A idéia da responsabilidade civil, presente em qualquer comunidade social, está vinculada ao preceito moral de não prejudicar o outro – neminem laedere – e à noção de reparação do dano (indenização) a terceiro. Na verdade, a atenção maior do direito, conforme variadas circunstâncias, pode recair sobre o causador do dano ou sobre a vítima. O objetivo principal da norma jurídica parece ser de censura ao causador do dano, quando se exige o pressuposto culpa para ensejar o dever de indenizar. Já quando a preocupação maior é com a vítima do dano (a reconstituição de seu patrimônio), o fim maior, naturalmente, não é a censura (reprovação da conduta humana), devendo a reparação ocorrer independentemente da valoração da conduta daquele que terá obrigação de indenizar.
Para Aguiar Dias, o interesse em restabelecer o equilíbrio econômico jurídico alterado pelo dano é a causa geradora da responsabilidade civil. As teorias nada mais fazem, no fundo, do que indicar quem deve suportar o dano. Assim, quanto maior o número de requisitos exigidos para gerar a obrigação de indenizar, maior, também, é a probabilidade da própria vítima arcar com o prejuízo sofrido. Foi no Código Civil Napoleônico, de 1804, (arts. 1.382 e 1.383) que o mundo ocidental foi buscar os pressupostos da responsabilidade civil baseada na teoria da culpa. No Brasil, a matéria restou positivada no conhecido artigo 159, do Código Civil.
Em razão de longa convivência com o dispositivo, difundiu-se erroneamente pela doutrina que é elemento essencial do ato ilícito a culpa. Ora, a preocupação maior do direito civil não é, nem deve ser, com a punição ou reprovação das pessoas. Tal tarefa cabe especialmente ao Direito Penal. A indenização do lesado – sua integridade física, moral e patrimonial – é o valor que deve prevalecer na disciplina da responsabilidade civil.
Marton argumenta que a adoção da teoria da culpa como regra nos ordenamentos jurídicos modernos foi um equívoco. Fundamenta a assertiva alegando que no Direito Romano, fonte dos códigos atuais, a imposição do ressarcimento sempre teve caráter penal: delito e reparação se identificavam de tal modo que a ação aquiliana era a única via judiciaria em que se podiam estabelecer as obrigações de um e outro caráter.
De qualquer modo, as vicissitudes da vida moderna, decorrentes da Revolução Industrial e do aumento de população, evidenciaram a insuficiência da idéia de culpa para legitimar o dever de indenização prejuízos dignos de reparação. O progresso cientifico e tecnológico trouxe com ele um aumento considerável dos acidentes, até então nunca visto. Se é certo que era impossível evitar e prevenir grande parte dos acidentes, menos verdade não é que se deveria proporcionar soluções jurídicas mais eficazes, que, de fato, trouxessem a indenização para os lesados.
No final do século XIX – quando ainda estava em discussão o projeto do atual Código Civil brasileiro – juristas franceses (Sailelles e Josserand) já defendiam o afastamento do requisito culpa para caracterizar a responsabilidade civil nos acidentes de trabalho e no fato da coisa.
O Brasil promulgou, em setembro de 1990, a Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) no qual, entre seus princípios fundamentais, está a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais do consumidor (art. 6º). Na Lei, há duas grandes órbitas de proteção do consumidor: a incolumidade físico-psíquica e a econômica. A primeira se ocupa com os chamados acidentes de consumo e vem detalhada nos artigos 12 a 17. A outra, constante nos artigos 18 a 24, tem por objeto a responsabilidade por vício do produto e do serviço, substituindo a disciplina do vício redibitório do Código Civil ( art. 1.101 a 1.106).
Como regra geral, a Lei 8078/90 estabeleceu a responsabilidade objetiva do fornecedor, desconsiderando o elemento culpa, sejam os danos decorrentes de acidente de consumo, sejam decorrentes de vícios de qualidades dos produtos e serviço. Exceção expressa restou estipulada no caso de acidentes de consumo decorrentes de serviços oferecidos no mercado de consumo pelos profissionais liberais (art.12, p. 4º).
Ao par da responsabilidade objetiva, restou estabelecida a solidariedade passiva entre os participantes da cadeia produtiva e comercial (fabricante, produtor, construtor, importador e comerciante), de modo a facilitar o exercício da pretensão indenizatória pelo lesado.
Consigne-se, por fim, que não se pode ingenuamente imaginar que novos custos – decorrentes de uma admissão ampla do dever de indenizar – serão transferidos ao fornecedor ou por ele assumidos, sem qualquer alteração do preço final do produto. O valor da indenização pelos acidentes de consumo inevitavelmente será distribuído entre os integrantes do mercado de consumo. A empresa não sobrevive sem lucro. Se não optar por celebração de seguro, haverá no preço final, com base em dados estatísticos, parcela destinada a cobrir as despesas decorrentes de pagamentos indenizatórios. Assim, de uma forma ou de outra, haverá socialização dos prejuízos decorrentes de indenizações. Não há qualquer perigo ou tragédia para a situação financeira das empresas decorrente de sistema de responsabilidade civil objetiva e se atende a antigo e universal princípio de justiça.
* Leonardo Bessa
Leonardo Roscoe Bessa – Titular da Promotoria de Defesa do Consumidor (MPDFT), Mestre em Direito pela UnB, Professor de Direito do Consumidor (UnB e Fundação Getúlio Vargas (Brasília), integrante da Banca Examinadora dos 24º, 25º e 26º Concursos para ingresso na carreira de Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal, autor dos livros O Consumidor e os Limites dos Bancos de Dados de Proteção ao Crédito, Ed. Revista dos Tribunais e o Consumidor e seus Direitos – ao Alcance de Todos, Ed. Brasília Jurídica