Ressureição, de Liev Tolstói, é aula sobre as injustiças da pena de prisão

Autor: Rômulo Moreira (*)

 

O grande escritor russo Liev Tolstói, um dos maiores nomes da literatura mundial (autor dos épicos Guerra e Paz – 1860, e Anna Kariênina – 1870), no final do ano de 1889, começou a escrever uma história (que, inicialmente, denominou A história de Kóni), que seria também um marco em sua trajetória como escritor: chama-se Ressurreição. O romance começou a ser publicado na Rússia apenas em março de 1899, em fascículos e bastante censurado. Somente em 1936 viria a ser publicada uma versão completa e fidedigna, com o texto reconstituído por filólogos russos.[1]

Este livro, atualíssimo, “focaliza o sistema judiciário e prisional, um cenário e um contingente humano muito diferentes do que encontramos nos romances anteriores. Desse ângulo, Tolstói lança sobre a sociedade inteira uma luz capaz de pôr a nu o sentido da violência, oficial ou não, e sua relação com os privilégios.”[2]

O protagonista do romance é um nobre russo, chamado Dmitri Ivanovich, que se vê envolvido no julgamento de Katiucha, uma mulher que seduzira anos atrás, ainda quando muito jovens, ambos. Ele, pertencente à nobreza russa, ela agora uma prostituta (antes uma empregada de sua velha tia). Nekhliúdov, agora, encontra-se como jurado no processo de sua primeira amante. Katiucha, antes uma bela moça, agora está como acusada de homicídio e submetida na prisão aos mais variados maus-tratos.

Desde logo, Nekhliúdov, ao entrar pela primeira vez no tribunal, passa a descrevê-lo: “No canto direito pendia um caixilho onde havia uma imagem de Cristo com uma coroa de espinhos, ali ficava também o leitoril, e logo ao lado direito ficava a escrivaninha do promotor. (…) No tablado, à direita, ficavam as cadeiras para os jurados, também de espaldar alto e dispostas em duas fileiras, e embaixo, as mesas dos advogados.(…) A figura do presidente e dos juízes, em seus uniformes de golas com bordados de ouro, quando subiram ao tablado, era muito impressionante. Eles mesmos sentiam isso e todos os três, como que embaraçados com sua imponência, de maneira tímida e apressada, de olhos baixos, sentaram-se em suas cadeiras de braços… (…) A sala enorme, os retratos, os lustres, as cadeiras estofadas, os uniformes, as paredes grossas, as janelas, recordando todo o colosso daquele prédio e o colosso ainda maior da própria instituição, todo o exército de funcionários, escrivães, guardas, contínuos, não só ali, mas em toda a Rússia, que recebiam salário em troca daquela comédia da qual ninguém tinha a menor necessidade.”

Perguntado por outro personagem, em certo momento da narrativa, qual seria o objetivo da atividade de um tribunal, e antecipando logo  que não era fazer justiça, respondeu, ceticamente, Nekhliúdov que era manter os “interesses de uma classe. O tribunal, a meu ver, é apenas um instrumento administrativo do estado de coisas vigente, vantajoso para a nossa classe.” Nada obstante ter sido contestado que “se atribui ao tribunal um propósito um tanto diferente”, disparou, certeiramente, Nekhliúdov: “Teoricamente, mas não na prática, como eu percebi. O tribunal tem o único propósito de conservar a sociedade na situação atual e para isso persegue e executa tanto aqueles que se encontram acima do nível comum e querem elevá-lo, os chamados criminosos políticos, como também aqueles que se encontram abaixo, os chamados tipos criminosos.” Após ser-lhe dito que o objetivo do tribunal era a reabilitação, retruca: “Bela reabilitação, a das prisões. (…) O que se faz agora também é cruel e não só é incoerente, como também é estúpido a tal ponto que é impossível entender como pessoas mentalmente sadias podem tomar parte de um processo tão absurdo e cruel como é a justiça criminal.” Boa resposta camarada!

Agora vejam que absoluta contemporaneidade estas reflexões do arrependido aristocrata russo, após presenciar os horrores do cárcere onde se encontrava Katiucha: “Da cadeia e da miséria, parece que ninguém escapa. Se não é a miséria, é a cadeia. (…) Naqueles estabelecimentos as pessoas eram sujeitas a toda sorte de humilhação desnecessárias – correntes, cabeças raspadas, roupa vergonhosa, ou seja, eram privadas do principal motor das pessoas fracas para levar uma vida boa: a preocupação com a opinião das outras pessoas, a vergonha, a consciência da dignidade humana. (…) Encontravam-se o tempo todo numa situação em que mesmo uma pessoa extremamente boa e virtuosa, por força de um sentimento de autoconservação, pratica e perdoa nos outros as ações mais horríveis em sua crueldade. (…) Eram reunidas à força com crápulas extraordinariamente degradados pela vida (e por essas mesmas instituições, sobretudo), assassinos e malfeitores, que, assim como o fermento na massa, agiam em todas as pessoas ainda não inteiramente degradadas pelos procedimentos empregados contra elas. (…) Em todas as pessoas sujeitas a tais influência, incutia-se do modo mais convincente possível a ideia de que toda sorte de violência, crueldade, bestialidade não só não era proibida, como era permitida pelo governo quando isso era vantajoso para ele e, portanto, era mais permitida ainda para aqueles que se achavam sem liberdade, na penúria e na desgraça.”

Naquela época no Império Russo, como hoje no Brasil, “centenas de milhares de pessoas, todos os anos, eram levadas ao mais alto grau de degradação e, quando estavam plenamente degradadas, eram postas em liberdade para espalhar, no meio de todo o povo, a degradação que assimilaram nas prisões. (…) É como se tivessem formulado o problema de como aprimorar, como tornar mais eficaz, um modo de degradar mais pessoas. (…) Pessoas simples, comuns, com as exigências da moralidade russa, social, camponesa, cristã, abandonavam essas noções e assimilavam noções novas, prisionais, que consistiam sobretudo em que toda profanação, toda violência contra a pessoa humana, toda aniquilação da pessoa humana é permitida, quando for conveniente. Depois de viver numa prisão, as pessoas, com toda a sua alma, se davam conta de que, a julgar pelo que acontecera com elas, todas as leis morais de respeito e de compaixão à pessoa humana, pregadas pelos mestres morais e eclesiásticos, tinham sido abolidas na realidade e que, portanto, elas também não eram obrigadas a segui-las. (…) Tudo isso era feito constantemente, ao longo de centenas de anos, com a única diferença que, antes, arrancavam os narizes e cortavam as orelhas, depois marcavam o corpo com varas em brasa e agora algemavam e transportavam em barcos a vapor, e não em carroças.”

Antes do julgamento principal, Nekhliúdov presenciou o de um jovem acusado de furtar de um galpão”três passadeiras velhas, no valor de três rublos e sessenta e sete copeques” e “de que ninguém precisava.” Diante do “menino” acusado, refletiu: “Eles são perigosos, ao passo que nós não somos?… (…) Mesmo que esse menino fosse, para a sociedade, o mais perigoso entre todos os que se encontram nesta sala, o que se deveria fazer, de acordo com o bom senso, quando ele é preso? Afinal, é óbvio que o menino não é nenhum facínora especial, mas sim a pessoa mais comum do mundo – todos veem isso – e que se tornou o que é agora só porque vivia em condições que engendram pessoas assim. E, portanto, parece claro, para que não existam meninos assim, é preciso esforçar-se para eliminar as condições em que se formam essas criaturas infelizes. E o que fazemos? Agarramos um menino desses que, por acaso, caiu nas nossas mãos, sabendo muito bem que milhares iguais a ele continuam à solta, e o metemos na prisão, em condições de completa ociosidade, ou então o mandamos para o trabalho mais insalubre e absurdo (…). A fim de eliminar as condições que fazem surgir tais pessoas, não só não fazemos nada como ainda incentivamos os estabelecimentos em que elas são criadas. (…) Formamos desse modo não uma e sim milhões de pessoas, depois prendemos uma delas e imaginamos que fizemos alguma coisa, nos protegemos e nada mais se exige de nossa parte. (…) Seria melhor dirigirmos a centésima parte de nosso esforço para ajudar essas criaturas abandonadas, a quem encaramos agora como se fossem apenas braços e corpos, necessários para a nossa tranquilidade e o nosso conforto. Afinal, bastaria apenas aparecer uma pessoa que tivesse pena dele, quando, por carência de recursos, foi trazido da aldeia para a cidade, e prestasse socorro àquela carência. (…).” Após todas estas reflexões, Nekhliúdov “admirou-se de como pôde ficar sem perceber tudo isso antes, como outros podiam não perceber.” Belas palavras para os que defendem a diminuição da imputabilidade penal pela idade.

Em um determinado momento de sua trajetória de jurado, Nekhliúdov debruça-se sobre os estudos sobre o positivismo criminológico (liderado pelos italianos), cuja “escola denominava tipos criminosos e cuja existência na sociedade é considerada como a principal prova da necessidade da legislação criminal e da punição”: os chamados “tipos degenerados, criminosos, anormais”. Ele, então, compra os “livros de Lombroso, Garofalo, Ferri, Maudsley, Tarde, e lê atentamente. Porém, à medida que os lia, decepcionava-se cada vez mais. Aconteceu com ele o que sempre acontece com pessoas que se voltam para a ciência não para representar um papel na ciência: escrever, debater, ensinar, mas se voltam para a ciência com perguntas diretas, simples, vividas; a ciência lhe dava resposta para milhares de perguntas diferentes, sutis, eruditas, ligadas à legislação criminal, só não respondia a pergunta para a qual ele buscava resposta: para que e com que direito algumas pessoas, quando elas mesmas são iguais às pessoas a quem elas torturam, chicoteiam e matam? Respondiam-lhe com discussões para saber se existe ou não, no homem, o livre-arbítrio. Era ou não possível saber se um homem era criminoso pelas dimensões do crânio etc? Que papel tem a hereditariedade no crime? Existe uma imoralidade congênita? O que é moral? O que são a loucura e a degenerescência? O que é o temperamento? Que influência exercem no crime o clima, a alimentação, a ignorância, a imitação, o hipnotismo, as paixões? O que é a sociedade? Quais as suas obrigações? Etc., etc. (…) Havia ali muita coisa inteligente, erudita, interessante, mas não a resposta para o principal: com que direito alguns castigam os outros? Não só não havia essa resposta, como todos os raciocínios destinavam-se a esclarecer e justificar o castigo, cuja necessidade era reconhecida como um axioma.” Tolstói referia-se ao que Zaffaroni, mais de um século depois, chamou de “apartheid criminológico”, iniciado em 1857 por Morel, e que teve no Brasil, como um dos mais importantes  representantes, o baiano Raimundo Nina Rodrigues, que chegou a ser “caricaturizado por Jorge Amado, com a licença literária, que o fez viver, algumas décadas mais, no personagem de Nilo Argolo de Araújo, de sua famosa novela ´Tenda dos Milagres`, também levada aos cinemas.”[3]

Em outra oportunidade, ao conversar Nekhliúdov com uma outra prisioneira, foi-lhe dito por ela que o mais difícil de suportar, “mesmo que as privações fossem três vezes maiores”, era “o choque moral que a pessoa recebe quando é presa pela primeira vez.” Disse-lhe, então, a desgraçada: “Quando me prenderam pela primeira vez, e prenderam sem nenhum motivo, eu tinha vinte e dois anos, tinha uma filha pequena e estava grávida. Por mais que fosse penosa para mim a privação da liberdade, naquela ocasião, e ficar separada da criança e do marido, tudo isso era nada em comparação com o que senti quando compreendi que havia deixado de ser uma pessoa e me tornara uma coisa. (…) Lembro que o que mais me transtornou foi que o oficial da guarda, quando me interrogou, me ofereceu um cigarro para fumar. Então ele sabia que as pessoas gostam de fumar, sabia que as pessoas amam a liberdade, a luz, sabia então que as mães amam os filhos e que os filhos amam as mães. Pois então como é que me separam impiedosamente de tudo o que me era caro e me trancaram como uma fera? É impossível suportar isso impunemente. Se alguém acreditasse em Deus e nas pessoas, acreditassem que as pessoas amam umas às outras, depois disso deixaria de acreditar. Desde então, parei de acreditar nas pessoas e fiquei mais áspera – concluiu ela sorrindo.” Hoje, uma grande parte dos presos no Brasil, especialmente ainda submetidos à prisão provisória, é de mulheres acusadas, em sua maioria, por tráfico de drogas. Deixam elas, em casa, em desamparo, os filhos havidos com os seus homens que as obrigaram a transportar drogas ilícitas, de lá para cá, de cá para lá, como se traficantes fossem. E a Justiça criminal, hipocritamente, equiparam-nas a traficantes de drogas, selando para sempre os seus destinos e os dos seus filhos, também desgraçados pela sorte, pela vida e por cada um dos seus deuses.

Em certa oportunidade, ao conversar com um general russo sobre corrupção, este disse a Nekhliúdov: “Dizem-me: erradicar a corrupção. Mas erradicar como, quando todos são corruptos? E quando mais baixo o posto, mais corrupto.” Viva a República de Curitiba (leia-se, operação “lava jato”), cujos alguns integrantes nunca leram uma vírgula além do Direito; no máximo uns livrinhos norte-americanos de autoajuda, tipo Donald Trump.

Ao presenciar as mais diversas torturas feitas a prisioneiros, Nekhliúdov perguntou a si mesmo: “Será que estou louco e vejo coisas que os outros não veem, ou loucos são aqueles que fazem o que estou vendo? Mas as pessoas (e como eram numerosas) faziam aquilo, que tanto o espantava e horrorizava, com uma convicção tão tranquila de que era não apenas necessário, mas também muito útil e importante, que era difícil admitir que toda aquela gente estivesse louca; também não podia admitir que ele mesmo estivesse louco, porque tinha consciência da clareza dos seus pensamentos. Por isso encontrava-se numa perplexidade constante.” Tolstói não imaginaria que no século XXI estaríamos ainda às voltas com a tortura, física ou mental. A cada minuto no Brasil um preso é torturado, segundo meus cálculos…

Ao conversar com uma prisioneira que estava encarcerada junto a presos políticos, Nekhliúdov concluiu que “a convivência com os novos camaradas revelou para ela novos interesses na vida, das quais não tinha a menor ideia. Pessoas tão maravilhosas, ela não só jamais conhecera como não podia sequer imaginar que existissem.” Disse ela: “Aprendi coisas que ficaria a vida inteira sem aprender”, passando a entender “os motivos que orientavam aquelas pessoas e, por ser alguém do povo, solidarizou-se plenamente com elas. Entendeu que aquelas pessoas estavam ao lado do povo e contra os senhores; e o fato de que aquelas mesmas pessoas serem senhores e sacrificarem seus privilégios, sua liberdade e sua vida pelo povo, obrigava-a dar um valor especial a tais pessoas e admirar-se com elas.” Então, aproveitou-se Tolstói para descrever a opinião dele sobre presos políticos: “Havia entre eles pessoas que se tornaram revolucionárias porque consideravam-se sinceramente obrigadas a lutar contra o mal existente. (…) A diferença, em favor dos revolucionários, entre eles e as pessoas comuns, era que a exigência de moralidade entre os revolucionários era mais alta do que as adotadas na esfera das pessoas comuns. Entre os revolucionários, consideravam-se obrigatórios não só a abstinência, a austeridade, a veracidade, o desinteresse, mas também a disposição de sacrificar tudo, até a própria vida, para a causa comum.”

Para encerrar, deixo este trecho, como se fora uma última reflexão, e para que não sejamos hipócritas nos julgamentos dos outros:

“Se fosse formulado o problema psicológico: como fazer para que pessoas da nossa época, pessoas cristãs, humanas, simples e boas, pratiquem as maldades mais terríveis sem sentirem-se culpadas, só haveria uma solução possível: que tais pessoas fossem governadores, diretores, oficiais, policiais, ou seja, que em primeiro lugar estivessem convencidas de que existe um trabalho chamado serviço do Estado, no qual é possível tratar as pessoas como se fossem coisas, sem relações fraternas e humanas com elas, e em segundo lugar que essas mesmas pessoas do serviço do Estado estivessem unidas de tal forma que a responsabilidade pelo resultado de suas ações para as outras pessoas não recaísse em ninguém isoladamente. Fora de tais condições, não existe possibilidade em nossa época de cumprir tarefas tão horríveis como as que vi hoje. A questão toda reside no fato de as pessoas pensarem que existem situações em que se pode tratar um ser humano sem amor, mas tais situações não existem. Pode-se tratar as coisas sem amor: pode-se cortar uma árvore, fazer tijolos, forjar o ferro sem amor; mas é impossível tratar as pessoas sem amor, assim como é impossível lidar com as abelhas sem cuidado. Tal é a peculiaridade das abelhas. Se começarmos a tratá-las sem cuidado, causaremos danos a elas e a nós mesmos. O mesmo se passa com as pessoas. E não pode ser diferente, porque o amor recíproco entre as pessoas é a lei básica da vida humana. É verdade que uma pessoa não pode obrigar-se a amar da mesma forma como pode obrigar-se a trabalhar, mas isso não quer dizer que se pode tratar as pessoas sem amor, ainda mais quando se exige algo delas. Se você não sente amor pelas pessoas, fique quieto, cuide de si, das coisas, do que quiser, mas não das pessoas. Da mesma forma como só se pode comer sem causar dano e de modo proveitoso quando se tem vontade de comer, assim também só se pode tratar com as pessoas de modo proveitoso e sem causar dano, quando se ama.”

 

 

 

 

Autor: Rômulo Moreira é procurador de Justiça e professor de Direito Processual Penal da Universidade Salvador (Unifacs). Membro da Association Internationale de Droit Penal, da Associação Brasileira de Professores de Ciências Penais, do Instituto Brasileiro de Direito Processual e membro-fundador do Instituto Baiano de Direito Processual Penal. Associado ao Instituto Brasileiro de Ciências Criminais.


Você está prestes a ser direcionado à página
Deseja realmente prosseguir?
Atendimento