Aberratio criminis (ou aberratio delicti) quer dizer desvio do crime, instituto diverso da aberratio ictus[1]. Nesta, há erro de execução a persona in personam. Na aberratio criminis o erro incide na realização do tipo a persona in rem ou a re in personam (de pessoa a coisa ou vice-versa). No primeiro caso, o autor deseja ofender uma pessoa e atinge outra (ou ambas). No segundo, quer atingir um bem jurídico e ofende outro (de natureza diferente).
O Código Penal disciplina a aberratio delicti, com a denominação “resultado diverso do pretendido”, no art. 74:
“Fora dos casos do artigo anterior, quando, por acidente ou erro na execução do crime, sobrevém resultado diverso do pretendido, o agente responde por culpa, se o fato é previsto como crime culposo; se ocorre também o resultado pretendido, aplica-se a regra do art. 70 deste Código”.
Na aberratio ictus, se o sujeito quer lesar A e vem a ofender B, responde como se tivesse lesionado o primeiro; na aberratio criminis a solução é diferente, uma vez que a norma determina que o resultado diverso do pretendido seja punido a título de culpa. Podem ocorrer várias hipóteses:
1.º) O autor deseja danificar um objeto e atinge uma pessoa (aberratio criminis com resultado único). De acordo com a norma, responde pelo resultado produzido a título de culpa (homicídio ou lesão corporal culposos).
2.º) O agente pretende ofender uma pessoa e atinge uma coisa (aberratio criminis com resultado único). Como não há delito comum de dano culposo, o autor só pode ser responsabilizado por tentativa de homicídio ou tentativa de lesão corporal, conforme o elemento subjetivo[2].
3.º) O sujeito almeja ofender fisicamente uma pessoa, vindo a atingir esta e uma coisa (aberratio criminis com resultado duplo). Subsiste o resultado pessoal sofrido pela vítima, uma vez que não existe crime de dano culposo.
4.º) O agente quer atingir uma coisa, vindo a ofender esta e uma pessoa (aberratio criminis com resultado duplo). Existem, de acordo com a regra do art. 74, dois delitos: dano (art. 163 do CP) e homicídio culposo ou lesão corporal culposa em concurso formal[3], aplicando-se a pena do crime mais grave com o acréscimo de um sexto até metade.
O Código, ao afirmar que o autor responde pelo resultado pessoal[4] diferente do pretendido a título de culpa, nos casos de aberratio criminis com resultado único ou duplo, estaria prevendo uma hipótese de responsabilidade penal objetiva?
Não é de se aceitar a responsabilidade penal objetiva[5]. Temos três situações na aberratio criminis, tomando o exemplo singelo em que o autor, desejando quebrar uma vidraça, vem a atingir uma pessoa:
1ª) era ex ante absolutamente imprevisível a presença da vítima pessoal;
2ª) a presença do sujeito passivo era visível e previsível que viesse a ser atingido;
3ª) pouco importava ao autor, além de quebrar a vidraça, vir também a atingir a vítima.
Na primeira hipótese, se a presença da vítima era ex ante, absolutamente imprevisível, ausente a imputação objetiva[6], o autor não pode responder dolosamente pela morte ou lesão corporal. No segundo caso, deve responder, presente a imputação objetiva, por homicídio ou lesão corporal culposos, salvo a ocorrência de dolo eventual. No terceiro, cumpre que responda por homicídio ou lesão corporal com dolo eventual.
[1] A aberratio ictus está prevista no art. 73 do CP: “Quando, por acidente ou erro no uso dos meios de execução, o agente, ao invés de atingir a pessoa que pretendia ofender, atinge pessoa diversa, responde como se tivesse praticado o crime contra aquela…”.
[2] No tocante à coisa, sem prejuízo da reparação do dano na esfera civil.
[3] Art. 70 do CP.
[4] Morte ou lesão corporal.
[5] No caso, responsabilidade por crime culposo sem ter o autor agido com culpa.
[6] Ausência da voluntária criação de risco para a vítima.
* Damásio E. de Jesus
Presidente e Professor do COMPLEXO JURÍDICO DAMÁSIO DE JESUS