Por Julio César Gaberel de Moraes Filho
A hierarquia e a disciplina, pilares das Forças Armadas, não raramente são deturpadas por alguns comandantes militares, cujo poder punitivo, também chamado poder disciplinar, tem como motivo único de existência a manutenção da coesão e da disciplina da tropa. Inúmeras vezes tal poder é utilizado de forma errônea, seja pela incapacidade do comandante lidar com determinadas situações, para satisfazer interesses pessoais, ou quaisquer outros motivos, ilegais ou contrários à ética.
Mas afinal, o que é disciplina? Uma das definições encontradas no dicionário diz que disciplina é “observância estrita das regras e regulamentos de uma organização civil ou estatal”.[1] Segundo o RDE,[2] “A disciplina militar é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todos e de cada um dos componentes do organismo militar”. Note-se que, de maneira diversa, aquele que não cumpre a lei, regulamento, norma ou disposição, este sim é um indisciplinado.
Semelhante definição encontra-se no Regulamento Disciplinar para a Marinha:[3]
Disciplina é a rigorosa observância e o acatamento integral das leis, regulamentos, normas e disposições que fundamentam o organismo militar e coordenam seu funcionamento regular e harmônico, traduzindo-se pelo perfeito cumprimento do dever por parte de todo e de cada um dos componentes desse organismo.
O Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (RDAER) não define a disciplina, mas pelo contexto em que o termo é utilizado subentende-se que o conceito é similar ao das demais Forças: cumprimento rigoroso das leis em sentido amplo, englobando regulamentos e quaisquer normas aplicáveis aos militares.
Não há dúvida de que a disciplina é de vital importância para diferenciar um exército organizado de um mero bando de homens armados, regra que vale desde a antiguidade até os dias atuais. Para compelir o subordinado a ser disciplinado, os regulamentos militares prevêem sanções que vão desde uma advertência verbal até prisão ou processo para exclusão, e mesmo que necessário, muitas vezes o poder sancionador tem sido invocado por comandantes de forma deturpada, a seu bel-prazer e à margem dos limites constitucionais.
A aplicação justa e estritamente necessária do poder é uma característica que diferencia o comandante líder em sua essência, que sabe conduzir sua tropa mantendo-os unidos e disciplinados, ao contrário daquele que abusa na aplicação de sanções, justamente por faltar-lhe habilidades de liderança.
A finalidade da sanção administrativa, militar ou não, não deve ser castigar o infrator, mas desestimular a prática pelos demais:[4]
Evidentemente, a razão pela qual a lei qualifica certos comportamentos como infrações administrativas, e prevê sanções para quem nelas incorra, é a de desestimular a prática daquelas condutas censuradas ou constranger ao cumprimento das obrigatórias.
Supondo que o comandante “A” utiliza técnicas de liderança para conduzir seus subordinados, transmitindo confiança e respeito pautado na ética e na justiça; e o comandante “B”, ainda que possua boa oratória, vasto conhecimento técnico e experiência na função, mas sem a habilidade necessária para lidar com o poder disciplinar que lhe é confiado pela instituição; ainda que ambos tenham as mesmas prerrogativas, o comandante “A” certamente terá pouca ou nenhuma necessidade de punir algum subordinado, e ainda que o faça, será em casos extremos e dentro da legalidade, na medida do justo, sem condescendência mas sem rigor excessivo, ao contrário do comandante “B”, que utilizará o poder sancionador para compelir os subordinados a cederem às suas idiossincrasias. As punições impostas pelo comandante “B” em geral estão envoltas de ilegalidade, como desídia na apuração da suposta transgressão disciplinar (ou contravenção disciplinar, como é chamada na Marinha), produção de documentos impertinentes na tentativa de dificultar a defesa e parcialidade no julgamento. Certamente falta-lhe o senso de justiça e a habilidade para não deixar-se envolver por interesses mesquinhos, e em geral as punições aplicadas por este tipo de comandante vêm acompanhadas de uma dose de assédio moral.
Os regulamentos disciplinares prevêem a possibilidade de recurso aos escalões superiores, que irão analisar a legalidade dos atos praticados havendo inclusive súmula do STF a respeito.[5] Entretanto nem sempre os recursos administrativos surtem o efeito desejado, sendo necessário que o militar punido busque abrigo no Poder Judiciário, o que é mal visto por alguns, notadamente militares de maior patente, por supostamente trazer descrédito à instituição:[6]
O risco está caracterizado pela possibilidade de que o militar transgressor da disciplina, ao procurar a tutela do Judiciário, sirva de exemplo para que outros militares sigam o mesmo procedimento, trazendo o descrédito ao funcionamento das instituições castrenses e causando uma lacuna no emprego da disciplina enquanto aqueles contenciosos não forem dirimidos.
Na verdade, ocorre com muito mais vigor um descrédito nas instituições castrenses quando um comandante abusa de seu poder sancionador, aplicando punições de maneira arbitrária. O prejuízo trazido por esse comandante é imensurável: alguns de seus subordinados seguirão o caminho da subserviência com receio de serem punidos; outros buscarão a garantia de seus direitos no Judiciário; a tropa como um todo ficará desmotivada.
O Estatuto dos Militares cita diversos preceitos de ética militar, sendo que um deles deveria estar emoldurado em um quadro na sala do comandante, para nunca ser esquecido: “ser justo e imparcial no julgamento dos atos e na apreciação do mérito dos subordinados”.[7]
O senso de justiça e a busca da legalidade em todos os atos deve nortear qualquer processo ou procedimento administrativo, mas em especial os disciplinares, por produzir conseqüências que vão além da pena propriamente dita, como por exemplo atrasando por anos uma promoção.
Na prática, no âmbito castrense existe certa ideologia quanto ao termo “disciplina”, sendo considerado “indisciplinado” todo aquele que questiona atos de superior hierárquico; mas sendo comprovado o abuso de poder, além da responsabilização cível ou penal que porventura possa surgir, o comandante deverá responder também na esfera administrativa, pois a partir do momento que contraria lei, norma ou regulamento, punindo arbitrariamente o subordinado, este comandante é quem passa a ser o indisciplinado, pondo em risco um dos pilares das Forças Armadas.
[1] MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. Companhia Melhoramentos, São Paulo, 1998.
[2] Regulamento Disciplinar do Exército – Decreto nº 4.346/2002, art. 8º caput.
[3] Decreto nº 88.545/1983, art. 2º.
[4] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. Malheiros Editores, São Paulo, 2007, p. 814.
[5] Súmula nº 473 do STF: “A administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornam ilegais, porque deles não se originam direitos […]”.
[6] NASCIMENTO, Paulo Roberto Tavares. A essencialidade das punições disciplinares privativas da liberdade no âmbito das Forças Armadas brasileiras. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, nº 2836, 07 Abr 2011. Disponível em:
[7] Lei nº 6.880/1980, art. 28, V.
Julio César Gaberel de Moraes Filho é militar, bacharel em Direito, pós-graduado em Gestão da Administração Pública e em Direito Militar.