Representação paritária e “voto de qualidade” são indissociáveis do Carf

Autor:  Julio Cesar Vieira Gomes (*)

 

Os ideais liberais que “sopravam” no Brasil na década de 1920 modificaram as relações entre o Estado e os contribuintes. Com inspiração democrática foi criado em 14 de setembro de 1925 o Conselho de Contribuintes do Imposto de Renda, primeiro órgão fazendário integrado tanto por representantes da fazenda quanto dos contribuintes. Apesar de bem-sucedido em sua primeira experiência, o modelo sofreu aperfeiçoamentos. Assim, em 1927 o Conselho de Contribuintes passa a ser o primeiro órgão paritário do país, doze membros em igual número de representantes da fazenda e dos contribuintes. Sendo em número par de conselheiros, a solução para os casos de empate nas deliberações foi a atribuição do voto de desempate ao presidente da turma, o chamado “voto de qualidade” (1). Era a aplicação do princípio da presunção de legalidade do ato administrativo de lançamento tributário.

Esse modelo construído sobre os dois pilares — a representação paritária e o chamado “voto de qualidade” — atravessa quase um século de existência, e somente agora, justamente após a ampla reestruturação trazida pelo seu novo regimento interno (2), é que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) vem sendo intensamente questionado quanto ao voto de desempate do presidente de turma.

Nossa proposta aqui é demonstrar que o voto de desempate do presidente de turma decorre de uma característica comum a todos os processos administrativos em geral: a “palavra final” sempre compete à administração pública (3) e deriva direta e necessariamente de outra característica elementar do desenho institucional do órgão, a abertura do processo decisório para a representação paritária. Eles coexistem como se fossem “gêmeos siameses”, naturalmente inseparáveis. Quando juntos, o Carf mantém-se alinhado ao direito constitucional administrativo contemporâneo, pois consegue ter o controle estatal sobre suas decisões sem se descuidar da legitimidade democrática, proporcionada pela abertura do processo decisório para um diálogo com a sociedade civil-contribuintes através de seus representantes. Caso excluída a participação dos contribuintes através da representação paritária haveria um refluxo ao direito administrativo tradicional, informado pela unilateralidade do Estado; por outro lado, caso seja excluído apenas o “voto de qualidade” incorreríamos numa espécie de “anarquia dos contribuintes”, com violação seletiva do dever fundamental de pagar impostos (4).

Como apontamos, a representação paritária no Carf surgiu em 1927 como um marco histórico da administração pública participativa, uma experiência bem-sucedida de participação democrática da sociedade no processo de formação das decisões de órgão, onde os contribuintes passariam a ter voz nas discussões sobre a interpretação e aplicação da legislação tributária federal. O que se encaixa perfeitamente em um sistema tributário repleto de ambiguidades, demandando, assim, uma efetiva abertura do sistema para que a sociedade civil-contribuintes colabore com a árdua tarefa de suprir as obscuridades da legislação, insuficiente que é o método de aplicação da subsunção do fato à norma jurídica. A pluralidade de pontos de vista, argumentos e interpretações jurídicas trazidas pelos conselheiros representantes dos contribuintes é expressão de uma efetiva ação comunicativa orientada para a compreensão dialética (5), o que também resulta maior eficiência e correção por se agregarem às decisões valores que se somam à visão fazendária sobre o crédito tributário.

Esse é o papel fundamental dos conselheiros representantes dos contribuintes, trazer para o ambiente da administração fazendária a realidade, a perspectivas daqueles, pessoas naturais ou jurídicas, que em suas vidas cotidianas praticam atos econômicos suscetíveis ao pagamento de tributos, os fatos geradores da obrigação tributária. Essa participação dos contribuintes na formação das decisões do Carf também é fundamental para a legitima construção da liquidez e certeza do crédito tributário como título executivo extrajudicial.

Uma consideração também importante a justificar histórica e pragmaticamente a deliberação participativa no Carf é a desnecessidade de o contribuinte ser representado pela defesa técnica. Ele mesmo pode fazer sua defesa escrita e oral, sem necessidade de advogado. E considerada a complexidade da legislação tributária, a autodefesa pelo leigo, muitas vezes exercida pela falta mesmo de condições financeiras para contratação do profissional, poderia o colocar em situação muito desfavorável na demonstração de seu direito. Como solução institucional, a composição do órgão integrada também por conselheiros que o representem é bastante oportuna para a justiça fiscal, em especial para se alcançar no processo a verdade material, agregando valor ao processo decisório e na maioria das vezes efetivamente resultando acórdãos favoráveis aos contribuintes (6).

Assim, embora formalmente tenha lhes sido conferido o direito a voto, os representantes dos contribuintes não são propriamente decision-makers em sentido estrito (7). Essa realidade não significa que se possa condenar o CARF à parcialidade em suas decisões. Existe imparcialidade, mas em menor grau (8); o que é insuficiente para que se possa concluir pela dúvida quanto à certeza e liquidez do crédito tributário nos casos em que adotado o “voto de qualidade”.

Também em uma análise normativa, os dispositivos regimentais do Carf evidenciam sua preponderância como órgão eminentemente fazendário: a) o Carf é um órgão da administração fazendária, da estrutura hierárquica do Ministério da Fazenda, a quem cabe a nomeação e dispensa dos conselheiros; e b) a atuação dos conselheiros é influenciada pela relação entre representante e representado, a quem cabe também a indicação para as sucessivas reconduções a cada 2 anos, o que por si só já denota uma contradição com a imparcialidade, ao menos no grau necessário para se atribuir dúvida ao crédito tributário nos casos de empate na votação.

No funcionamento das sessões de julgamento, outros mecanismos evidenciam as prerrogativas da fazenda. A votação sempre se inicia com o mais antigo e experiente conselheiro representante da fazenda e termina com o presidente da turma, em ordem decrescente de antiguidade e alternadamente entre representantes da fazenda e dos contribuintes. Com efeito, no processo de deliberação a ordem sequencial de votação exerce influência no resultado. A experiência e reputação dos primeiros conselheiros a votarem serão levadas em consideração pelos conselheiros seguintes. Além do efeito reputational cascade (9), podemos identificar um efeito information cascade motivado pelo ônus expressivo para a apresentação de voto divergente, considerando que muitas vezes o conselheiro está no limite de seus esforços para cumprir as metas de resultado: número de processos a relatar, prazos exíguos para apresentação de voto divergente, declaração de voto e formalização de acórdãos etc. De fato, o “reputational cascade” nos julgamentos é uma realidade. Os tribunais buscam evitá-lo adotando a ordem de votação crescente pela antiguidade, como acontece no Supremo Tribunal Federal.

Conclusão
O imbróglio levado aos nossos tribunais quanto a validade do “voto de qualidade” no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF resulta de uma premissa equivocada de que a imparcialidade do órgão seria em grau suficiente para que em caso de empate entre os votos proferidos pelos conselheiros representantes da fazenda e pelos representantes dos contribuintes suscitaria uma dúvida quanto ao crédito tributário e, portanto, deveria ser aplicado o artigo 112, inciso II do CTN (10).

Os conselheiros indicados pelas confederações representativas de categorias econômicas (da indústria, comércio, instituições financeiras, dentre outras) representam os contribuintes tal como as entidades da sociedade civil representam grupos ou classes de pessoas. Eles trazem para a deliberação seus pontos de vista, argumentos e teses jurídicas, que podem ou não serem aceitas pelo órgão administrativo, a quem compete a “palavra final”, exercida pelo “voto de qualidade”. Portanto, a inversão dessa prerrogativa em favor dos contribuintes caracterizaria uma verdadeira “aberração jurídica”, um modelo teratológico para o direito constitucional administrativo.

Como já exposto, a vinculação que se faz sobre “voto de qualidade” e dúvida sobre a procedência do crédito tributário decorre da premissa de que o grau de imparcialidade do Carf seria elevado. E sendo assim, quando os julgadores não chegam à uma maioria de votos sobre a procedência ou não do crédito tributário poder-se-ia inferir a existência de dúvida, mas não é o caso. Os conselheiros são representantes ou da fazenda ou dos contribuintes; e sendo em igual número a tendência é o empate nas decisões do CARF, com exceção dos autos de infração lavrados por aplicação direta da lei tributária (11). Portanto, o empate não resulta da dúvida, mas da indisposição dos conselheiros em chegar a um consenso médio, à maioria de votos, prevalecendo, assim, o interesse da fazenda.

A representação paritária e o “voto de qualidade” são as duas características elementares do desenho institucional do Carf. Elas são inseparáveis. A exclusão do “voto de qualidade” o  transformaria numa instituição eminentemente política; sobretudo, em prejuízo dos contribuintes com menor capacidade de influenciar as decisões do Estado, as pequenas empresas e as pessoas físicas (12).

Por fim, não se desconhece que o Carf tem assumido um suposto alto grau de imparcialidade nos seus julgamentos do Carf, mas não é o discurso que revela as verdadeiras características elementares de uma instituição. Efetivamente, como procuramos demonstrar em nossa abordagem dogmática e normativa, os conselheiros do CARF não deixarão de cancelar créditos tributários improcedentes, mas o fazem por responsabilidade ético-profissional e capacidade técnica para reconhecê-los e não porque mantenham uma postura de neutralidade, equidistância entre os dois interesses contrapostos, o da fazenda e o dos contribuintes, o que, assim fosse, alçaria o órgão os níveis mais elevados de imparcialidade, mas não é o caso. Definitivamente, o grau de imparcialidade no CARF é insuficiente para inferir dúvida quanto ao crédito tributário decidido pelo chamado “voto de qualidade”.

 

 

 

 

Autor:  Julio Cesar Vieira Gomes  é professor e auditor-fiscal da Receita Federal na DRJ-Rio de Janeiro. Doutorando e mestre em Direito Financeiro e Tributário pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Pesquisador do Laboratório de Estudos Teóricos e Analíticos sobre o Comportamento das Instituições – LETACI/UFRJ. Ex-Conselheiro do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).


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