Renato Flávio Marcão
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo.
Mestre em Direito Penal, Político e Econômico
Professor de Direito Penal, Processo e Execução Penal (Graduação e Pós)
Sócio-fundador e Presidente da AREJ – Academia
Rio-pretense de Estudos Jurídicos, e ex-Coordenador
do Núcleo de Direito Penal, Processo Penal e Criminologia.
Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP)
Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim)
Membro do Instituto de Ciências Penais (ICP)
Membro do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP)
Membro do Instituto de Estudos de Direito Penal e Processual Penal (IEDPP)
Membro da Comissão Regional de Bioética e Biodireito da OAB –
São José do Rio Preto-SP
Autor dos livros: Lei de Execução Penal Anotada (Saraiva, 2001);
Tóxicos – Leis 6.368/1976 e 10.409/2002 anotadas e interpretadas (Saraiva, 2004),
e, Curso de Execução Penal (Saraiva, 2004).
SUMÁRIO: 1. Considerações preliminares. 2. A realidade normativa penal dos últimos tempos. 3. A reforma penal pontual que se avizinha. 3.1. sobre o crime de sedução. 3.2. sobre o crime de adultério. 4. Conclusão.
1. Considerações preliminares
Para o pensamento clássico, conforme CABRAL DE MONCADA, “a lei não é a fonte principal do Direito. Embora a lei tenha coexistido com o Direito este consistia sobretudo num conjunto de soluções obtidas através da actividade prudencial dos grandes juristas a partir de um património axiológico comum. Esta situação vai manter-se até a idade moderna. É só a partir de então que a lei positiva passa a ocupar o lugar central nas fontes do Direito com todas as conseqüências que daí se retiram”.[1]
A moderna concepção da lei _ segundo o mesmo jurista _ “assenta num novo entendimento das coisas. O homem deixa de ser o destinatário passivo de uma ordem transcendente e passa a ser o autor de uma nova ordem a constituir racionalmente. Se a construção da sociedade humana é agora obra do próprio homem, isso quer dizer que ela é, por um lado, livre pois que já não depende da imitação de uma ordem transcendente e, por outro lado, racional pois que é o exercício da razão crítica o paradigma do comportamento humano”.[2]
Não obstante o inegável acerto das ponderações acima, por aqui, na realidade pátria elas devem ser admitidas somente em parte, pois desde longa data o que se tem notado é que o homem comum, enquanto membro do conjunto social, passou a ser alvo inerte das imposições normativas, e no mais das vezes não pode ser visto como “autor de uma nova ordem a constituir racionalmente”.
Não obstante o modelo democrático que adotamos, no mais das vezes as leis não atendem as expectativas da maioria, e quando assim ocorre é por casuísmo.
A dinâmica dos fatos que movimentam a vida cotidiana inegavelmente determina novas realidades a todo instante. Os avanços científicos e tecnológicos impõem questionamentos constantes e rompem a rotina dos pensadores fincados no passado e que não têm olhos para o presente, determinando a evolução das reflexões e muitas vezes o abandono de conclusões já encobertas definitivamente pela poeira lançada com o sopro dos novos tempos.
A proliferação do conhecimento com a saudável vulgarização das diversas formas de cultura; o acompanhamento em tempo real dos acontecimentos ao redor do planeta em razão dos avançados meios de comunicação; o acesso quase ilimitado a informações que impulsionam padrões e estilos de vida; tudo, sem sombra de dúvida, leva à certeza de que vivemos em um tempo onde mudanças são freqüentes e assim continuarão, cada vez mais céleres.
Não se pode negar que a dinâmica da vida impulsiona a dinâmica normativa, e nessa ordem de idéias, sabendo que as leis devem ser duráveis, porém, não imutáveis, o sistema normativo precisa seguir os passos da evolução cultural; econômica; tecnológica, social etc. Precisa seguir a evolução humana na dinâmica da vida em sociedade.
A reclamada evolução do ordenamento jurídico, todavia, deve ser cautelosa; pautada pela prudência. Deve ser fruto refletido da inteligência e da responsabilidade ditada por realidades sólidas, o que inviabiliza e condena a prática de legislar por casuísmo ou pontualmente.
É necessário lembrar ainda a sempre oportuna lição de Cesare Beccaria [3] quando dizia que “uma boa legislação não é mais do que a arte de propiciar aos homens a maior soma de bem-estar possível e livrá-los de todos os pesares que se lhes possam causar, conforme o cálculo dos bens e dos males desta existência”. E arrematava o ilustre filósofo: “Desejais prevenir os crimes? Fazei leis simples e evidentes”.
2. A realidade normativa penal dos últimos tempos
Não é de agora que juristas e operadores do Direito, bem como setores os mais variados da sociedade reclamam mudanças no Código Penal. Também não é de data recente que o mesmo vem sofrendo reformas pontuais e casuísticas, no mais das vezes equivocadas, o que tem se traduzido em enorme desserviço à sociedade e às Instâncias Judiciárias, já que estas acabam suportando o peso dos volumes de milhares de processos e recursos que não existiriam fosse a lei elaborada com melhor técnica.
Reiteradas vezes o legislador penal tem dado mostras de uma preocupante falta de conhecimento sistêmico do universo normativo, o que tem levado a equívocos os mais variados, todos condenáveis pela desídia evidenciada.
Não bastasse, pior que as mudanças legislativas equivocadas são as reiterações; a persistência em erros medíocres.
Nos últimos tempos o Legislador Penal não vem aprendendo com os erros para melhorar. Com os erros, aprendeu a errar e parece que gostou, tanto que tem reiterado, não obstante os alertas freqüentes dos doutrinadores e as gestões constantes de Instituições que se preocupam com a desejada e imprescindível melhora da produção normativa.
3. A reforma penal pontual que se avizinha
Em razão do Projeto de Lei nº 1.308/2003 que atualmente tramita na Câmara dos Deputados se avizinha nova mudança no Código Penal, e então é preciso deitar reflexões sobre do embrião normativo para saber se o Legislador Penal tomou o caminho certo.
Referido Projeto é originário da Sugestão nº 78/2002 da Comissão de Legislação Participativa e segundo se tem argumentado busca corrigir distorções onde o Código Penal suscita juízos de valor e tem caráter discriminatório em relação à mulher no que pertine à moral sexual.
Segundo se pretende serão revogados vários dispositivos que se encontram no Título VI, que cuida “Dos Crimes contra os costumes”; será dada nova redação ao Capítulo V do Título VI (que passará para: “Da exploração e do tráfico sexual”), e sofrerão modificações de redação o § 1º do art. 227 e o caput do art. 231, todos do Código Penal.
Das alterações buscadas, a descriminalização da sedução (art. 217 do CP) e do adultério (art. 240 do CP) é que constituem alvo das breves considerações a que nos dedicamos.
3.1. sobre o crime de sedução
O polêmico crime de sedução está previsto no art. 217 do CP, e segundo a redação típica estará configurado quando o agente “seduzir mulher virgem, menor de dezoito anos e maior de catorze, e ter com ela conjunção carnal, aproveitando-se de sua inexperiência ou justificável confiança”.
Nos dias atuais o crime em questão é de difícil configuração em razão da necessária conjugação das elementares que o integram para que tal se verifique. É preciso que a vítima seja virgem; menor de dezoito e maior de catorze (se for menor de catorze o crime cogitável será o de estupro); inexperiente e ingênua, ou que deposite justificável confiança em seu sedutor.
De longa data a melhor doutrina reclama a revogação do tipo penal em comento. A jurisprudência também tem mostrado a mesma tendência e não é de hoje.
Logo se percebe que a previsão legal não está ajustada aos dias atuais.
A perda da virgindade pela mulher já não precisa da proteção penal.
Há mais. Qualquer proteção que se queira estabelecer sobre o objeto jurídico da tutela penal em questão (a integridade ou virgindade da menor) prescinde de tipificação conforme o art. 217, haja vista o teor das disposições contidas nos artigos 213 e 214, protetoras da liberdade sexual contra violência ou grave ameaça, e as regras dos arts. 215 e 216 que cuidam das hipóteses em que são empregados meios fraudulentos. Acrescente-se, por derradeiro, que o art. 218 se presta à proteção da moral sexual dos adolescentes de ambos os sexos, já que o tipo penal se refere a “… pessoa maior de catorze e menor de dezoito anos…”.
Como se vê, não há justificação lógica ou jurídica para a permanência do crime de sedução no ordenamento jurídico, e bem por isso a revogação do tipo penal é bem vinda.
3.2. sobre o crime de adultério[4]
O crime de adultério está previsto no art. 240 do Código Penal, e tem por objeto jurídico da tutela penal “a organização jurídica da família e do casamento”.[5]
Mesmo reconhecendo a importância da proteção jurídica da família e do casamento, é de se concluir que hoje não mais se justifica a proteção penal outorgada pelo legislador de 1940.
Não se trata de render homenagens ao adultério. O que é forçoso reconhecer é que o casamento e a família encontram outras formas de proteção no ordenamento jurídico, a exemplo do que ocorre no art. 1.566, inc. I, do Código Civil, que determina o dever de fidelidade recíproca entre os cônjuges.
Conforme assevera Claus Roxin [6], o direito penal é de natureza subsidiária. “Ou seja: somente se podem punir as lesões de bens jurídicos e as contravenções contra fins de assistência social, se tal for indispensável para a vida em comum ordenada. Onde bastem os meios do direito civil ou do direito público, o direito penal deve retirar-se”.
O direito penal deve ser considerado a ultima ratio da política social, o que demonstra a natureza fragmentária ou subsidiária da tutela penal. Só deve interessar ao direito penal e, portanto, ingressar no âmbito de sua regulamentação, aquilo que não for pertinente a outros ramos do direito.
As regras previstas na legislação civil são apropriadas e suficientes, e sendo assim, a pretendida revogação do tipo penal em que se encontra o crime de adultério é medida juridicamente saudável e condizente com a realidade em que vivemos.
4. Conclusão
Sendo a lei o paradigma racional do comportamento humano, ela deve estar em harmonia com a realidade em que vivemos.
Nessa ordem de idéias, merece aplauso o Projeto nº 1.308/2003 [7] no que tange a intenção de retirar do ordenamento punitivo as condutas que hoje definem os crimes de sedução e adultério.
Notas:
1. Luís S. Cabral de Moncada. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 7.
2. Luís S. Cabral de Moncada. Ob. Cit., p. 31.
3. Dos delitos e das penas. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1983, p. 92.
4. “Duas mulheres acusadas de cometer adultério foram condenadas à morte por apedrejamento na Nigéria. Elas recorrerão da decisão, informou um grupo de direitos humanos hoje. Uma das mulheres, de 18 anos, alegará que foi prometida em casamento a um homem que ainda é menor de idade e que a união não foi consumada. Neste caso, a pena não seria a morte, mas uma surra de chicote. A outra, com 25 anos, alegará que a sentença não foi justa pois ficou grávida de um dos dois ex-maridos” (Nigerianas são condenadas à morte por adultério. Sexta, 22 de outubro de 2004, 17h16. http://noticias.terra.com.br/mundo/interna/0,,OI407952-EI294,00.html).
5. DELMANTO, Celso, e outros. Código Penal comentado, 6ª ed., Rio de Janeiro, Renovar, 2002, p. 505.
6. Problemas fundamentais de direito penal. Lisboa: Vega, 1986. p. 28.
7. É certo que mudanças pontuais à legislação Penal não são bem vindas, e melhor seria um esforço concentrado para uma completa revisão do sistema que compreende as normas penais. Não é menos certo que o Projeto nº 1.308/2003 contém algumas imperfeições, contudo, tais não serão alcançadas nas considerações a que o presente trabalho se propõe.