Retrospectiva 2002: saiba como a Lei de Imprensa foi interpretada.

Luis Fernando Pereira Ellio*

Para a retrospectiva 2002, na nossa área de atuação majoritária (danos morais/imprensa), lembramos logo de Acórdão proferido pela D. Quinta Câmara de Direito Privado do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em sede de Agravo de Instrumento tirado de ação indenizatória promovida contra a Editora Globo S/A e o jornalista José Casado. A ação foi movida pelo ex-diretor da área internacional do Banco do Brasil e suposto caixa de campanha do candidato José Serra, Ricardo Sérgio de Oliveira.

Ainda que sem o trânsito em julgado (pendente de apreciação Recurso Especial retido), acreditamos que tal decisão judicial mereça divulgação, pelo seu ineditismo, e por constituir-se em valioso precedente jurisprudencial a auxiliar os advogados militantes na área de responsabilidade civil e imprensa.

Com o referido Acórdão, a Ré Editora Globo S/A, responsável pelo semanário “Época”, viu reconhecida a tempestividade de sua contestação, apresentada no prazo do artigo 297 do Código de Processo Civil (15 dias), em detrimento do prazo especial de 5 (cinco) dias para defesa previsto pela Lei nº 5.250/67 (Lei de Imprensa), na qual baseada a ação indenizatória (pedido de indenização por danos morais supostamente provocados pela veiculação de matérias jornalísticas tidas por caluniosas e difamantes).

Observe-se que se trata de caso onde o próprio Mandado de Citação já consignava o prazo de 5 dias para defesa – daí a raridade da decisão em comento (são relativamente comuns, ao contrário, as ações baseadas na Lei de Imprensa onde apesar de requerido pela parte autora a observação do prazo especial, o réu é citado para contestar no prazo geral de 15 dias).

Contestada a ação, pois, no prazo comum do Código de Processo Civil, o MM. Juízo de primeira instância determinou o desentranhamento da peça de defesa da Editora Globo, por intempestiva. Interposto o devido recurso de Agravo de Instrumento (A. I. nº 234.571-4/1 – São Paulo), foi a decisão singular reformada, com o recondução da contestação aos autos, pelo reconhecimento de que a regra insculpida no artigo 57, § 3º da Lei de Imprensa foi derrogada pela Constituição Federal de 1988.

Com a devida vênia, transcrevemos aqui a ementa, o resultado do julgamento e alguns trechos da parte dispositiva do V. Acórdão, da lavra do Eminente Relator Des. Rodrigues de Carvalho, para melhor compreensão dos seus fundamentos:

“DANOS MORAIS – LEI DE IMPRENSA – CONTESTAÇÃO – PRAZO – Não recepção pela atual Constituição Federal do artigo 57, § 3º, da Lei 5.250/67 – Contestação apresentada no trigésimo dia – Tempestividade – Recurso provido.

Vistos, relatados e discutidos estes autos de AGRAVO DE INSTRUMENTO nº 234.571-4/1, da Comarca de SÃO PAULO, em que é agravante EDITORA GLOBO S/A, sendo agravado RICARDO SERGIO DE OLIVEIRA:

ACORDAM, em Quinta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por maioria de votos, dar provimento ao recurso.

Trata-se de agravo de instrumento interposto pela co-ré de ação indenizatória de danos morais, ajuizada com apoio na Lei n° 5.250/67. Pretende a agravante obter a reforma da decisão que, reconhecendo a extemporaneidade de sua contestação, determinou o desentranhamento.

Esclarecendo que o autor, ora agravado, pleiteia indenização de danos morais que teriam sido provocados por veiculação de reportagens na revista “Época”, edições n° 146, 147 e 148, acrescenta ter protocolado sua contestação no trigésimo dia do prazo – duplicado em razão de serem dois réus com procuradores diferentes.

Todavia, apoiando-se no artigo 57, § 3º, da Lei n° 5.250/67, que prevê o prazo de apenas 5 (cinco) dias para a contestação, o douto Magistrado determinou o desentranhamento daquela peça.

Sustenta que o prazo previsto na lei especial não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, já tendo sido derrogado pelo artigo 297 do Código de Processo Civil, conforme dispõe o artigo 2º e seu § 1º da Lei de Introdução ao Código Civil.

Alega, também, violação ao princípio da ampla defesa e do contraditório, (…) Por fim, reclama a permanência dos documentos que instruem a contestação, que podiam ser apresentados a qualquer tempo. Pediu a reforma da decisão, com a juntada da contestação aos autos, ou pelo menos a permanência dos documentos que a instruem.

(…)

É o relatório.

Merece reforma a r. decisão recorrida. Com a vigência da Constituição Federal de 1988, que previu em seu artigo 5º, incisos V e X, a indenização por dano moral, imanente da honra e da imagem das pessoas inclusive, de forma ampla, como complemento do direito de resposta proporcional ao agravo, houve derrogação de diversos dispositivos da Lei de Imprensa, mormente no que concerne à ação civil (artigos 49 e seguintes, da Lei 5.250/67).

Assim, havendo a Constituição Federal ampliado o conceito de dano moral, – ultrapassando aqueles textos legislativos pátrios que já o concediam -, tomando-o o mais amplo possível, claro está que as normas processuais que amparavam o direito material alterado, constitucionalmente, também sofreram alteração.

Se regras como a dos artigos 51 e 52, da “Lei de Imprensa”, que determinam o arbitramento tarifário pelo juiz em indenização por dano moral, nas hipóteses de culpa, strictu sensu, como também o prazo decadencial do artigo 56, bem como o § 6° do artigo 57, que exigia, como condição para recorrer, o depósito pelo apelante da quantia igual à importância total da condenação restaram derrogadas, não mais incidindo, claro está que o procedimento previsto no § 3º, do artigo 57, mormente no que diz respeito ao prazo para contestar, fica também derrogado. Quanto às três primeiras hipóteses lembradas, citem-se, aqui, os seguintes acórdãos do E. Superior Tribunal de Justiça e desta Câmara:

“Responsabilidade Civil. Lei de Imprensa. Dano moral. Indenizado acima da limitação imposta pelo art. 52 da Lei de Regência. Revogação da norma em face da Constituição em vigor. Depósito do art. 57, § 6° da mesma Lei. Descabimento de sua exigência em montante superior ao limite máximo fixado pela lei em questão. Interpretação sistemática. Recurso desacolhido.

“O depósito prévio à apelação, no valor total da condenação imposta a título de indenização por dano moral advindo da atividade jornalística, foi concebido na vigência de um sistema que previa a indenização tarifada. Adotando-se nas instâncias ordinárias indenização que ultrapasse esse valor máximo, há que se ter, por força de interpretação sistemática do dispositivo que impõe o depósito, por inaplicável também tal exigência. ” (R.Esp. 39.886-SP, Rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA, v.u., j.22.09.1997, pub. D.J. 03.11.1997, in RSTJ 103/245)

“Recurso Especial Dano moral, Lei de Imprensa. Limite da indenização. Prova do dano. Prequestionamento.

“I. O dano moral é o efeito não patrimonial da lesão de direito, recebendo da Constituição de 1988, na perspectiva do relator, um tratamento próprio que afasta a reparação dos estreitos limites da lei especial que regula a liberdade de manifestação do pensamento e de informação. De fato, não teria sentido pretender que a regra constitucional que protege amplamente os direitos subjetivos privados nascesse limitada pela lei especial anterior ou, pior ainda, que a regra constitucional autorizasse um tratamento discriminatório.

“2. No presente caso, o acórdão recorrido considerou que o ato foi praticado maliciosamente, de forma insidiosa, por interesses mesquinhos, com o que a limitação do invocado art. 52 da Lei de Imprensa não se aplica, na linha de precedente da Corte.

“3. Os paradigmas apresentados para enfrentar o Acórdão recorrido conflitam, sob todas as luzes, com a assentada jurisprudência da Corte, que confina a prova do dano moral puro ao ato praticado, no caso, a publicação da notícia.

“4. A verba honorária, no combate da empresa recorrente, não foi enfrentada pelo Acórdão recorrido, não conhecido pelo Tribunal Estadual o adesivo interposto. Falta, portanto, o imperativo prequestionamento.

“5. O valor da indenização deve moldar-se pelo prudente arbítrio do juiz, adotada a técnica do quantum fixo, não havendo qualquer violação ao artigo 1547 do Código Civil nem, muito menos, ao artigo 49 do Código Penal, diante do critério adotado pelo Acórdão recorrido.

“6. Recurso especial da empresa conhecido, em parte, mas, improvido; recurso especial do autor não conhecido.” (R.Esp. 52.842-RJ, Rel. Min. CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO, v.u., j. 16.09.1997, pub. D.J. 27.10.97, in RSTJ 99/179)

“RECURSO – DESERÇÃO – Necessidade de recolhimento do quantum da condenação para apelar – Artigo 57, parágrafo 6°, da Lei 5.250/67 – Inaplicabilidade – Não recepção pelos incisos XXXV e LV, do artigo 5º, da atual Constituição Federal – Direito à ampla defesa, ao contraditório e ao acesso à Justiça, que englobam o duplo grau de jurisdição – Recurso conhecido.” (Apelação Cível n° 102.498.4/0, da Comarca de São Paulo, j. 8 de março de 2001, 5ª Câm. Direito Privado – TJSP)

“DANO MORAL – Lei de Imprensa – Indenização – Decadência – Artigo 56, caput, da Lei n°. 5250/67 — Não recepção pela atual Constituição Federal – Prazo regulado pelo Código Civil – Recurso provido para anular a r. sentença, afastando a decadência.” (APELAÇÃO CÍVEL nº. 118.859.4/0, da Comarca de SANTOS, j. em 16 de agosto de 2001, 5ª Câm. Direito Privado – TJSP).

Sendo assegurado o direito de resposta proporcional ao agravo, além da indenização por dano material e moral, ou à imagem, ou seja, a indenização por dano moral proporcional ao agravo, por conseguinte, da forma mais ampla possível, claro está que ao réu da ação deve-se também assegurar, ainda por força constitucional, o contraditório e a ampla defesa, também proporcional ao agravo que se lhe atribui. É que se há de ter em vista o tratamento igual às partes. Daí por que dever-se valer do procedimento comum em sua inteireza, não havendo motivo a restringir-se o prazo de defesa. Portanto, pode-se valer o autor, dependendo do valor da causa, tanto do procedimento ordinário, como do procedimento sumário. E pode, também, valer-se, ainda, do procedimento previsto para os Juizados Especiais Cíveis.

Em resumo, se a Constituição Federal permitiu maior amplitude ao direito de resposta do ofendido, quanto ao dano moral exigível inclusive, não se projeta justo restringir ao réu da ação, – que merece ter consignado em seu favor a ampla defesa, aqui, mais que nunca, como corolário lógico do due process of law -, não se lhe ampliando, também, seu direito de resposta, posto que prazo processual. Quando se amplia o direito de ação, tem de se ampliar, também, o direito de defesa, neste entendido, induvidosamente, o prazo para apresentá-la.

Conseqüentemente, ressalvados os doutos entendimentos contrários, de aplicar-se a regra do procedimento comum previsto no Código de Processo Civil ao caso presente no que diz respeito à resposta do réu, derrogado por força constitucional o parágrafo 3º, do artigo 57, da Lei 5.250/67, tendo-se, portanto, como tempestiva a contestação apresentada, dando-se provimento ao recurso. Daí o porquê de dar-se provimento ao recurso. Posto isso, dão provimento ao recurso, nos termos do V. Acórdão”.

A conclusão imediata é de que a utilização da Lei nº 5.250/67 (Lei de Imprensa) no campo da responsabilidade civil se encontra cada vez mais restrita. Não bastasse, portanto, a derrogação de outros preceitos da referida legislação pela atual Constituição Federal (como o prazo decadencial reduzido do art. 56; a limitação do valor indenizatório dos danos morais a 200 salários-mínimos – art. 52; e o depósito prévio do valor da condenação como requisito para o recebimento de recurso de apelação, previsto no art. 57, § 6º), vê-se agora que também a questão do prazo especial para defesa começa a ser enfrentada – desta vez em benefício dos órgãos de imprensa e seus advogados.

Revista Consultor Jurídico

Luis Fernando Pereira Ellio é advogado do escritório Camargo Aranha Advogados e Consultores

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