Autor: Pierpaolo Cruz Bottini (*)
Réus em processos penais não podem ocupar o cargo de presidente da República. Essa aparentemente será a orientação do Supremo Tribunal Federal nos autos da ADPF 402, se confirmada a maioria de votos estabelecida até o momento.
Um breve histórico: no dia 3 de novembro, o STF iniciou o julgamento da mencionada ação, de autoria da Rede Sustentabilidade, que tem o escopo de impedir que réus em ações penais em trâmite no STF possam ocupar cargos que estejam na linha sucessória ou substitutiva do presidente da República. Em outras palavras, aqueles que respondem a processos criminais na Suprema Corte não poderiam estar à frente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Supremo Tribunal Federal, pois todos eles podem, eventualmente, ocupar o cargo de Chefe do Poder Executivo Federal.
A linha de raciocínio: a Constituição Federal, em seu artigo 86, §1º, prevê que o presidente da República será suspenso de suas funções se o STF receber contra ele denúncia ou queixa-crime pela prática de crime comum. Ou seja, se instaurada a ação penal contra o presidente, ele não poderá exercer suas atribuições, e ficará afastado do cargo. Essa previsão, segundo a Rede, indica que a função de Presidente da República é “incompatível com a condição de réu”.
Pois bem, se o presidente da República não pode exercer suas funções quando réu em ação penal, a vedação se estende a todos aqueles que ocupem cargos na linha sucessória. No caso, os presidentes da Câmara, do Senado e do STF. Portanto, os ocupantes desses cargos também não podem ter contra si processos criminais em tramitação.
A maioria do STF já votou no caso, e concordou com a tese da Rede. Cinco ministros — a maioria absoluta dos presentes à sessão — entenderam que a Presidência da Câmara, do Senado e do STF “hão de estar ocupadas porpessoas que não tenham contra si a condição negativa de réu”.
A crítica
As premissas e as conclusões da ADPF seriam corretas, não fosse um detalhe. A Constituição Federal efetivamente prevê que o presidente da República será suspenso de suas atribuições se recebida denúncia pela prática de crime comum. Mas não de qualquer crime comum, mas apenas daqueles relacionados ao exercício de suas funções, ou seja, aqueles praticados durante o mandato, nos quais o agente usa do cargo de Presidente da República para a empreitada criminosa (por exemplo, corrupção passiva, quando o ato prometido está dentre as funções de Chefe do Executivo).
E se o presidente for acusado da prática de um delito sem relação com o exercício de suas funções, como, por exemplo, um crime financeiro, contra a ordem tributária, ou mesmo um ato de corrupção anterior à posse, quando ocupava outro posto? Pelo artigo 86 §4º da Constituição Federal, ele não poderá ser responsabilizado por esses atos estranhos às suas atribuições, na vigência de seu mandato. Assim, por exemplo, se o presidente era processado antes da posse por qualquer infração, tal procedimento será suspenso até que ele deixe o cargo.
Como aponta o ministro Gilmar Mendes, “nos casos de persecução criminal quanto aos atos estranhos ao exercício do mandato, sejam atos anteriores ou não, impõe-se a suspensão provisória do processo, com a consequente suspensão do prazo prescricional”[1]. Ou, como já pontuou o ministro Celso de Mello, ocorrerá a: “a cláusula de exclusão inscrita nesse preceito da Carta Federal (CF, artigo 86, §4º), ao inibir a atividade do Poder Público, em sede judicial, alcança as infrações penais comuns praticadas em momento anterior ao da investidura no cargo de Chefe do Poder Executivo da União, bem assim aquela praticadas na vigência do Mandato, desde que estranhas ao ofício presidencial (Inq. 672-6/DF).
Por isso, o posto de presidente da República pode ser ocupado por réu em ação penal. O que a Constituição não admite é o exercício do cargo por alguém processado por crime relacionado ao exercício das funções de Chefe do Executivo. Não há impedimento para que um réu processado por outro delito exerça — ou pretenda exercer — o cargo.
Sendo assim, aqueles que ocupam a linha sucessória do presidente (presidentes da Câmara, Senado e STF), podem assumir o posto, desde que não sejam réus denunciados por delitos relacionados ao exercício daquela função. Em geral, não o são, porque jamais ocuparam o cargo, ou se o fizeram, foi por interinidade.
Ao optar pela imunidade do presidente da República, ao torná-lo irresponsável por atos estranhos ao exercício de suas funções durante o mandato, o Constituinte assumiu a possibilidade de ter na Chefia do Executivo alguém investigado ou acusado desses delitos. E ao dispor dessa forma, estendeu tal possibilidade a todos aqueles que se encontram na linha sucessória.
Portanto, a premissa da ADPF, de que o cargo de presidente é incompatívelcom a condição de réu não se sustenta por inteiro, e justamente na parcela insustentável escora sua pretensão. Se o presidente pode ser réu por atos estranhos ao exercício de suas funções (restando o processo suspenso nesses casos), aqueles que estão na linha sucessória também podem ter contra si ações penais em aberto — sendo sempre salutar lembrar que nesses casos vigora a presunção de inocência, principio combalido, mas ainda vigente no ordenamento pátrio.
Desdobramentos políticos
Para além disso, a decisão pode ensejar insegurança jurídica por seus próprios fundamentos.
Como já exposto, a ADPF pretende que a condição de réu seja declarada incompatível com o exercício da Presidência da República. O voto do relator indica que: “decorre do sistema constitucional ser indevido quem se mostre réu em processo crime ocupar o relevante cargo de Presidente da República”. Para um dos ministros, “uma vez instaurado o processo criminal contra o Presidente da República, sobre sua pessoa passa a pesar condição subjetiva: a de ser réu em ação penal, tida pela Constituição como incompatível com a permanência no exercício da mesma Presidência da República”. Para outro: “Ultraja aludidos imperativos constitucionais (dignidade e moralidade) conceber que o Chefe da Nação permaneça normalmente no exercício de suas atribuições constitucionais, quando se encontra em trâmite contra ele ações penais ou de responsabilidade”.
Em outras palavras, o simples fato de alguém responder a processo criminal já o tornaria indigno do exercício do cargo de presidente da República.
Essa assertiva vai além do pretendido pela própria ADPF. Ao fixar tal orientação, o STF indicará não apenas que réus em processos penais devam ser excluídos da linha de sucessão ou substituição do Presidente da República. Pelas premissas expostas, também quem é réu em ações criminais em andamento não poderia ser candidato ao cargo, uma vez que não apresentaria as condições éticas básicas para seu exercício. Como os candidatos à presidente da República, em regra, não tem prerrogativa de foro, a instauração de processo penal contra eles será de competência do juiz de primeiro grau, que ganha — por via indireta — a atribuição de afastar do pleito presidencial o candidato que tenha contra si qualquer acusação pela prática de crime. Sem juízo de valor sobre a vantagem ou prejuízo de tal possibilidade, o fato é que não parece que o texto constitucional outorgue a tais magistrados essa atribuição.
Contra tal argumento, a Rede Sustentabilidade aponta que não seria qualquer denúncia recebida capaz de afastar alguém da linha sucessória do presidente da República. Segundo o partido, “apenas as denúncias recebidas pelo próprio Supremo Tribunal Federal têm este condão”, uma vez que este tribunal é muito mais criterioso e realiza um exame mais aprofundado sobre a admissibilidade da ação penal, “que não costuma ser feito nas instâncias ordinárias”. Por isso, apenas quem tem denúncia recebida pelo STF estaria impedido de constar na linha sucessória do cargo de presidente da República (ou de se candidatar a esse posto).
Louvável a preocupação do partido, mas o recebimento da denúncia é sempre ato de inauguração da ação penal, seja determinado pelo STF, seja pelo juiz de primeiro grau. Não há distinção qualitativa. O fato da Suprema Corte supostamente ser mais criteriosa ou cautelosa não torna o ato juridicamente distinto daquele praticado por outros magistrados. Portanto, se acatada a tese da ADPF, todo o recebimento de denúncia terá o efeito pretendido.
Ademais, tal distinção criaria injustiças concretas. Imaginemos dois senadores processados criminalmente pelos mesmos delitos. O primeiro tornou-se réu antes de ocupar o cargo, de forma que a denúncia contra ele foi aceita por um juiz de primeiro grau. Já em relação ao segundo, a denúncia foi recebida após o início do mandato, pelo STF. Ambos são réus. Ambos tem um processo penal contra si, por infrações idênticas. Não há razoabilidade em vedar um posto na linha sucessória apenas ao segundo, porque no caso dele o STF determinou o início da ação penal, e não impor a mesma restrição ao primeiro.
Seria mais plausível sustentar que ambos estão impossibilitados de assumir cargos na linha sucessória. Mas, nesse caso, voltamos ao problema inicial. Qualquer pessoa que tenha um processo penal aberto, por qualquer juiz, estará, em tese, impedida de ocupar ou concorrer ao cargo de presidente da República.
Não parece ser essa a interpretação mais adequada do texto constitucional, por todo o exposto.
Com a palavra, o STF.
Autor: Pierpaolo Cruz Bottini é advogado e professor de Direito Penal na USP. Foi membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária e secretário de Reforma do Judiciário, ambos do Ministério da Justiça.