Autor: Luis Henrique Machado (*)
Há exatos 231 anos, em 1786, surgia mais um rebuliço no famoso pátio da Salpêtrière, em Paris. A multidão aglomerava-se no local aonde os suspeitos de perturbar a ordem pública eram enviados. Na ocasião, a vítima era Jeanne de La Motte, acusada pela trapaça conhecida como “o caso do colar de diamantes”.
Le massacre estava prestes a começar. As crianças eram erguidas sobre os ombros; as tricoteuses, mulheres envoltas em linhas e agulhas, injuriavam a vítima; isso tudo somado aos olhares fustigantes de uma plateia que clamava por justiça. A Condessa de La Motte foi acorrentada a um poste e, com as costas desnudas, passou a ser chicoteada publicamente por seu suposto crime. Ao fim, ela seria marcada por um ferro em brasa contendo a letra “V”, que significava voleuse — “ladra”, em francês. Em 1975, o filósofo Michel Foucault definiu esses espetáculos em sua obra Vigiar e Punir (Surveiller et punir) como suplício público, sendo uma forma de inibir aqueles que ousassem desafiar a ordem vigente.
Ao longo do tempo, as punições no processo penal ganharam novas feições. Todavia, apesar das conquistas iluministas no século XVIII, responsáveis por reformar a sociedade e romper com as sanções herdadas de tradição medieval, alguns resquícios permanecem até hoje, não saindo de evidência a espetacularização do processo, o vexame público, a destruição de reputações e, naturalmente, o julgamento antecipado do acusado.
Foi exatamente isso que presenciamos na semana passada. Diante de mais um vazamento, o Supremo Tribunal Federal foi constrangido a dar publicidade às delações feitas pelo grupo Odebrecht, procedimento que em todo caso não se justifica. Nunca é demais lembrar que a Lei 12.850/13 é cristalina em dispor que a abertura do sigilo das delações somente será permitida com o recebimento da denúncia.
A razão é simples: porque falece o interesse de que venham a público, neste momento, meras citações de terceiros, acusações de cunho político, episódios desconexos e despidos de provas que sequer apontam para o cometimento de crimes ou até mesmo de fatos prescritos, em que o Estado perdeu o direito à pretensão punitiva. Assim, é necessário que as delações passem primeiro pelo filtro da investigação. Se não sobrevier o pedido de arquivamento e sendo oferecida a denúncia, ainda restará saber se o tribunal entenderá ou não pela presença de indícios mínimos de autoria e de materialidade a partir das delações realizadas.
Proteção à privacidade e, sobretudo, à integridade moral do indivíduo era para ser, parafraseando Montesquieu, o espírito da lei. Em outras palavras, a norma preserva esses direitos até o tribunal decidir, por meio do recebimento de denúncia, que existem motivos suficientes para levar ao conhecimento da sociedade os fatos referentes àquelas pessoas que podem, em tese, ter cometido algum tipo de crime.
Neste momento, seria de bom alvitre ponderar os interesses, mas com primazia para a parte hipossuficiente do processo penal, ou seja, o investigado. Na hora certa, o interesse social emergirá naturalmente, disponibilizando-se assim os termos da delação, mas com uma diferença fundamental: somente depois do controle feito pelo tribunal sobre a pertinência da denúncia oferecida.
Esse balançar de olhos, preservando, por um lado, a dignidade do investigado e, por outro, o interesse social, é a grande virtude do constitucionalismo moderno, procurando sempre conciliar direitos, e não sacrificar um deles. Quem ganha com isso ao fim? Todos, tanto o indivíduo investigado como a sociedade.
Portanto, a decisão de retirar o sigilo e de conferir publicidade às delações não foi a mais acertada. Como acentua o magistrado francês Antoine Garapon, ao se divulgar uma informação cedo demais, dificulta-se o trabalho do Judiciário, começando o direito a ser esquecido, pois a Justiça passa a ser feita em praça pública, fora da mediação da regra e de um espaço adequado à discussão.
Apesar de tudo, cabe a todos nós confiar sempre no Supremo Tribunal Federal, esperando, ao menos, que as marcas intempestivas deixadas tanto em virtude do vazamento quanto por meio do levantamento do sigilo das delações não influam no destino e na sorte dos processos instaurados, em que pesem o suplício público, a ruína da credibilidade e a estigmatização indelével na vida dos investigados.
Nada muito diferente de como ocorria dois séculos atrás.
Autor: Luis Henrique Machado é advogado criminalista em Brasília. Pós-graduado, mestre e doutorando pela Universidade Humboldt de Berlim, na Alemanha. Professor de Processo Penal no Instituto de Direito Público (IDP) em Brasília.