Se eu soubesse que ele era meu pai …

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka

Palestra proferida no II Congresso Brasileiro de Direito de Família, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, com apoio da Ordem dos Advogados de Minas Gerais, em 28.10.1999.

Ouvi recentemente esta frase – “Se eu soubesse que ele era meu pai, minha vida teria sido, quiçá, diferente…” – em um destes especiais canais de televisão a cabo que mostrava uma bela reportagem a respeito dos “filhos de Hollywood”. Aliás, penso que era mesmo assim o nome da seqüência, embora não tenha certeza: “Kids of Hollywood”. Mas enfim, o escopo fundamental da reportagem, como se pode imaginar, era demostrar como foi a vida, normalmente escrita pelas mais diferentes e desconcertantes formas de angústias e frustrações, de crianças – hoje adultos – que tiveram a má sorte de nascer de famosas pessoas registradas na calçada da fama, mas completamente despreparadas para a assunção da condição de pais e de mães famosos de crianças desprotegidas.
Esta pessoa, cuja frase tanto me marcou, era a filha, hoje sexagenária, do belíssimo Clark Gable, o insuperável galã de “…E o vento levou”, mas que não revelou à criança a verdade que ela procurou, provavelmente, por toda a sua vida, talvez com grande ansiedade e sofrimento.
O depoimento daquela senhora – cujo olhar revelava, como o espelho do passado, a sua fragilidade infantil, a sua decepção adolescente, a sua descrença a respeito da hipótese de ser feliz – informava também que o silêncio a que houvera sido submetida a respeito de sua raiz genética paterna, havia sido imposto por sua mãe, ela também atriz destacada do iluminado ambiente hollywoodiano. Mas, de tudo, o mais doloroso, pareceu-me, foi o fato de que sua mãe, por ocasião de seu nascimento – e a gravidez já havia sido devidamente ocultada à imprensa – entregou-a aos cuidados de um orfanato. Depois de seis meses, segura da preservação de seu segredo e segura da mantença de sua etérea, ingênua e doce figura junto ao seu público, a atriz retorna ao orfanato, agora já sem tantos segredos e subterfúgios, mas, ao contrário, devidamente acompanhada por fotógrafos e jornalistas para – que espetacular cena, cenários e “script” – “adotar” a criança que houvera sido concebida em seu próprio ventre…
Mentira sem paradigma e hipocrisia maior, iguais a estas, só se conheceu ao tempo dos romanos, à época em que os filhos havidos fora do casamento não tinham nenhum valor, lugar ou direitos, no contexto das famílias de então.
Isto porque, sabe-se, “no seio das famílias romanas, houve sempre um repúdio à idéia de filhos ilegítimos, já que estes não podiam desempenhar o papel determinado, pela religião, ao filho.”1
Com efeito, em Roma, como informa Fustel de Coulanges, “o laço de sangue isolado não constituía, para o filho, a família; era-lhe necessário o laço do culto. Ora, o filho nascido de mulher não associada ao culto do esposo pela cerimônia do casamento, não podia, por si próprio, tomar parte do culto. Não tinha o direito de oferecer o repasto fúnebre, e a família não se perpetuaria por seu intermédio.” (Cidade Antiga).2
A farsa romana a que me referi descortinava-se porque, lembremo-nos, Roma conheceu apenas um modo destinado a contornar os obstáculos legais para regularizar a situação de inferioridade à qual eram relegados os filhos espúrios. Este modo era a adoção e, por meio dela, o filho adentrava à família, não aut natura, mas aut iure, em condição de igualdade com os demais irmãos.3
Contudo, tantos séculos depois e em terras tão distantes, como é o caso da capital americana do cinema, o fenômeno se repetiu, para que a criança tivesse sido repudiada não apenas pelo seu famoso pai, mas também pela sua famosa mãe. Mas, o absurdo maior revela-se pelo fato de ter sido, ainda, “usada” literalmente pela sua adorável mãe, uma vez que, instalada a criança no venerando lar da atriz pelas portas da adoção, carreou-lhe maior fama, contribuindo para aumentar consideravelmente a legião de fãs, encantados com a “grandeza e o despojamento da alma daquela bela e talentosa mulher”…
A reportagem indica, na continuação, que a dor maior que não foi ultrapassada, sequer vencida, nem mesmo minorada, foi o fato de terem todos, sua mãe e a sociedade próxima, permanecido em odioso silêncio a respeito da verdadeira origem daquela criança, quer pela linhagem a matre, quer pela linhagem a patre. Parece que, com o tempo lhe foi revelada, não sei por quer caminho ou forma, sua origem ascendente pelo lado materno, mas jamais soube, até a morte de Clark Gable, que ele era seu pai biológico. Conta a senhora em questão que, ao completar quinze anos, encontrou-se com ele, e extasiou-se como qualquer outra adolescente que se encontrasse na presença de tão famoso e sedutor homem. Ela relata que ele a tratou muito bem, foi atencioso e carinhoso, mas a verdade não lhe foi revelada…
Esta pessoa, por toda a vida, andou a procura de seu pai, pois certamente sua fantasia avisava ao seu inconsciente que se o encontrasse, seus problemas maiores advindos da horrível rejeição e da hedionda farsa cometida em nome do “amor materno”, talvez fossem minorados, atenuados, acariciados, chorados, paparicados e, quiçá, expurgados.
Mas não lhe disseram e ela viveu assim, desejando encontrar seu pai e desejando que ele fosse lindo, famoso, sedutor e encantador como o modelo masculino de maior significação, à época, o famoso ator Clark Gable…
Aquele seu olhar de hoje, ao qual já me referi antes, e que se marcou na minha memória como triste e desconsolado olhar, penso que não a abandonará até seu leito de morte… Nada está a indicar que sua tristeza resida no fato de ter sido afastada da percepção de seu quinhão hereditário, por ocasião da morte de seu pai famoso. Não foi o que busquei adivinhar naquele olhar, senão seu próprio e efetivo interesse de ter tido um pai! Ela, que provavelmente também não teve verdadeiramente uma mãe…
O direito que não pôde exercer, àquele tempo, certamente foi o direito de buscar a sua identidade biológica paterna, mas foi, também, o direito de buscar, na figura do pai, o refúgio e fortaleza adequados para aqueles seus momentos em que as feridas precisavam ser lambidas, curadas, e ninguém como ele poderia melhor fazê-lo.
Penso ser este, em primeiras palavras, antes e excludentemente de qualquer outra conseqüência ou derivação de natureza patrimonial, o conteúdo e perfil deste direito da personalidade que se tem procurado chamar de “direito ao pai”.
Não quero dizer, com isto, que esta busca ou certeza da paternidade encerre-se apenas em situação de natureza moral e íntima, correspondente somente à questão de estado e derivada do direto exercício de um direito da personalidade, e, com isso, afastar a natural ampliação do campo jurídico no que respeita aos demais direitos subjetivos e aos deveres decorrentes do estado de filiação. Não. Mas quero dizer, isto sim, que entendo possível esta ampliação do campo de valores essenciais, enquanto objeto do direito em questão, e que as suas conseqüências jurídicas – no plano da patrimonialização principalmente – têm um caráter apenas secundário, se contempladas em face da gigantesca extensão do que significa, na essência, este formidável direito que é o direito de se buscar o pai.
Ou não estará submersa em razão a conclusão de Caio Mário da Silva Pereira 4 quando afirma que pouco importa se a perquirição judicial da paternidade venha ou não seguida de pedido pecuniário; este em nada afetará a natureza daquela, pela razão muito óbvia – diz o insuperável mestre – de que na ação investigatória o objeto colimado é a declaração da existência de uma relação de parentesco e, se conseguido isto, estará finda.
Por isso tudo, afastada a exclusividade patrimonial como centro e cerne da investigação, desejo considerar que, se por um lado, está em perfeita repleção de razão João Baptista Villela 5, ao referir que “pensar que a paternidade possa estar no coincidir de seqüências genéticas constitui, definitivamente, melancólica capitulação da racionalidade crítica neste contraditório fim-de-século”, por outro lado, e como no exercício simples de se verificar a outra face da moeda, também me parece estar replena de certeza e de verdade a idéia de que alguém possa pretender tão apenas investigar a sua ancestralidade, buscando sua identidade biológica pela razão de simplesmente saber-se a si mesmo.
Isto tudo porque, segundo penso, e independentemente da apuração ou verificação de conseqüências outras, que corram ao viés da pretensão-âmago do investigante, existe inscrito no coração de cada homem, desde sempre e desde a sua auto compreensão a respeito de sua origem, um anseio de conhecer a si mesmo melhor, por meio dos indícios certos e dos indicadores científicos de sua raiz genética. Um direito, portanto e antes, puramente natural, cujo exercício nem sempre pode sucumbir à face de construções humanas, ainda que precipuamente bem intencionadas, como é o caso da mais que famosa e controvertida presunção legal que costumamos singelamente chamar de “pater is est”.
Mas volto a falar do “direito ao pai”, este direito que, além de dotado da anterioridade própria dos direitos encravados na realidade e na vida dos homens desde sempre, na verdade deve ser lido e pensado de modo muito mais elástico do que apenas direito ao genitor masculino. O que quero dizer é que recepciono melhor a idéia de que ele devesse ser compreendido como “direito aos pais”, incluindo-se aí, também e por certo, o direito à mãe.
Sabemos todos que a mãe tem estado ao lado de suas crianças em número de vezes sempre muito maior que os genitores do sexo masculino, conforme demonstram as estatísticas; isto não se perde de vista, apesar do caso-exemplo ou hipótese-verdade com que iniciei esta minha locução. Mas bastava que se conhecesse um único caso, como o da filha de Clark Gable, por exemplo, para que eu já não pudesse mais estar autorizada a desdenhar o comentário: por direito ao pai deve-se entender o direito atribuível a alguém de conhecer, conviver, amar e ser amado, de ser cuidado, alimentado e instruído, de se colocar em situação de aprender e apreender os valores fundamentais da personalidade e da vida humanas, de ser posto a caminhar e a falar, de ser ensinado a viver, a conviver e a sobreviver, como de resto é o que ocorre – em quase toda a extensão mencionada – com a grande maioria dos animais que compõem a escala biológica que habita e vivifica a face da terra.
Raros são os animais que entregam suas jovens crias à própria sorte, mas quando o fazem, não os movem razões vazias ou cruéis, senão o costume ancestral que caracteriza a espécie, hipótese que, nem de longe, assemelha-se à circunstância humana. Os humanos, ao contrário, naturalmente devem permanecer junto à cria recém nascida, e assim perdura a situação, por um tempo significativamente maior que nas hipóteses de outros animais.
Entre nós, e sob a égide dos comandos constitucionais contemporâneos, destaca-se enfaticamente esta postura nova e expurgatória da filiação unilateral, de sorte a admitir e facilitar, ao filho, a busca aos seus pais, mediante o exercício de um sadio direito de estado que tem, como escopo precípuo, o afastamento da discriminação odiosa, resultante da distinção quanto à origem. Um direito indisponível e tão pleno que está incumbido, como atributo essencial de sua individualidade, a filhos advindos de qualquer relacionamento natural entre pessoas que não sejam casadas entre si, ou que sejam solteiras, ou divorciadas, ou viúvas, ou separadas ou, até mesmo, que se encontrem vinculadas pelos laços da consangüinidade.
Este é o legítimo interesse da criança, quer me parecer, ainda que desejando não correr o risco – espero – de estar apenas delirando sobre as superstições tão ao desgosto de meu consócio neste painel, o magistralmente culto e sensível professor mineiro, João Baptista Villela 6 – a quem rendo, de público, a minha homenagem, revelando a minha profunda admiração e respeito, pelo fato de ser quem é e como é, para o Direito Privado brasileiro – mas, ao contrário do delírio, como dizia, espero estar apenas deixando que as aves da fantasia e da imaginação, estas sim sadias, estejam desenvolvendo seus vôos em singulares torneios à volta de um tema tão doce, comovente e humano quanto este, o do direito que cada um de nós tem de buscar, se quiser, a verdade a respeito de sua vinculação genética a um homem ou a uma mulher, ainda que não seja a estes que sua alma ordene chamar de pai e de mãe.
Mesmo àqueles que já têm a seu favor reconhecido um estado de filiação que o liga a um – digamos assim, apesar de acre a palavra e em desconformidade com meu gosto pessoal – outro pai, quer por força de ter sido havido na constância do casamento de sua mãe, quer por força de um espontâneo reconhecimento, prefiro circunscrevê-los, ao lado de todos os demais aos quais falte mesmo a atribuição jurídica de um pai, no rol dos que podem exercer esta pretensão de buscar o embrionário liame genético, compreendendo esta busca como o objeto do “direito ao pai”.
Por isso, imagino que este direito da personalidade esteja disponível a um elenco maior de filhos, além daqueles que se determina chamar de filhos extramatrimoniais, alcançando também os que foram presumidamente qualificados como filhos matrimoniais, desde que houvessem tido, primeiro, o cuidado de obter a desconstituição de seu estado, relativamente ao marido de sua mãe.
Imagino que este direito, ainda, possa se encontrar disponibilizado àqueles filhos que tenham sido espontaneamente reconhecidos por pessoa não vinculada biologicamente a eles próprios, bem como pelos filhos adotivos, assim como pelos havidos por meio de procriação assistida, e ainda, na abrangente categoria dos extramatrimoniais, também os mais que rejeitados, os mais que ocultados, os mais que incômodos, diga-se assim, filhos incestuosos.
Em cada um dos casos, certamente, concorrerão distintos pressupostos de admissibilidade e, por via de conseqüência, distintos efeitos outros além do comum a todos os casos, que é a declaração do estado filial.
Desta forma, em alguns casos, seria imprescindível que se promovesse, antes, a desconstituição do estado filial anterior, como na hipótese de ocorrência da filiação presumidamente matrimonial. Se por nenhuma outra razão fosse, seria, ao menos, pelo fato de que a presunção benéfica apurada pelo legislador no interesse do filho se desintegraria completamente no momento em que o próprio interessado, até aqui tão cuidadosamente protegido pelo comando presuntivo da lei decidisse, por si mesmo, descortinar a verdade genética a respeito de sua origem. Deve ser dado a ele o direito de fazê-lo, se assim desejar, como ilação natural de sua condição humana e como inferência máxima de sua dignidade.
Mesmo na hipótese de perquirição da origem genética em face de alguém que, não sendo o pai biológico, nem marido da mãe da criança, tenha operado o reconhecimento da paternidade, quero entender devesse ocorrer como pressuposto de viabilização da pretensão, a desconstituição do vínculo parental anteriormente gerado. Nestes casos, a exigência de atendimento a tal pressuposto se concretizaria por força de outro fundamento, pois, nesta hipótese, o estabelecimento da filiação não teria ocorrido como decorrência da presunção atribuível ao legislador, mas teria ocorrido como conseqüência da escolha perpetrada pelo pai afetivo, que num gesto de puro amor – quem sabe? – promovera a falsidade jurídica para alcançar o escopo da filiação de fato, mas para ele verdadeira.
Muito dolorosa esta última hipótese, para ser assim tão serena e descuidadamente tratada? Penso que não, se organizo o raciocínio de acordo com aquela mesma tônica ou toada de antes, a saber: o direito existe e se disponibiliza para quem quiser exercê-lo, bastando querer, bastando optar, se este desejo ou esta opção se consagrarem, verdadeiramente, como o interesse melhor ou mais adequado do investigante. E então, considerem os senhores, mesmo sem querer deixar de ter como pai afetivo tão amantíssima pessoa, talvez o interesse jurídico prevalecente quanto ao exercício do “direito ao pai”, fosse exatamente este que se desdobra na versão “direito à identidade genética”.
Aliás, senhores, um dos mais bonitos acordãos a respeito desta amplitude do direito ao pai, considerando-se a mais vasta e possível extensão do que este direito realmente signifique, é aquele que teve como relator S.Exa. o Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, que reafirma que “saber a verdade sobre sua paternidade é um legítimo interesse da criança; um direito humano que nenhuma lei e nenhuma Corte pode frustrar”7, exatamente porque refere a uma das mais altas e valoradas expressões da condição e da dignidade humanas.
Prossigamos, para enfrentar, quiçá, o mais difícil de todos os endereçamentos quando a temática circunflui o cerne do “direito ao pai”, para atribuí-lo, também, aos filhos extramatrimoniais incestuosos.
Perguntados de chofre, responderemos, todos nós – ou a maioria de nós – que eles, é claro, têm igualmente o direito ao conhecimento de sua ascendência biológica. Respondido, o assunto sempre falece, pois o constrangimento que o envolve parece conter uma tal espécie de maldição que é mais conveniente dela não falar tanto… Enfim, o velho e milenar repúdio que a ordem jurídica perpetrou contra tais criaturas, havidas de relações incestuosas, esteve impregnado sempre deste desdém social, ou desta fingida indiferença, quase um desconhecimento voluntário, que sempre envolveu tão delicado assunto.
Desde muito longe, no tempo, a lei já se enunciava de sorte a repugnar e a intolerar os casos de incesto, como ocorreu, por exemplo, no antiqüíssimo Código de Hamurabi que prescreveu: “Se alguém, depois de seu pai, se deitar sobre o seio de sua mãe, serão os dois queimados”.
Mas nem sempre foram, no passado mais remoto, exogâmicas8 as famílias; ao contrário, percorreu a história da humanidade uma trajetória bastante longa até que se estabelecesse a correlação entre fertilidade e sensualidade, a correlação entre o ato sexual e a procriação, sempre como resultado de uma situação de experimentação, ou seja, de um conhecimento que se produziu empiricamente. Esta descoberta, que deve ter sido produzida à volta do quarto ou do quinto milênio antes de Cristo, provocou imensa mutação nas estruturas sociais, religiosas e comportamentais da humanidade, de molde a implicar na assunção de regras que reorganizassem o matrimônio e a procriação, buscando afastar o malefício ou o desconforto da relação incestuosa, para evitar a impureza e a mácula das famílias, já que incesto – que deriva do latim incestus – significa impuro, não casto.9
No entanto, quer a mitologia, quer a história, quer a própria Bíblia, estão todas estas fontes a se referir, à exaustão, a episódios de incesto, alguns famosos como o caso de Zeus que, disfarçado de serpente, manteve relação sexual com sua mãe Réia, ou de Cleópatra que se casou com seu irmão Ptolomeus XII, ou de Abraão que se casou com sua meia-irmã Sara, para citar apenas alguns.
Mas, enfim, pululem à vontade os exemplos históricos, bíblicos ou mitológicos, a verdade é que há, e houve sempre uma verdadeira aversão e um intranqüilizador temor em face do incesto, aversão e temor estes profundamente arraigados na natureza humana. Poder-se-ia dizer que “a proibição do incesto é, hoje, daqueles freios inibitórios que se encontram incrustados no nosso ego, os quais automaticamente passamos à nossa descendência, mesmo sem a averiguação dos seus motivos e conseqüências”.10
Verdadeiro tabu, na linguagem da psicanálise, funciona exatamente assim, quer dizer, como um tecido normativo não escrito que impõe rigorosa noção de limites e de proibido, valendo por si só, algumas vezes, como sanção à própria transgressão, pois costuma atormentar o violador, além do violado, como um eficiente instrumento de tortura. Mas nem por isso, curiosa e tristemente, é possível afirmar que o incesto in casu, se dá por uma única vez, quer dizer, de modo isolado e esporádico. Mas, ao contrário, as estatísticas mostram que 70% das relações incestuosas têm a duração de mais de um ano.
Aliás, é sempre o espantoso mundo das estatísticas aquele que mais nos constrange, pois desperta o sentido para a visão do gigantismo da situação esdrúxula, nem sempre rara… Assim, e conforme estão alinhados estes dados estatísticos, recolhidos há cerca de seis ou sete anos11, [“30% das mulheres que procuram ajuda psiquiátrica, foram vítimas de incesto; que 5% das crianças enviadas à terapia, estão vivenciando uma história de incesto; que cerca de 50% das adolescentes que fugiram de casa foram vítimas de incesto; que 74% dos presos que estão cumprindo pena por algum crime ou por violação dos costumes, tiveram algum tipo de envolvimento sexual intrafamiliar…”]
Ora, que questão difícil é esta de se indagar a respeito de eventual “direito ao pai” deferido a uma criança que tenha sido havida em decorrência de uma relação sexual incestuosa… e mesmo aquela que tenha sido vítima do incesto paterno! Em alguns casos – ou até mesmo na maioria deles, quer me parecer – melhor estaria sendo realizado o direito se a criança fosse mantida longe de seu genitor, violador do tabu do incesto por ocasião de sua concepção ou, afora a hipótese de ser incestuosa a filiação, que houvesse sido ele, no lar, o próprio violador sexual do filho ou filha.
Relembrando que o direito ao qual nos referimos hoje, enquanto direito da personalidade, é de lata extensão, de conteúdo plural, de proporção vária, que ele se compõe de múltiplos sub-direitos, faculdades ou faces de um espectro maior, escalonados em matizes e graduações distintas, e considerando que por força desta multifariedade, o seu titular pode exercê-lo por partes, independentemente de atrair, de uma só vez, todo o extenso rol de suas peculiaridades, talvez não fosse tão arriscado considerar que o filho incestuoso, como por hipótese se está a examinar, exercesse seu “direito ao pai”, se assim desejasse, apenas no que dissesse respeito a um interesse exclusivamente colimado.
Por isso, tenho pensado que seja possível incluir entre as múltiplas faculdades que compõem a vasta essência deste direito, mais esta, que é a referente ao direito de escolher ou selecionar os aspectos que quer ver exercidos, limitando a extensão do campo de incidência do exercício, para buscar, no “direito ao pai”, aquilo que importar diretamente ao interesse jurídico em questão.
Assim, se o filho pretender o conhecimento de sua ancestralidade genética, poderá obtê-lo, independentemente de se disponibilizar ao exercício do direito de ser visitado, por exemplo, ou de conviver com qualquer de seus genitores, se a convivência lhe causar mais estragos que benefícios, como é o caso de tantas hipóteses da vida real, entre elas, e por certo, aquilo que se vinha considerando antes, a respeito dos filhos do incesto.
Enfim, senhores, este punhado de idéias que hoje exponho neste II Congresso Brasileiro de Direito de Família, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, e que poderiam estar melhor despendidas não fossem as naturais limitações do tempo e as naturais limitações de minha capacidade, trago-as para que as debatamos, pois um direito grande, vital e essencial como este – o “direito ao pai” – só terá o seu perfil e meandros perfeitamente delimitados se houver, como agora, provocação com a semeadura de idéias.
Encerro relembrando a situação de todos os filhos que têm “direito ao pai” – de uma forma ou de outra e conforme a expressão do direito que pretendam exercer – para regravar em minhas preocupações estórias como a da sexagenária filha de Clark Gable que teve a coragem de descortinar ao mundo a sua dor, suas frustrações e seus anseios, bem como a de todos os demais filhos, matrimoniais ou extramatrimoniais, e entre estes os incestuosos, os quais, por vezes, não têm a mesma coragem de expor as entranhas de seu sofrimento.
Encerro ouvindo, sempre em meu cérebro ouvindo, o clamor destes filhos: “Ah, se eu soubesse que ele era meu pai…”
E isto me comove.

Notas:
1. Cf. HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. “Dos filhos havidos fora do casamento”, in Revista Jurídica da FADAP – Faculdade de Direito da Alta Paulista, nº 1, 1998, ps. 167- 185.
2. Idem.
3. Idem.
4. PEREIRA, Caio Mário da Silva. “Reconhecimento de paternidade e seus efeitos”, 5ª ed., Ed. Forense, 1996, p. 52-53.
5. VILLELA, João Baptista. “O modelo constitucional da filiação: verdade e superstições.”, in Revista Brasileira de Direito de Família (IBDFAM), nº 2, jul-ago-set 1999, ps. 121- 142.
6. V. o mesmo e perfeito estudo concluído pelo professor ilustre e já referido em nota anterior, a de nº 5, especialmente suas assertivas de conclusão, à p. 142.
7. REsp. nº 4.987-RJ, rel.Min.Sálvio de Figueiredo, STJ, 4ª T., por maioria, DJU de 28/10/91, RSTJ 26/378.
8. Se diz exogâmica a sociedade em que os matrimônios se efetuam com membros de tribos estranhas ou, se dentro da mesma tribo, com os membros de outras famílias ou de outro clã. O contrário se diz endogâmica.
9. Sobre o incesto, do ponto de vista da psicanálise, cf. COHEN, Cláudio, “O incesto – um desejo”, Casa do Psicólogo Livraria e Editora Ltda., São Paulo, 1993; e sobre as origens e história da paternidade, cf. DUPUIS, Jacques, “Em nome do pai: uma história da paternidade”, Martins Fontes, São Paulo, 1990.
10. GAVIÃO DE ALMEIDA, José Luiz, “Filiação incestuosa – reconhecimento”, tese oferecida à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1985, para a obtenção do grau de Mestre.
11. COHEN, Cláudio, “O incesto…”, cit., Introdução.

Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka é Doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Professora-doutora de Direito Civil da Faculdade de Direito da USP e da Faculdade de Direito de Bauru. Diretora da Região Sudeste do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.

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