Autores: Fábio Ramos, André Pereira e Caroline Zing (*)
Nos termos da legislação de regência, todos devem contribuir para a seguridade social do nosso país, como empresas, empregados, sócios etc. No caso das empresas, a contribuição incide sobre um percentual calculado com base na chamada “folha de pagamentos.
Contudo, em 2011, o governo instituiu uma nova (por assim dizer) modalidade ou vertente da contribuição: a Contribuição Previdenciária sobre a Receita Bruta (CPRB). Nesse sentido, foi determinado que empresas de alguns setores da economia passassem a contribuir para a Seguridade Social por meio da aplicação de uma alíquota sobre o valor de sua receita bruta, em substituição às contribuições incidentes sobre a folha de salários. Essa nova forma de cobrança foi denominada “Regime de Desoneração da Folha”, já que o intuito por trás da medida seria justamente, em tempos de crise financeira do país, reduzir os encargos sobre a mão-de-obra, desestimulando o desemprego.
Com a Lei 13.161/2015, o regime passou a ser facultativo: as empresas deveriam manifestar sua opção preferida no início do ano (CPRB ou contribuições sobre a folha de salários), sendo que a opção adotada seria irretratável para todo o ano-calendário.
Ocorre que, em que pese a opção de diversas empresas pelo recolhimento da CPRB, válida e irretratável para todo o ano de 2017, o Governo editou a Medida Provisória nº 774/2017, publicada em 30/03/2017, que revogou os dispositivos que previam a possibilidade de contribuição pelo regime de desoneração.
Em outras palavras, o mesmo poder que determinou que a opção pelo regime de recolhimento da contribuição previdenciária seria irretratável por todo o exercício, “retratou” a opção realizada pelos contribuintes da CPRB, compelindo-os, em pleno decorrer do exercício (1º.7.2017), a voltar para o regime ordinário de recolhimento da contribuição sobre a folha de salários.
A produção de efeitos da Medida Provisória 774/2017, projetada para o primeiro dia do quarto mês subsequente à sua publicação, teve a evidente finalidade de evitar que os contribuintes alegassem a violação da anterioridade nonagesimal, , procurando fazer crer, com isso, que teriam sido observados os pressupostos constitucionais para a revogação da CPRB.
A questão que colocamos, porém, diz respeito ao seguinte aspecto: a regra da anterioridade nonagesimal, por si só, é suficiente para conferir a necessária segurança jurídica ao contribuinte frente a modificações de sua carga tributária? Ou haveria um outro conjunto de princípios a serem observados pelo Poder Público em casos específicos nos quais a observância da regra da anterioridade não seja suficiente para conferir segurança ao contribuinte?
Em nossa opinião, a regra da anterioridade nonagesimal não esgota o conjunto de normas que visam à proteção do contribuinte diante da majoração ou instituição de tributos, notadamente se considerarmos que, acima de tais regras, está o princípio da segurança jurídica (que impõe um estado de calculabilidade e previsibilidade que, muitas vezes, poderá não ser atingido apenas e tão somente com base na regra da anterioridade).
É o que debatemos a seguir.
A revogação trazida pela Medida Provisória 774/2017, objeto de discussão no Poder Legislativo, notadamente no que tange à definição do seu marco inicial, tem preocupado os empresários em razão do curto espaço de tempo até a sua entrada em vigor (1º/7/2017). As principais queixas, aliadas ao aspecto financeiro, dizem respeito à imposição do Governo Federal de compelir as empresas a retornarem ao regime ordinário neste exercício, quando se tratava de opção irretratável.
Abaixo, analisaremos se o abalo da confiança dos contribuintes em face do Fisco foi de intensidade suficiente para recorrer à sua proteção à luz do princípio da segurança jurídica. Aprofundamos a análise para apontar alguns institutos a serem invocados para assegurar o direito dos contribuintes optantes pela CPRB de permanecer em tal regime até o final de 2017.
Vertrauenschutz
Princípio da proteção da confiança legítima. Trata-se de regra que busca resguardar o valor da segurança jurídica frente à ação estatal eventualmente desenfreada ou sem as cautelas suficientes, protegendo as expectativas legitimamente incorridas pelos particulares em função das ações e condutas do Estado.
Invoca-se a proteção da confiança legítima como fator a atenuar as sequelas que a aplicação mecânica do princípio da legalidade poderia causar, resguardando, de um lado, aqueles que agiram de boa-fé e responsavelmente e desestimulando, do outro, o comportamento irresponsável ou desleal das autoridades públicas.
O princípio da confiança legítima comporta, portanto, um sentido que tende a sobrepor a segurança jurídica à legalidade, especialmente em virtude de modificações legislativas bruscas que não assegurem garantias suficientes de previsibilidade e transição.
Sem dúvidas, a conduta do Governo de compelir as empresas a alterar o seu regime de tributação no curso do exercício representa quebra não apenas de expectativa legítima, mas, efetivamente, de confiança do contribuinte no Poder Público. A segurança jurídica, nessas circunstâncias, deve se sobrepor à aplicação cega e mecânica da Medida Provisória 774/2017.
Tu quoque e venire contra factum proprium
“Até tu” e a vedação ao comportamento contraditório. Dentre as regras gerais de Direito não escritas, encontram-se o tu quoque, que consiste na proibição de que a parte que não tenha cumprido com suas obrigações possa exigir da outra parte o cumprimento das obrigações que lhe cabiam, e o venire contra factum proprium, que consiste na vedação do comportamento contraditório.
No âmbito do Direito Tributário e, especificamente, no caso da CPRB 2017, estes institutos levam à necessária indagação: é admissível que o próprio ente que criou determinado regime de tributação e estabeleceu o caráter irretratável de sua opção por todo o exercício de um ano, o revogue no curso deste ano? Certamente se está diante de comportamento contraditório, com prejuízo da parte mais fraca. Ressalte-se que não se trata de hipótese em que o contribuinte se aproveita de eventual benefício fiscal que vem a ser revogado. Ao contrário, trata-se de todo um regime de tributação devidamente previsto por lei.
Do outro ponto de vista
O Superior Tribunal de Justiça já examinou diversas vezes a possibilidade de migração de regimes tributários (lucro presumido para o lucro real, apuração de crédito-presumido de IPI para regime substitutivo, entre outros) na perspectiva do contribuinte como parte interessada.
Nessas ocasiões, a corte entendeu ser “inviável a migração de regime fora dos prazos estabelecidos, porquanto restringida não apenas pelos imperativos legais impostos na lei, mas também pelos imperativos de organização administrativa e orçamentária. A alteração de regime produz efeitos bem mais amplos do que a simples forma de apuração. Certamente a opção é deixada à escolha do contribuinte, mas há regras de forma e de tempo para seu exercício, cabendo-lhe certificar-se de que a opção que vem a fazer é a mais benéfica. A opção por regime menos vantajoso não lhe confere direito à revisão, nem mesmo no exercício a que se refere, e menos ainda com efeitos retroativos. A jurisprudência desta Corte firma-se no sentido de repelir a alteração de regimes tributários perpetrada ao livre anseio do contribuinte, em descompasso com a legislação de regência, pois não se pode conceber que somente o contribuinte seja beneficiado na relação jurídico-tributária sem que também se preserve os interesses do Fisco, especialmente quando já considerada a livre manifestação de vontade do optante”.
Ora, a mesma escolha consciente, observância à legislação, consideração aos amplos efeitos na alteração de regime e preservação dos interesses da parte contrária esperada dos contribuintes nas hipóteses acima deve ser – e em dimensões muito maiores – aguardada do Poder Público. Da mesma forma, espera-se que a jurisprudência seja coerente com o entendimento anteriormente manifestado e o aplique de forma ainda mais incisiva ao Fisco, com ênfase na preservação dos interesses do contribuinte, tal qual foi feito na situação invertida.
O caso Súmula 584
A Súmula 584 do STF traz o seguinte enunciado: “ao imposto de renda calculado sobre os rendimentos do ano-base, aplica-se a lei vigente no exercício financeiro em que deve ser apresentada a declaração”. Com base nesse entendimento, o STF reafirmava a possibilidade da União majorar o imposto de renda apurado em 31 de dezembro com base em leis editadas no mesmo ano-base em que auferidos os rendimentos, sem que isso violasse a regra da anterioridade, uma vez que o fato gerador do tributo somente ocorreria no último dia do ano.
Todavia, ao examinar o caso envolvendo a majoração do imposto de renda sobre o lucro das exportações incentivadas, o Plenário do STF entendeu que a modificação introduzida somente poderia produzir efeitos em relação ao lucro apurado no ano-base subsequente. Isso porque, nesse caso específico, a anterior redução do imposto de renda teria tido motivação extrafiscal, levando a que a empresa, no curso do ano, apurasse o lucro de forma segregada. Assim, ”[a] possibilidade de alteração de alíquotas, após o Poder Público ter alcançado o seu desiderato com o incentivo, quebra o liame básico da confiança que deve nortear as relações comerciais”.
Também nessa hipótese, o STF levou em consideração a insuficiência da regra da irretroatividade (limite constitucional explícito ao poder de tributar) para conferir, no específico caso envolvendo a majoração do imposto de renda incidente sobre o lucro das operações incentivadas, a necessária segurança jurídica do contribuinte.
Do acima exposto, temos que a regra constitucional da anterioridade nonagesimal não esgota, em si, o conjunto de normas tendentes à imposição de limites ao poder de tributar, notadamente no que diz respeito à observância da segurança jurídica (sob as perspectivas da previsibilidade e da mensurabilidade da tributação).
Nesse sentido, a Medida Provisória nº 774/2017, cujos efeitos foram projetados para o primeiro dia do quarto mês subsequente à sua publicação, é inconstitucional no que diz respeito à sua aplicação no ano-calendário de 2017, tendo em vista a manifesta ofensa ao princípio da segurança jurídica.
Vale sempre lembrar que o poder de tributar do governo não consiste em livre faculdade de arrecadar dinheiro aos cofres públicos acima do Estado de Direito. O Poder Público que cria as regras do jogo está também sujeito às regras que criou. Caso se tratasse de contrato firmado entre a Administração e administrado, não estaria a Administração obrigada aos termos do contrato que celebrou? Quanto mais se tratando de lei imposta pelo Poder Público aos contribuintes, deve o Fisco honrar os termos que ele próprio determinou.
Autores: Fábio Ramos é advogado, formado pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, mestre em Direito Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e possui MBA Executivo pelo Instituto de Ensino e Pesquisa. É sócio fundador do escritório Inglez, Werneck, Ramos, Cury e Françolin Advogados.
André Pereira é advogado, formado pela Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo e possui especialização em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário. É professor convidado do curso de Gestão Tributária do Instituto Nacional de Pós-Graduação. É consultor do escritório Inglez, Werneck, Ramos, Cury e Françolin Advogados.
Caroline Zing é advogada, formada pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Possui pós-graduação em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Direito Tributário. É associada do escritório Inglez, Werneck, Ramos, Cury e Françolin Advogados.