caput).
Há na lei a previsão de alguns casos em que a repercussão geral é categoricamente assentada. São eles: decisão recorrida que contraria (a) súmula ou (b) jurisprudência dominante do STF (art. 543-A, § 3º). A súmula, in casu, não precisa de ser a vinculante, mas apenas a que retrate jurisprudência assentada, pois, mesmo sem súmula, a repercussão geral estará configurada em qualquer julgamento que afronte “jurisprudência dominante” do STF.
Por jurisprudência dominante deve-se ter a que resulta de posição pacífica, seja porque não há acórdãos divergentes, seja porque as eventuais divergências já tenham se pacificado no seio do STF.
5. Teria a Emenda Constitucional conferido um poder discricionário ao STF?
É certo que ao exigir a repercussão geral da questão enfrentada na fundamentação do extraordinário, nos termos do § 3º do art. 102 da Constituição, o legislador faz uso de conceitos elásticos, que permitem ao intérprete e aplicador da norma uma atividade construtiva ou concretizadora, que vai além da simples e automática subsunção do caso concreto ao preceito literal e exato da regra.
Esta operação, contudo, está longe de envolver um poder realmente discricionário. Poder discricionário, em direito público, só se verifica quando o agente tem, de fato, a plena opção entre praticar ou não determinado ato ou serviço, segundo um juízo próprio de conveniência e oportunidade. É, pois, legítima a escolha entre duas condutas, segundo juízo exclusivo do próprio agente do poder, de sorte que qualquer que seja ela redundará numa deliberação válida.
Isto nunca acontece nas decisões judiciais. Mesmo que a regra legislada utilize termos vagos ou conceitos indeterminados, há parâmetros e valores que se impõem ao julgador de maneira cogente. O que se exige do aplicador é uma obra de interpretação que procure traduzir o sentido da vontade da lei diante das particularidades do caso concreto. Jamais estará ele livre para optar por uma deliberação que seja indiferente aos parâmetros e valores proclamados pela norma.
Nunca terá o poder de escolher entre duas opções igualmente válidas e legítimas. Mesmo sendo pouco precisa a regra legal, ela somente poderá ter um único sentido para a subsunção do fato discutido no processo. Cumpre ao juiz descobri-lo e proclamá-lo, dentro dos parâmetros e valores apontados pela lei 6.
É bom lembrar sempre que as normas legais nunca são normas exatas, por sua própria natureza. O seu aplicador jamais poderá resumir sua tarefa à exegese do enunciado lingüístico nela divisado.
Só uma ciência exata pode conduzir a revelação de leis unívocas e invariáveis em sua compreensão. Leis de comportamento humano, destinadas a programação de atos futuros e hipotéticos, sob a carga de valores e variações fáticas nunca delimitáveis com precisão, não podem obviamente seguir critérios de lógica pura ou matemática. A lógica do direito é a do razoável, ou seja, a do raciocínio dialético ou tópico, inspirado nos valores e na técnica da argumentação, sempre à procura de um resultado justo, mais inspirado na flexibilidade dos princípios do que na rigidez das regras frias e exatas.
Nesse sentido, pode-se afirmar que todas as leis de direito são de certa forma dotadas de certa imprecisão, cujo grau pode variar, mas cuja presença nunca poderá ser evitada. O que varia é, pois, o volume da indeterminação, nunca a sua presença. Diante dessa natural e inevitável fluidez das normas jurídicas, a tarefa do intérprete e aplicador não será livre e discricionária, de forma alguma, pois estará sempre vinculada aos valores que inspiram e justificam a regra traçada pelo legislador.
Por mais vaga que possa ser a exigência do requisito da repercussão geral no juízo de admissibilidade do recurso extraordinário, nunca estará o STF livre para rejeitar arbitrariamente um recurso sobre a lacônica e imotivada alegação de ausência de tal requisito. Sempre terá de proceder ao esforço dialético de demonstrar, analiticamente, como se chegou ao juízo determinante da falta de repercussão geral, submetendo o caso concreto às exigências da razoabilidade.
A lógica do razoável é, sem dúvida, o maior instrumento hermenêutico com que pode contar o intérprete e aplicador das normas jurídicas. Afastando-se da lógica formal e clássica, o jurista não cai no campo do arbítrio nem do subjetivismo incontrolado 7, mas usa de instrumentos que conduzem a caminhos iluminados pela eqüidade que chegam a resultados coerentes com os valores e anseios presentes tanto na elaboração da lei como no alcance dos fins ou objetivos por ela visados 8. Explica RECASENS SICHES muito bem a pertinência e supremacia da lógica do razoável sobre a lógica clássica no terreno no direito. “Lo racional puro de la lógica de la inferencia es meramente explicativo, explicativo de conexiones entre ideas, explicativo de nexos entre causas y efectos, etc. En cambio, el logos de lo razonable, concerniente a los problemas humanos – y por tanto, a los problemas políticos y jurídicos – intenta ‘comprender o entender’ sentidos y nexos entre significaciones, así como también realiza operaciones de valoración, y establece finalidades o propósitos” 9.
Acrescenta, ainda, “que es de todo punto imposible construir el Derecho como un sistema lógico puro: ni la ciencia del Derecho positivo, ni tampoco la doctrina de un supuesto Derecho natural. Siendo así las cosas, resulta que el juez que ha de decidir sobre todos los problemas que se le presenten, necesariamente tiene que crear o descubrir las normas pertinentes para la solución de los nuevos casos que surjan, y para llenar las lagunas o vacíos que siempre hay inevitablemente en las reglas legisladas. Los jueces y los funcionários administrativos tienen que estar constantemente reconfigurando y desenvolviendo el Derecho. Esto hace totalmente imposible la construcción de un sistema puramente teórico en términos de una construcción estrictamente racional de tipo matemático” 10.
Repita-se, ainda, uma vez, que o razoável também é produto da razão, tanto como o lógico racional, só que opera com elementos humanos distintos dos físico-matemáticos. Desse manuseio, todavia, o resultado há de ser no plano humano satisfatório e não voluntarioso ou arbitrário. Satisfatória, portanto, é a solução que resulta de um trabalho estimativo formulado à vista de valorações feitas sobre a norma, os fatos e os costumes, de modo a harmonizar, no concreto, a ordem jurídica positiva com o justo. Daí porque, na visão incensurável de RECASENS SICHES, “el logos o la lógica de lo razonable no constituye otro método de interpretación del Derecho, a añadir a los varios métodos de que erróneamente se há hablado durante muchos siglos. Lo razonable debe ser el único método de interpretación jurídica, porque la misma índole de éste supera necesariamente toda la embarullada multiplicidad tradicional de malos procedimientos de hermenéutica” 11.
À luz dessa visão filosófica do direito, cabe concluir para a boa inteligência da lei inovadora do regime do recurso extraordinário, que muito importante é o papel a ser desempenhado pela jurisprudência do STF na construção da teoria da repercussão geral no âmbito do recurso extraordinário. Com o passar do tempo, o acumular de precedentes e a coerência detectada entre os sucessivos pronunciamentos, acerca dos casos avaliados levará à melhor compreensão do importante mecanismo constitucional de acesso à Suprema Corte, tornando mais previsível o cabimento, ou não, dos recursos da espécie nas circunstâncias concretas dos litígios.
6. O casuísmo entrevisto na disciplina legal da repercussão geral
Diz o art. 102, § 3º, da Constituição, que o recurso extraordinário, para ser conhecido pelo STF, deverá versar sobre questão constitucional de repercussão geral, ou seja, questão que provoque reflexos além do âmbito da causa julgada, no plano econômico, político, social ou jurídico.
Todo processo tem como objeto um litígio que envolve as partes e que será resolvido por um provimento que haverá de dar razão àquela parte que realmente a tem, segundo a vontade da lei, concretizada pelo juiz em face do conflito de interesses, sempre restrito aos sujeitos do processo.
Enquanto a questão jurídica debatida e solucionada estiver adstrita às partes do processo e aos seus interesses apenas, não haverá campo propício ao recurso extraordinário. Para que este se torne viável é indispensável que a questão individualmente dirimida esteja também sendo objeto de preocupação geral, fora do processo, envolvendo toda a comunidade ou pelo menos grandes e numerosos segmentos da sociedade.
É nesse sentido que o § 1º do art. 543-A do CPC exige para reconhecimento da repercussão geral a existência, na causa de “questões relevantes do ponto de vista econômico, político, social ou jurídico, que ultrapassem os interesses subjetivos da causa” 12.
Em outras palavras, o novo requisito da repercussão geral é o mesmo da antiga relevância, cuja configuração se dá quando o reflexo da questão decidida não se restrinja ao âmbito do processo em que está sendo debatida. O interesse em jogo, por isso, será “maior fora da causa do que, propriamente, dentro dela”, ou seja, o conceito de relevância da questão constitucional “está, no dizer de DORESTE BAPTISTA, relacionado com a importância para o público, em contraste com sua importância para as partes interessadas” 13.
Resta saber como interpretar as hipóteses de extravasamento do interesse das partes indicadas pelo § 3º do art. 102 da CF e pelo § 1º do art. 543-A do CPC, quando se fala em “ponto de vista econômico, político, social ou jurídico”. É o que tentaremos fazer a seguir:
I – No plano econômico, em primeiro lugar há de se levar em conta as questões em torno daquelas atividades de larga repercussão coletiva que se encontram regulamentadas a partir da própria Constituição, como os serviços públicos essenciais (transportes coletivos, telefonia, energia, saneamento básico etc.) 14. São igualmente relevantes, para a coletividade, questões que envolvam pretensões reivindicadas por um número considerável de pessoas, a exemplo do que se passa com índices de correção monetária, remuneração de certos serviços ou de determinada categoria, sistema nacional de habitação, sistema tributário etc. 15. Em qualquer hipótese, porém, deve-se ter em conta que não basta a repercussão sobre o interesse de toda a coletividade ou de um grande número de pessoas; é sempre indispensável que a questão atinja o nível constitucional, para que o recurso extraordinário chegue a ser apreciado pelo STF. A repercussão geral não é, em si, a chave para obter-se o julgamento do STF sobre o recurso extraordinário; é apenas um requisito a mais acrescido às condições de admissibilidade do recurso em questão.
II – A repercussão no plano político é facilmente detectável quando a questão em jogo no recurso extraordinário possa ter influência em relações com estados estrangeiros ou organismos internacionais 16, ou no plano interno, quando envolva atritos de poder ou de competência entre órgãos da soberania ou ponha em risco política econômica pública ou diretrizes governamentais 17. BARBOSA MOREIRA e CALMON DE PASSOS lembram casos já vividos pela jurisprudência nacional em que políticas públicas foram postas em cheque por versarem causas numerosíssimas 18 como as relacionadas com a correção monetária das contas de FGTS geridas pelo Governo.
III – Reflexos sociais ocorrem sempre que a questão debatida seja daquelas que envolvam direitos coletivos ou difusos, como aqueles protegidos pela ordem constitucional em torno da saúde, educação, moradia, seguridade social, etc. 19. É o que, com freqüência, também se trava em temas debatidos em ação popular, ações civis públicas, mandado de segurança coletivo etc. 20.
IV – A relevância jurídica pode ser divisada quando esteja em jogo “o conceito ou a noção de um instituto básico do nosso direito”, havendo necessidade de evitar que uma decisão forme precedente perigoso ou inconveniente, como, v.g., em relação ao direito adquirido 21 e outros valores constitucionais muito importantes para a prevalência da interpretação legítima da Constituição que ao STF compete realizar.
Exemplos de relevância jurídica para justificar o conhecimento do recurso extraordinário encontram-se no § 3º do art. 543-A, onde se prevê que “haverá repercussão geral sempre que o recurso impugnar decisão contrária a súmula ou jurisprudência dominante do tribunal” (isto é, do STF).
Explica-se o preceito como conseqüência natural do papel atribuído institucionalmente do STF, que é o de “uniformizar a interpretação da Constituição”. Por isso, “decisões contrárias ao seu entendimento não podem ser mantidas” 22. O recurso extraordinário não pode ser vetado na espécie, porque é o instrumento necessário e adequado para a pacificação interpretativa em matéria constitucional.
Uma advertência, já feita, convém seja sempre levada na devida consideração: qualquer que seja o plano em que a relevância se manifeste somente refletirá sobre o cabimento do recurso extraordinário se a questão debatida alcançar o nível de questão constitucional, porque é só para enfrentar questões dessa natureza que a Constituição instituiu o recurso em tela.
7. Procedimento no STF e intervenção do amicus curiae
Ao Plenário compete declarar a ausência de repercussão geral, por voto de dois terços de seus membros (CF, art. 102, § 3º). Se, porém, a Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo quatro votos, ficará dispensada a remessa do recurso ao Plenário (art. 543-A, § 4º).
Negada a repercussão geral, a decisão do Pleno valerá para todos os recursos sobre matéria idêntica, ainda pendentes de apreciação. Serão todos eles indeferidos liminarmente, salvo revisão da tese, tudo nos termos do Regimento Interno do STF (art. 543-A, § 5º).
Pode o Relator, durante a análise da repercussão geral, permitir intervenção de terceiros interessados, por meio de procurador habilitado, de acordo com o que dispuser o Regimento Interno do STF (art. 543-A, § 6º). Essas manifestações se justificam em face da repercussão que o julgamento pode ter sobre outros recursos, além daquele sub apretiatione no momento (art. 543-B).
A intervenção do amicus curiae já era admitida no STF nas ações de controle concentrado de constitucionalidade (L. 9.868/99, art. 7º, § 2º). O interesse que legitima essa intervenção não é o da parte recorrente. Esta age na defesa de interesse próprio. O amicus curiae desempenha um papel institucional, atuando como colaborador do tribunal na apuração de valores maiores que possam estar em jogo na interpretação da regra constitucional envolvida no recurso 23.
8. Apreciação da argüição de repercussão geral pela Turma Julgadora
A interpretação de SÉRGIO BERMUDES, de que o art. 102, § 3º da CF deveria ser feita no sentido de atribuir o julgamento da preliminar e o quórum de decisão à Turma julgadora e não ao Pleno do STF 24, não pode prevalecer. Não se trata de apreciar a norma apenas pela sua literalidade, pois também a leitura sistemática desaconselha a exegese preconizada pelo processualista.
Com efeito, o dispositivo constitucional fala claramente que a argüição de repercussão geral será examinada pelo Tribunal (STF), somente podendo ser recusado o recurso extraordinário, in casu, “pela manifestação de dois terços de seus membros” (isto é, dos membros do
Tribunal, e não da Turma julgadora a que ordinariamente compete julgar os recursos da espécie). O preceito constitucional foi regulamentado pela L. 11.418, e no art. 543-A, § 4º, ficou claro que a preliminar somente não será remetida à apreciação do Plenário, se “a
Turma decidir pela existência da repercussão geral por, no mínimo, 4 (quatro) votos”.
Logo, o que a lei reconhece à Turma, em certos casos é o poder de reconhecer a repercussão geral, nunca o de negar conhecimento ao extraordinário, por negativa daquela repercussão.
Pouco importa que a Turma tenha competência para julgar o mérito do extraordinário e não tenha para apreciar a preliminar em questão. É que o incidente, tal como está sistematizado na Constituição e em sua regulamentação no CPC, não se restringe ao tratamento dos interesses das partes do processo em que foi instaurado. O objetivo da medida incidental é provocar um precedente com eficácia ampla que possa repercutir sobre todos os demais recursos que se apóiem na mesma tese de direito. Depois da negada repercussão geral num determinado processo, todos os demais recursos que veiculem a mesma questão constitucional “considerar-se-ão automaticamente não admitidos” (CPC, art. 543-B, § 2º).
É dessa forma, isto é, pelo sumário trancamento de todos os recursos de igual conteúdo, que se cumprirá o objetivo visado pela instituição do mecanismo processual da repercussão geral, como pressuposto do recurso extraordinário. Por isso, não é preciso violar a letra e o sistema da lei para cumprir a meta da redução do volume de recursos no STF. Basta atribuir a força de barreira ao precedente daquela
Corte, para que fiquem impedidos de ascender a ela todos os recursos subseqüentes que lhe sejam contrários. A falta de repercussão geral não é do recurso individualmente proposto, é da questão constitucional nele tratada. Se, de tal sorte, a questão não teve repercussão que ultrapassasse os limites subjetivos daquela causa, também não terá semelhante repercussão em qualquer outro processo em que volte a ser discutida.
É dessa forma que se cumprirá a força limitadora de recursos extraordinários visada pelo art. 102, § 3º da CF, e pelos arts. 543-A e 543-B do CPC.
9. Reflexos do reconhecimento da falta de repercussão geral
Ao Regimento Interno do STF cabe disciplinar o modo de tratar a multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia, tendo em vista permitir que o julgamento de um caso possa refletir sobre os demais, simplificando as respectivas tramitações (art. 543-B, caput).
Havendo diversos recursos extraordinários que tratem da mesma controvérsia, deverá o tribunal local selecionar um ou mais recursos que a representem para encaminhá-los ao STF. Os demais ficarão sobrestados na origem até o pronunciamento definitivo do Supremo (art. 543-B, § 1º).
Duas situações distintas podem ocorrer no pronunciamento do STF:
a) pode ser negada a repercussão geral; ou
b) pode ser reconhecida. Na primeira, o extraordinário não será apreciado; e, na segunda, será julgado pelo mérito.
Ocorrendo a negativa de repercussão geral, todos os recursos sobrestados na origem “considerar-se-ão automaticamente não admitidos” (art. 543-B, § 2º). Não chegarão, pois, a subir ao STF.
Se o STF julgou o mérito do extraordinário, caberá às instâncias locais 25 apreciar os recursos sobrestados, tomando uma das seguintes decisões (art. 543-B, § 3º):
a) se o julgado recorrido estiver conforme ao que decidiu o STF, o recurso extraordinário será declarado prejudicado;
b) se estiver em contradição, aberta estará a oportunidade para o juízo de retratação, no qual o órgão julgador local poderá retratar-se, alterando seu julgado para pô-lo em conformidade com o que se assentou no precedente do STF.
Se o acórdão adverso à tese do STF for mantido na instância local, e o extraordinário for admitido, o STF poderá, de acordo com o seu
Regimento Interno, “cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão contrário à orientação firmada” (art. 543-B, § 4º). Conferiu-se ao
Regimento Interno, como se vê, o encargo de instituir procedimentos que evitem a tramitação normal perante o Colegiado e que facilitem o desfecho do recurso de uma forma sumária, logo após sua entrada na instância extraordinária.
10. Poderes de controle da repercussão geral pelo Presidente e pelo Relator, no STF
Dentro da previsão do art. 543-B do CPC, o Regimento Interno do STF instituiu poderes especiais para o Presidente e o Relator, para barrar, sumariamente, o recurso extraordinário que chegue àquela Corte em situação que afronte o requisito da repercussão geral, quando a tese já tenha sido enfrentada pelo Plenário:
I – Ao Presidente do STF cabe atuar como Relator, enquanto o recurso não for distribuído, e nessa qualidade poderá, em decisão singular, inadmití-lo, liminarmente, em duas circunstâncias (RISTF, arts. 13, V, c, e 327, caput):
a) quando das razões recursais não constar a “preliminar formal e fundamentada de repercussão geral”, como exige o art. 543-A, §2º do CPC;
b) quando a matéria argüida na preliminar “seja destituída de repercussão geral”, conforme jurisprudência do STF.
II – Efetuada a distribuição, sem que o Presidente tenha liminarmente inadmitido o recurso, caberá ao Relator sorteado, em decisão singular:
a) negar seguimento ao recurso (= inadmití-lo) quando manifestamente inadmissível, improcedente ou contrário a jurisprudência dominante ou a súmula do STF, nos termos do art. 57 do CCP, e art. 21, § 1º do RISTF;
b) inadmití-lo por falta da preliminar de repercussão geral formal e fundamentada nas razões recursais (RISTF, art. 327, § 1º);
c) inadmití-lo, ainda, por falta de repercussão geral, caso a questão suscitada em preliminar já tenha sido rejeitada em precedente do STF (RISTF, art. 327, § 1º).
d) julgar o recurso para cassar ou reformar, liminarmente, o acórdão recorrido quando “contrário à orientação firmada nos termos do art. 543-B, do CPC” (RISTF, art. 21, § 1º, in fine. Trata-se da situação em que o STF já teria, em precedente, reconhecido a repercussão geral da questão, e já decidido sobre o seu mérito. Se mesmo assim o Tribunal a quo insistiu em manter o entendimento diverso, ao Relator, no STF, caberá liminarmente, cassar ou reformar o acórdão recorrido, para fazer prevalecer a tese já assentada no caso paradigma.
Nota-se, portanto, diante do disposto nos arts. 21, § 1º e 323 do RISTF, que, ao Relator não foi dado poder de negar a “repercussão geral” em caráter prejudicial. Primeiro, deverá verifica-se as condições gerais de admissibilidade do extraordinário previstas no CPC e na
Constituição foram atendidas, caso em que, notada a respectiva ausência, o recurso será sumariamente não conhecido. Só depois de satisfeitas tais condições de procedibilidade é que passará ao exame do requisito especial da “repercussão geral” (RISTF, art. 323).
Nessa altura, duas novas situações haverão de ser enfrentadas: a questão suscitada na preliminar do extraordinário já teve sua repercussão geral admitida ou inadmitida em precedente do Pleno:
a) se já existe jurisprudência positiva do STF acerca da repercussão da tese e de sua solução, o relator poderá conhecer do recurso e julgá-lo singularmente, para provê-lo, reformando o acórdão originário, para fazer prevalecer o entendimento assentado anteriormente pela
Corte. O caso teria sido de julgamento contra jurisprudência dominante do STF, nos termos dos arts. 544, §3º do CPC, e 21, § 1º do RISTF.
Se a jurisprudência existente for negativa, ou seja, no sentido da falta de repercussão geral, o Relator, em decisão liminar, não conhecerá do extraordinário, porque o caso será de “recurso manifestamente inadmissível”, tal como previsto nos arts. 557, do CPC, 21, § 1º e 327, § 1º, do RISTF.
b) Se não existe precedente do STF, acerca da repercussão geral da questão versada no extraordinário, o Relator pode entender que ela está, ou não, configurada. Reconhecendo-a presente, não estará obrigado a submeter o recurso ao Pleno. Poderá pô-lo em julgamento na
Turma, onde a preliminar será votada e, alcançado o reconhecimento da repercussão geral, ficará dispensada, definitivamente, a remessa ao Plenário. O incidente se encerrará no âmbito da Turma (CPC, art. 543-A, §4º).
Quando o Relator entender que argüição de repercussão geral deva ser recusada, ou quando seu voto no sentido da ocorrência de tal repercussão não for acompanhado por pelo menos três outros no julgamento da preliminar na Turma (CPC, art. 543-A, §4º), não haverá como deixar de submetê-la ao conhecimento do Plenário.
Ao Relator, portanto, incumbirá a remessa da questão ao julgamento do Colegiado maior do STF.
11. O procedimento regimental de apreciação da argüição de repercussão geral pelo Plenário do STF
O art. 543-B, § 5º do CPC, reservou para o RISTF a regulamentação das atribuições dos Ministros, das Turmas e de outros órgãos daquele
Tribunal na análise da repercussão geral.
A Emenda Regimental 21/2007, cuidou de disciplinar a matéria dentro do RISTF e, assim, estipulou como o Relator acolheria a manifestação do Plenário recomendada pelo art. 102, § 3º, da Constituição. Para tanto, instituiu-se um procedimento eletrônico de comunicação entre o Relator do extraordinário e os demais Ministros que compõem o Plenário, o qual prescinde de sessão de julgamento e lavratura de acórdão específico para o incidente da argüição de repercussão geral da questão constitucional debatida.
O procedimento tem lugar quando antes a inadmissibilidade do recurso não tiver sido pronunciada por outro motivo, e terá início como manifestação do Relator, nos autos, sobre a existência, ou não, de repercussão geral. Desse pronunciamento será extraída cópia que se encaminhará aos demais Ministros por meio eletrônico (RISTF, art. 323).
Prevê-se a remessa tanto da manifestação positiva como negativa. Mas, não haverá necessidade, desde logo, desse expediente, se o caso for de manifestação do Relator favorável ao reconhecimento da repercussão geral. Nesse caso, o normal será a submissão do recurso ao julgamento da Turma, onde atingido o quorum mínimo de votos favoráveis ao acolhimento da preliminar ficará dispensada a ouvida do Plenário (CPC, art. 543-A, § 4º).
A competência constitucional do Colegiado maior do STF é reclamada pela Constituição apenas para negar a repercussão geral (art. 102, § 3º). Para acolhê-la, portanto, não há necessidade de ir até o Plenário. Basta que quatro votos coincidentes, na Turma, se manifestem pela ocorrência da repercussão geral para que o incidente seja superado.
É, pois, quando a expectativa desse resultado positivo não seja divisada pelo Relator, que este promoverá a remessa de sua manifestação aos demais Ministros que formam o Plenário do STF. Isto acontecerá quando ele mesmo entender, desde o início, que a questão debatida não tem a necessária repercussão geral, ou quando levada a questão à Turma não se chegar a colher pelo menos quatro votos em prol da repercussão.
Após recebimento da manifestação, os diversos Ministros terão o prazo de vinte dias para endereçarem seus pronunciamentos ao Relator, também por meio eletrônico (RISTF, art. 324). Decorrido o prazo sem manifestações suficientes para a recusa do recurso, “reputar-se-á existente a repercussão geral” (RISTF, art. 324, parágrafo único). Quer isto dizer que a rejeição tem sempre de ser expressa e fundamentada. Mas o reconhecimento da repercussão pode ser presumido diante do silêncio dos votantes que se abstêm de pronunciar sobre a argüição feita na preliminar do recurso.
As diversas manifestações recebidas pelo Relator por meio eletrônico serão copiadas e juntadas aos autos (isto se o processo não for totalmente informatizado, pois se o for não haverá, obviamente, que copiar nada). Atingindo o quorum de dois terços dos membros do STF no sentido de falta de repercussão geral, o Relator proferirá decisão singular de recusa do recurso (RISTF, art. 325, caput, in fine). Se a consulta redundar no reconhecimento, expresso ou tácito, da repercussão geral, o Relator julgará o recurso extraordinário, ou pedirá dia para o julgamento pela Turma. Antes ouvirá o Procurador-Geral, quando necessário (RISTF, art. 325, caput).
A decisão da preliminar sobre a repercussão geral integrará a decisão monocrática ou acórdão e “constará sempre das publicações dos julgamentos no Diário Oficial, com menção clara à matéria do recurso” (RISTF, art. 325, parágrafo único). Essa divulgação é importante pela função que se reserva aos precedentes na sistemática de controle da repercussão geral para efeito do juízo de admissibilidade de outros recursos que venham a discutir a mesma questão constitucional.
Pode-se estranhar o processamento e julgamento do incidente sem a realização de uma sessão do Plenário no sentido tradicional e sem a lavratura de acórdão específico. Acontece que a Constituição, ao cuidar da repercussão geral, não exigiu nada além da “manifestação de dois terços” dos membros do STF para recusar os recursos que evidenciassem tal repercussão. Não se impôs, assim, que a solenidade da sessão de julgamento e a lavratura de acórdão fossem requisitos indispensáveis para decidir o incidente. Aliás, a desnecessidade de acórdão já havia sido prevista, expressamente, no art. 543-A, § 7º, do CPC, onde se contenta com a publicação de súmula da decisão a respeito da preliminar em torno da repercussão. Ademais, já consta de lei a autorização para a ampla adoção do processo eletrônico na Justiça brasileira, cujos moldes práticos de implantação foram confiados à regulamentação dos Tribunais na esfera de suas circunscrições (L. 11.419/06, art. 18).
Não se entrevê, portanto, ilegalidade na sistemática de intercâmbio eletrônico adotado pelo RISTF para formação do quorum de rejeição, ou não, do incidente sub apretiatione.
12. Recursos internos no STF
A decisão da preliminar, quando se rejeita a ocorrência de repercussão geral, por manifestação de dois terços dos membros do STF, é irrecorrível (CPC, art. 543-A, caput; RISTF, art. 326).
Já as decisões singulares do Presidente do STF e do Relator do recurso extraordinário, que o recusam por falta da preliminar formal e fundamentada de repercussão geral, bem como as que o inadmitem por envolver questão cuja carência de repercussão geral já fora proclamada em precedente do STJ, desafiam agravo regimental (ou interno) (RISTF, art. 317, § 2º; art. 327, § 2º).
13. O verdadeiro meio idealizado para limitar o volume de recursos em função da falta de repercussão geral
Ressalvando-se a competência para aferição da relevância do extraordinário, com exclusividade, ao próprio STF, é fácil concluir que a sistemática da repercussão geral, disciplinada pela L. 11.418/0006, de reduzir o excessivo e intolerável volume de recursos a cargo do STF, não teve como objeto principal e imediato os extraordinários manejados de maneira isolada por um ou outro litigante O que se ataca, de maneira frontal, são as causas seriadas ou a constante repetição das mesmas questões em sucessivos processos, que levam à Suprema Corte milhares de recursos substancialmente iguais, o que é muito freqüente, v.g., em temas de direito público, como os pertinentes ao sistema tributário e previdenciário, e ao funcionalismo público. A exigência de repercussão geral em processos isolados, e não repetidos em causas similares, na verdade, não reduz o número de processos no STF, porque, de uma forma ou de outra, teria aquela corte de enfrentar todos os recursos para decidir sobre a ausência do novo requisito de conhecimento do extraordinário.
O grande efeito redutor dar-se-á pelos mecanismos de represamento dos recursos iguais nas instâncias de origem, os quais, à luz do julgado paradigma do STF, se extinguirão sem subir à sua apreciação (art. 543-B, § 2º); e ainda pela extensão do julgado negativo do STF de um recurso a todos os demais em tramitação sobre a mesma questão (art. 543-A, § 5º).
Duas grandes medidas foram adotadas, com semelhantes objetivos, pela ER 21/2007:
a) A primeira foi inserida no art. 328, caput, do RISTF:
O Presidente do STF e o Relator do extraordinário, quando detectarem, no recurso protocolado ou distribuído, a presença de questão “suscetível de reproduzir-se em múltiplos feitos”, comunicarão o fato aos tribunais locais ou turmas de juizado especial, para que observem o disposto no art. 543-B, do CPC. A providência deverá ser tomada de ofício, ou a requerimento da parte interessada.
Antes mesmo de se ter notícia da ocorrência dos recursos seriados, o STF antecipa, por meio de circular aos tribunais do País a possibilidade de que tal venha a acontecer. Diante dessa comunicação, não se procederá à subida de qualquer outro extraordinário sobre a mesma questão constitucional, cuja repercussão geral pende de apreciação. Todo eventual recurso que surgir permanecerá retido na instância de origem, para oportunamente sofrer um dos efeitos previstos no art. 543-B, ou seja: (I) se o STF negar a existência de repercussão geral, todos os recursos sobrestados “considerar-se-ão automaticamente não admitidos” (§ 2º); (II) reconhecida a repercussão geral e julgado o mérito do recurso extraordinário pelo STF, os tribunais de origem promoverão um juízo de reexame, no qual poderão declarar prejudicado o recurso sobrestado ou retratar o decidido no acórdão recorrido, para pô-lo em consonância com a tese definida pelo STF (§ 3º);
b) A segunda medida tendente a evitar a chegada de extraordinários repetitivos ao STF consta do parágrafo único do art. 328 do RISTF:
Verificada a subida ou distribuição no STF de múltiplos extraordinário “com fundamento em idêntica controvérsia”, o Presidente do Tribunal (antes da distribuição) ou o Relator (após a distribuição), “selecionará um ou mais representativos da questão e determinará a devolução dos demais” aos Tribunais de origem, para aplicação dos §§ do art. 543-B do CPC.
Não importa a origem dos extraordinários preservados para apreciação do STF: todos os demais retornarão à origem, mesmo que procedentes de tribunais diferentes. O propósito da norma regimental é que a argüição de repercussão geral seja julgada apenas uma vez no STF. Enquanto isto não se der, todos os recursos sobre a mesma questão constitucional deverão aguardar nas instâncias de origem (Tribunais de 2º grau ou Turmas de juizado especial).
O represamento, como se vê, pode ser provocado por iniciativa do Presidente do Tribunal local (CPC, art. 543-B, § 1º) ou pelo próprio STF (por ato do Presidente ou do Relator), que agirá em caráter preventivo (RISTF, art. 328, caput) ou por medida saneadora (RISTF, art. 328, parágrafo único). Isto é: o STF poderá impedir, antecipadamente, a subida de recursos repetitivos, ou devolver à origem os recursos que seriadamente subirem para seu exame.
14. O juízo de admissibilidade na instância local
O recurso extraordinário é interposto perante o presidente ou vice-presidente do tribunal recorrido (CPC, art. 541). Compete-lhe o exame de enquadramento do recurso num dos permissivos da Constituição (art. 102, III, al. a a d). A não-ocorrência de algum dos seus requisitos ocasiona a inadmissão do extraordinário ainda na instância de origem, tornando cabível o agravo de instrumento para o STF, nos termos do art. 544 do CPC.
Esse juízo local de admissibilidade não inclui a aferição da repercussão geral, cujo exame é exclusivo do STF (CPC, art. 543-A, § 2º).
Formalmente, no entanto, haverá de figurar no recurso, de maneira obrigatória, a demonstração de que a questão constitucional nele aventada oferece repercussão que ultrapassa os interesses subjetivos da causa. A ausência de tal capítulo torna inepta a petição recursal.
O presidente (ou vice-presidente) do tribunal a quo, portanto, poderá inadmitir o extraordinário, não pela proclamação de falta de repercussão geral, mas por ausência objetiva de um requisito indispensável da petição. Estará controlando um pressuposto processual, da mesma maneira com que teria de agir, v.g., em face da tempestividade do recurso, do prequestionamento ou da demonstração de divergência pretoriana. O que não se admite, de forma alguma, é o juízo de valor sobre os argumentos utilizados pela parte para sustentar a repercussão geral. Essa averiguação somente o STF poderá fazer.
O que se permite ao órgão local é, diante de vários recursos de fundamentação idêntica, a seleção de um ou alguns processos representativos da controvérsia para subida ao STF. Os demais ficarão sobrestados na origem, para aguardar-se o pronunciamento definitivo da Suprema Corte (CPC, art. 543-B, § 1º). Que ocorre se o avolumar de recursos iguais se der após a subida daquele que a seu tempo era o único sobre o tema? A solução será a mesma: já existindo igual argüição de repercussão geral pendente de julgamento no STF, todos os extraordinários subseqüentes deverão sujeitar-se ao sobrestamento na instância de origem, para os efeitos previstos nos §§ 2º, 3º e 4º do art. 543-B. É o que se deduz do art. 328 do RISTF, que determina medidas que, no STF, poderão ser tomadas, de ofício e em caráter preventivo, para impedir subida de recursos seriados ou repetitivos.
É sempre bom ressaltar que o objetivo da criação do requisito da repercussão geral é a implantação de um filtro para diminuir o afluxo de recursos repetitivos ao STF, o que não seria alcançado caso tivessem de subir reiteradamente àquela Corte iguais argüições. Basta, pois, que uma delas seja decidida para que o destino das subseqüentes fique definido, sem necessidade de subida de todos os recursos sustentados pela mesma tese.
Julgar, caso a caso, todas as argüições individualmente feitas pelos diversos recorrentes não produz efeito algum na política de limitação do acesso de recursos do STF. O maior significado do requisito da repercussão geral reside justamente no impedimento do acesso seriado de recursos iguais ao STF. E isto somente será alcançado se os tribunais locais procederem ao sobrestamento de todos os extraordinários veiculadores da mesma tese, enquanto o STF não se pronunciar, de maneira definitiva, a seu respeito.
15. Recursos extraordinários posteriores a decisões do STF sobre a não-repercussão geral de determinada questão
Analisando a lei por seu objetivo – e esse é o melhor critério exegético para superar deficiências textuais e para melhor entender o alcance da norma – , impõe-se concluir que não haverá necessidade de subir novos recursos para que o STF repita a declaração de falta de repercussão geral. Uma vez conhecida a posição do STF por meio de precedente que envolva a mesma questão constitucional, os novos recursos poderão ser barrados na instância local. Da decisão do presidente do tribunal recorrido, naturalmente caberia o agravo previsto no art. 544 do CPC.
A aplicação do disposto no art. 543-B, §2º, à espécie, dar-se-ia dentro da mesma sistemática já adotada no incidente de declaração de inconstitucionalidade, ou seja: não se submete ao plenário, ou ao órgão especial “a argüição de inconstitucionalidade, quando já houver pronunciamentos destes ou do plenário do Supremo Tribunal Federal sobre a questão”.
Vale dizer que a questão de direito, na ordem constitucional, é apreciada uma só vez pela corte que sobre ela compete pronunciar-se, no quorum máximo. Depois disso, os juízos inferiores estão dispensados de suscitar o incidente de inconstitucionalidade, se vão decidir o novo caso aplicando justamente o mesmo entendimento já consagrado no precedente do STF.
É essa a orientação que se impõe, igualmente para a questão de repercussão geral no âmbito do recurso extraordinário, de modo a simplificar a inadmissão de todos os apelos posteriores àquele em que se deu, em igual situação jurídica, o reconhecimento pelo STF da ausência do requisito do §3º do art. 102 da Constituição.
O órgão local não estaria suprimindo a competência exclusiva do STF para proclamar a falta de repercussão geral, pois estaria justamente dando aplicação à tese já assentada pela mais alta corte. Se o STF pode vetar a subida do recurso, antes mesmo de sua interposição para futura e eventual aplicação do art. 543-B do CPC, como determina o art. 328 do RISTF, claro que depois de já conhecido o pronunciamento do STF negando a repercussão geral, terá o Presidente do Tribunal local de impedir a subida de qualquer novo extraordinário que insista na tese já superada.
16. Controle pelo relator no STF
Se o recurso extraordinário, versando sobre questão que o Plenário já definiu como carente de repercussão geral, chegar ao STF por força de admissão da instância local, caberá ao relator inadmití-lo em decisão singular, nos termos dos arts. 557 do CPC e 327 do RISTF.
O caso haverá de ser tratado como de “recurso manifestamente inadmissível”, por colocar-se contra jurisprudência já assentada pelo órgão competente para declarar a inocorrência do requisito da repercussão geral. Também aqui não estaria o relator invadindo a competência do Plenário para declarar a falta de repercussão geral do tema debatido no extraordinário, pela simples razão de que a questão já teria sido anteriormente decidida pelo órgão máximo, com força para prevalecer para todos os recursos em que se cogitasse da mesma questão de direito (CPC, art. 543-B, § 2º).
O art. 557 pode, pois, ser aplicado em harmonia com a técnica da limitação dos recursos extraordinários preconizada pelo art. 102, § 3º, da Constituição, desde que anteriormente já se tenha pronunciado o Plenário, ainda que em julgamento de processo diverso. Aliás, o art. 327, § 1º, do RISTF não deixa dúvida quanto ao poder do Relator de recusar o recurso, na espécie. É sempre importante lembrar que o incidente de falta de repercussão geral é instaurado e julgado em tese, ou seja, como pura questão de direito, com vocação, portanto, a prevalecer dentro e fora do processo em que a suscitação aconteceu 26.
17. Regulamentação da súmula vinculante do STF
A L. 11.417/06 regulamentou o art. 103-A da Constituição, com vigência programada para três meses após a respectiva publicação, que se deu no DOU de 20.12.2006. O objetivo básico da lei foi o de disciplinar “a edição, a revisão e o cancelamento de súmula vinculante pelo STF” (art. 1º). Outras providências normativas também foram tomadas, sempre em torno do papel e da força jurídica atribuídos à súmula vinculante. São os seguintes os pontos relevantes da regulamentação:
I – Destinatários: O efeito obrigatório do enunciado da súmula do STF, de acordo com a previsão constitucional, se dará, não apenas em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário, mas alcançará, também, a administração pública direta e indireta, em todas suas esferas (art. 2º). Com isso, o que se busca é impedir que o Poder Público continue a abusar do direito de recorrer, desafiando temerariamente os entendimentos jurisprudenciais já consolidados no Supremo Tribunal Federal.
II – Objeto: A súmula vinculante será extraída de decisões do STF sobre matéria constitucional (art. 2º, caput) e terá por objeto “a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, controvérsia atual que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão” (art. 2º, § 1º).
O teor da súmula obriga como lei, mas só atua em campo de interpretação de norma legal já existente. O STF não está autorizado a proceder como órgão legislativo originário. Não pode criar, pelo mecanismo sumular, norma que não tenha sido instituída pelo poder legislativo, nem mesmo a pretexto de suprir lacuna do direito positivo. Na verdade, o que obriga é a lei interpretada pelo STF em súmula de seus julgados. A súmula apenas revela o sentido que tem a norma traçada pelo legislador. Como a Constituição confere autoridade ao STF para tanto, descumprir o enunciado de uma súmula vinculante equivale a violar a lei que a inspirou. Daí falar-se em súmula com efeitos vinculantes (ou obrigatórios).
O STF é uma Corte Constitucional, mas nem tudo que decide se passa à luz de regras constitucionais. No exercício de sua competência, muitas questões serão resolvidas com base em normas de direito comum, em matéria tanto de processo como de direito substancial. Neste terreno, não lhe será permitido estabelecer súmulas vinculantes. Somente as questões de direito constitucional ensejam tais súmulas. Outras questões limitadas ao direito infraconstitucional poderão ser sumuladas, mas sem força vinculante, ou seja, nos moldes das súmulas tradicionais, como aquelas a que alude o art. 479 do CPC 27.
Não é, porém, decisão de natureza infraconstitucional, aquela feita para definir o teor de norma legal comum em face da Constituição, quando surge a argüição de inconstitucionalidade. Nem sempre o STF reconhece a total inconstitucionalidade. Às vezes limita-se a vetar a exegese que seria inconciliável com a Constituição. Nesse sentido, pode-se reconhecer que houve solução de questão constitucional para efeito de edição de súmula vinculante, mesmo que a exegese tenha se concentrado na definição de regra infraconstitucional. Em sentido lato, é certo que um tema constitucional terá sido tratado, o que é bastante para justificar súmula vinculante a seu respeito 28.
III – Pressupostos: Para edição da súmula vinculante exige-se (art. 2º, caput, da Lei 11.417):
a) existência de reiteradas decisões sobre a matéria no STF (sempre de ordem constitucional);
b) ocorrência de controvérsia, entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública, que tenha por objeto a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas; estas podem ser infraconstitucionais, mas as controvérsias a seu respeito devem ter raízes constitucionais;
c) reflexos da controvérsia que acarretem (I) grave insegurança jurídica e (II) relevante multiplicação de processos sobre idêntica questão. Vê-se, mais uma vez, o caráter excepcional da súmula vinculante: nem mesmo o objeto constitucional é suficiente para sua edição; hão de concorrer outros fatores condicionantes como os riscos para a segurança jurídica e os inconvenientes da intolerável multiplicação de processos em torno de uma só questão constitucional.
IV – Procedimento: A edição, a revisão e o cancelamento de súmula de efeito vinculante não se dão de forma automática. Há um procedimento especial que exige provocação de agente legítimo e que contará sempre com manifestação prévia do Procurador-Geral da República, se dele não tiver sido a proposta (art. 2º, § 2º). Dito procedimento, esboçado pela L. 11.417/2006, se completará com o que o RISTF dispuser (art. 10).
A decisão, tanto para aprovar a edição, como a revisão ou o cancelamento da súmula vinculante, dependerá do voto convergente de dois terços dos membros do STF, em sessão plenária (art. 2º, § 3º).
Dentro de dez dias da sessão que editar, rever ou cancelar a súmula vinculante, o enunciado respectivo será publicado, em seção especial, duas vezes: uma no Diário da Justiça, e outra no Diário Oficial da União (art. 2º, § 4º). É dessa publicação que decorrerá o seu efeito vinculante, e não da sessão do STF que deliberou a seu respeito.
V – Legitimação: A edição de súmula com efeito vinculante pode se dar por deliberação do STF, tomada de ofício, em sessão plenária (art. 2º, caput). O mesmo, obviamente, acontece com a revisão ou cancelamento.
O procedimento, seja para editar, rever ou cancelar a súmula vinculante, também pode ser provocado por agente exterior ao STF. Prevê o art. 3º da L. 11.417/2006, que a proposta possa partir dos seguintes legitimados:
I – Presidente da República;
II – Mesa do Senado Federal;
III – Mesa da Câmara dos Deputados;
IV – Procurador-Geral da República;
V – Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil;
VI – Defensor Público-Geral da União;
VII – Partido Político com representação no Congresso Nacional;
VIII – Confederação Sindical ou entidade de classe de âmbito nacional;
IX – Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;
X – Governador de Estado ou do Distrito Federal;
XI – Tribunais Superiores, Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e Territórios, Tribunais Regionais Federais, Tribunais
Regionais do Trabalho, Tribunais Regionais Eleitorais e Tribunais Militares.
Todos esses legitimados podem agir, perante o STF, independente de serem parte ou sujeito de algum processo em curso, seja naquela superior instância, seja em qualquer outra. Instaura-se um processo originariamente voltado para a edição, no modificação ou revogação de súmula. O pleito, porém, tem de ligar-se necessariamente a teses de direito sobre as quais o STF já tenha tomado posição definitiva em reiterados julgamentos (L. 11.417, art. 2º, caput).
O Município, diversamente dos legitimados do caput do art. 3º, não pode propor a instauração de procedimento autônomo de edição, revisão ou cancelamento de súmula de efeitos vinculantes. Pode, no entanto, fazê-lo, incidentalmente, no curso de processo em que seja parte, sem que isto autorize a suspensão do processo (art. 3º, § 1º) 29.
VI – Amicus Curiae: Nos procedimentos de edição, revisão ou cancelamento de enunciados de súmula vinculante, o relator poderá admitir, por decisão irrecorrível, a manifestação de terceiros na questão, observado o que, a propósito, dispuser o Regimento Interno do STF (art.
3º, § 2º). As razões que justificam essa intervenção são as que já se mencionaram em face da “repercussão geral”, em cuja regulamentação também se prevê a atuação do amicus curiae (ver, retro, o n.º 7).
VII – Vigência: Uma vez publicada na imprensa oficial, a súmula vinculante tem eficácia imediata. O STF, entretanto, pode, por decisão de dois terços de seus membros, alterar o marco inicial dos efeitos vinculantes, designando-o para outro momento. A deliberação haverá de ser fundada em razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse público (art. 4º).
A regra de que a eficácia da súmula, em certos casos, pode ser determinada para momento futuro e não imediato, segue o mesmo critério adotado para afastar o efeito ex tunc nas ações de inconstitucionalidade 30. Exigências relevantes, de segurança jurídica ou de interesse público excepcional, podem determinar a preservação de situações jurídicas já estabelecidas 31.
Releva notar que o art. 4º da L. 11.417 não cuida apenas de dilatar o prazo de entrada em vigor da súmula; permite, também, que os efeitos vinculantes sejam reduzidos, de modo a não abalar algumas situações merecedoras de conservação, mesmo que contrárias ao enunciado sumular.
Assim, os efeitos de atos já praticados ou em vias de sê-lo, podem ser, excepcionalmente, excluídos do alcance da súmula, pelo mecanismo da eficácia diferida ou reduzida. Valorizam-se, então, princípios como o da segurança das relações jurídicas e o da proteção da confiança do cidadão, na ordem privada, e, na ordem pública, o da previsão e fidelidade orçamentária, cuja inobservância, acarretada pelos efeitos imediatos da súmula vinculante, degeneraria em tumulto e injuridicidades de graves proporções na gestão da coisa pública.
VIII – Processos pendentes: A proposta de edição, revisão ou cancelamento de enunciado de súmula vinculante não autoriza a suspensão dos processos em que se discuta a mesma questão (art. 6º).
IX – Processo administrativo: Obrigando a Administração Pública, terão os processos administrativos de se amoldarem aos enunciados das súmulas vinculantes do STF, sob pena de as autoridades envolvidas se sujeitarem à “responsabilização pessoal nas esferas cível, administrativa e penal” (art. 64-B, acrescentado à L. 9.784/1999 pelo art. 8º da Lei 11.417/2006).
X – Reclamação: O remédio impugnativo da reclamação (CF, art. 102, I, l) é manejável contra ato judicial ou ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente (CF, art. 103, § 3º). Observar-se-ão, no processamento da reclamação, as seguintes particularidades preconizadas pela L. 11.417/2006:
a) a utilização da reclamação, em função de ato praticado em processo judicial ou administrativo, não prejudica o cabimento dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação (art. 7º, caput);
b) quando se tratar de ato da administração pública (comissivo ou omissivo), o uso da reclamação só será admitido após esgotamento das vias administrativas (art. 7º, § 1º).
Julgando procedente a reclamação, o STF poderá: (I) anular o ato administrativo; (II) cassar a decisão judicial impugnada, caso em que determinará que outra seja proferida com ou sem aplicação da súmula, conforme o caso.
Se o órgão judicial deixou de aplicar, quando devia, a súmula vinculante, a hipótese é de mandar que outra decisão seja proferida “com aplicação da súmula”. Se, porém, a súmula foi indevidamente utilizada, o caso será de ordenar a renovação do julgamento já, então, “sem aplicação da súmula”.
18. Conclusões
Tanto no instituto da repercussão geral como no da súmula vinculante estão presentes a política de valorização da autoridade do STF na interpretação e tutela da Constituição, de um lado e, de outro, de desafogo daquela alta Corte do intolerável volume de processos que, atualmente, chega a comprometer a prestação jurisdicional a seu cargo.
Ambas as inovações foram concebidas em termos razoáveis e tendem a produzir bons resultados na consecução dos objetivos perseguidos. Sua maior e melhor eficiência, entretanto, far-se-á notar com o passar do tempo, à medida em que o exercício das faculdades inovadas venha a tornar mais definidas e transparentes as posições do Supremo Tribunal no manejo das súmulas e das definições dos casos concretos de repercussão geral. A contribuição pretoriana se mostra, sem dúvida, relevante e decisiva in casu.
Belo Horizonte, maio de 2007Parte superior do formulário
——————————
Humberto Theodoro Júnior
Professor Titular da Faculdade de Direito da UFMG.
Desembargador Aposentado do TJMG. Membro da
Academia de Direito de Minas Gerais, do Instituto dos
Advogados de Minas Gerais, do Instituto de Direito Comparado
Luso-Brasileiro, do Instituto Brasileiro de Direito Processual,
do Instituto Ibero-americano de Direito Processual e da Internacional
Association of Procedural Law. Advogado.