Segredo de Justiça e processo eletrônico, uma relação estremecida

Autor: Omar Kaminski (*)

 

 

Ao pesquisar quase que diariamente por decisões sobre internet e tecnologia, especialmente sobre o Marco Civil da Internet nos mecanismos de busca de jurisprudência dos tribunais, bem como nos Diários Oficiais eletrônicos, é comum nos deparamos com questões interessantes e intrigantes envolvendo o acesso a informação jurídica por parte dos chamados operadores do Direito e também pelos leigos.

É também um bom termômetro para o estado da tecnologia no que diz respeito ao processo eletrônico.

Um dos mais robustos exemplos que podemos colher atualmente de “calcanhares de Aquiles” pela contínua exposição de seus efeitos colaterais, bastante notáveis, é o segredo de Justiça. Ou sua inobservância, ou observância apenas parcial.

Devemos partir de algumas premissas, tais como: deve o segredo de Justiça ser tratado como regra ou como exceção? Certamente como exceção, com prevalência do Princípio da Publicidade dos Atos Processuais.

E não podemos confundir segredo de Justiça com sigilo. Neste, nem mesmo as partes têm acesso às informações processuais e documentais. Já o segredo de Justiça, temos como regra que o acesso seja restrito no todo ou em parte.

Ontem e hoje
Deixemos também clara a diferença do segredo de Justiça que há (havia?) nos autos físicos e o que há nos autos virtuais. Nos físicos, o segredo era controlado tão somente pelos funcionários no balcão ou pelos que têm acesso ao arquivo físico. Nos virtuais, isso se dá por regras de computação e pela segurança da informação.

Ou seja, na época em que se esquentava a barriga nos balcões dos fóruns, o segredo de Justiça servia a grosso modo a dois propósitos: 1) respeitar o sigilo, a honra, a dignidade e a privacidade das partes; e  2) evitar que informações fossem reproduzidas indevidamente em máquinas de xerox e potencialmente distribuídas pelos mais diversos motivos. Ou pior, talvez uma chantagem para divulgar fatos que não deveriam ser públicos.

O alcance, antes da internet e em seus primórdios, era quase sempre limitado, e rastrear os “culpados” era de certo modo mais fácil.

Hoje em dia, resguardar a intimidade das partes ainda é o moto principal, mas, com a informatização e a internet, o alcance de eventual divulgação como notícia de fato jurídico se amplificou, e muito.

Casos concretos
Creio que quase todos os causídicos já se depararam com dificuldades ou problemas envolvendo o segredo de Justiça, especialmente no processo eletrônico. Ou senão irão se deparar.

Exemplificando:

1) notícia de processo em segredo de Justiça publicada em 2009 no site do Ministério Público Federal, contendo apenas as iniciais do réu — e que, segundo consta, acabou absolvido em 2015. Este requereu, por meio de e-mail, a remoção da republicação de site jurídico alegando que a combinação de suas iniciais, cidade, estado e atividade/profissão constantes da notícia permitem identificá-lo com facilidade. Segundo defende, por estar em segredo de Justiça, não deveria nem ter sido noticiado. Deseja ver respeitado seu suposto “direito de ser esquecido”.

Notícia de 2009 no site do MPF. Omitimos os elementos potencialmente identificadores.

2) cliente procurou o profissional afirmando que o nome completo de sua filha, então menor impúbere, estava sendo vinculado ao processo judicial de divórcio e as informações relacionadas (no caso, os despachos) foram divulgadas abertamente na internet, ao alcance dos buscadores mais conhecidos (e também dos menos).

Processo em trâmite no RJ. Omitimos os nomes completos, inclusive da menor ao final.

O processo estava marcado como “segredo de Justiça”, mas os efeitos “reais” ou ao menos desejáveis e previsíveis da proteção via “segredo de Justiça” não se verificaram. Informações desabonadoras sobre as partes foram parar na internet, vinculadas ao nome da menor e potencialmente alcançáveis por meio de uma busca textual. O dano moral é evidente, mas como fica a cadeia de responsabilização?

Ineficiência e desvirtuamento
Em que pese todo um regramento sendo colocado em prática[1], ilegalidades e “descuidos” continuam acontecendo diariamente. E nem sempre são fáceis de solucionar, ao menos rapidamente, como tentamos exemplificar. E, para piorar, existe o famigerado “efeito Streisand”[2] — algo que se pretendia omitir, dependendo do teor, acaba por ter repercussão indesejada.

Precisamos de uma melhor equalização, de soluções que melhor atendam ao artigo 93, IX da Constituição Federal, artigo 189 do novo CPC, parágrafo 6º do artigo 11 da Lei de Informatização do Processo Judicial (Lei 11.419/06) e Resolução 121/10 do CNJ, entre outras leis e normas.

O tema poderia ser analisado até sob o manto do Marco Civil da Internet, Lei 12.965/14, que tem como princípios da disciplina do uso da internet a “proteção da privacidade” e a “proteção dos dados pessoais”, na forma da lei (artigo 3º, II e III). Além dos direitos e garantias previstas no artigo 7º, enquadram-se os tribunais como potenciais provedores de aplicações? Mas essa é outra discussão…

Para piorar, o instituto parece estar se desvirtuando, como vem acontecendo também com a própria proteção ou defesa da privacidade. Tem sido pedido a esmo e concedido com muita frequência — e, claro, em muitos casos se justifica, e não é esse o problema, ou o maior deles. Mas, sim, quando não é concedido ou é desrespeitado por imperícia, imprudência ou negligência por aqueles que deveriam ser seus guardiões.

E, por outro lado, prejudicando a transparência e o livre acesso a informações que deveriam ser públicas como regra. Inclusive dificultando o trabalho de profissionais jurídicos, que muitas das vezes precisam ter acesso a determinado conteúdo que deveria estar disponível, mesmo que diante de algumas condições ou regras.

Tratamento inadequado

Aviso padrão de segredo de Justiça no sistema Projudi do TJ-PR.

Além de desvirtuado, o fato é que o instituto do segredo de Justiça está tendo tratamento inadequado, e não uniforme em se tratando de processo eletrônico. Ademais, a ausência de unidade quanto aos sistemas utilizados pelos tribunais de diferentes estados é um grande complicador, especialmente para aqueles menos afeitos às questões tecnológicas. Assim:

  • alguns sites de tribunais permitem a consulta pública, outros limitam, e outros simplesmente impedem, senão dificultam;
Aviso padrão no site do TJ-CE.
  • mesmo tendo a íntegra do acórdão ou sentença sido publicada no Diário da Justiça, não estará acessível em formato digital nos andamentos (“Visualização indisponível. Pendente de ciência das partes”, no caso do TJ-DF) ou na busca jurisprudencial;
Aviso padrão no site do TJ-RS.
  • processos em que o juiz reviu a necessidade de segredo de Justiça, por ausência dos requisitos. Em vários casos, o sigilo não é baixado, dependendo de “lembrete” de interessados (eu mesmo já solicitei algumas vezes diretamente aos respectivos cartórios, por telefone!), pois precisa ser feito manualmente;
  • os nomes são reduzidos às suas respectivas iniciais, porém nos despachos ou sentenças são apontados os nomes das partes na íntegra, publicados nos DJs e acessíveis pelos mecanismos de busca;
Despacho de processo em primeiro grau de jurisdição em SP, conforme publicado no DJe.
  • informações que deveriam ser sensíveis ficam disponíveis em simples andamentos de processo, como número de CPF das partes e de seus procuradores (só ficou faltando o CPF do julgador…);
Despacho de processo que envolve a atual primeira-dama do país no DF.
  • e no caso de informações sensíveis de processos que tenham sido publicadas indevidamente no Diário da Justiça, ou cuja íntegra esteja disponível nos andamentos para consulta pública, como “estancar a sangria” da divulgação indevida de forma rápida e eficaz?
  • como impedir, se for o caso, que informações de processos em segredo de Justiça “vazem” na imprensa, por exemplo, antes mesmo de sua publicação no DJ?

Soluções possíveis?

Aviso padrão no Projudi do TJ-GO.

A disponibilidade total dos autos não traz mais problemas, já que a publicidade é a regra. Nem mesmo o sigilo total — implementam-se regras para que fique restrito apenas a quem de Direito.

O problema é justamente o “meio-termo” — sigilo parcial, desejável e necessário em vários casos, e que tem sido muito mal implementado, ou é mesmo de difícil implementação —, especialmente quando cada tribunal resolve implementar de modos diferentes, e com resultados práticos diferentes. Sem contar com eventual falha do elemento humano…

O assunto é complexo, multifacetado e pede soluções mais técnicas do que jurídicas, e algum grau de padronização (vide previsão expressa no artigo 14 da Lei 11.419/06), sem que nos afundemos em uma “burocracia digital”. Como por exemplo:

  • passar a exigir sempre senha, uma forma de autenticação que fique registrada, uma habilitação? Login e senha ou certificado digital? Isso já acontece em alguns sistemas, mas não em todos;
Mensagem padrão no e-SAJ do TJ-SP.
Aviso padrão no site do TJ-RJ, exigindo a obtenção de uma senha provisória.
  • não indexar os resultados nos buscadores? Não é suficiente, enquanto os despachos forem também publicados nos Diários da Justiça na internet…

Faltam “boas práticas” em segredo de Justiça. Falta efetivamente seguir o disposto nas políticas de segurança e informações[3], que não existem apenas “para constar”.

Segurança da Informação
Uma das conclusões possíveis é que o Poder Judiciário não só não está ainda preparado para as TICs, como não está suficientemente preparado para a segurança da informação. Isso porque nem deve ter se dado conta de todo o potencial do Big Data. Ainda bem, melhor nem levantar a lebre…

E quanto aos advogados? Armazenam os processos e informações dos clientes no iCloud, Dropbox, OneDrive? Usam senhas fortes? Criptografia? Entendem a importância da necessidade de sigilo das informações de seus clientes?

Há um nítido despreparo, e um descompasso, e urge um tratamento mais rigoroso das informações sensíveis (especialmente dados pessoais e informações sigilosas) contidas nos processos eletrônicos. Há necessidade de, no mínimo, mais atenção em relação ao manuseio e armazenamento das informações por todos os envolvidos.

Ademais, a segurança da informação nunca será de fato efetiva enquanto não houver uma conjunção entre o investimento técnico e o treinamento de pessoal.

De nada adianta sistemas robustos e de elevada monta se, do ponto de vista da segurança da informação, forem operados por pessoas despreparadas (leia-se qualquer das partes envolvidas) no que diz respeito ao cuidado na coleta, guarda e armazenamento de dados que, até mesmo por disposição legal, não podem se tornar públicos.

É por isso que o assunto “segredo de Justiça” precisa ser mais aprofundado e melhor debatido, implantado e respeitado. Precisamos de uma mudança de mentalidade, de mais cultura jurídica sobre segurança da informação, termos de uso e políticas de privacidade.

Tal qual o processo eletrônico, é um caminho sem volta, pois não deixa de ser acessório deste. Mas tem funcionado de forma precária, e isto é preocupante. Não podemos mais ficar aguardando uma lei específica de proteção de dados pessoais, os prejuízos são diários e algo precisa ser feito, e com urgência. Alô, OAB e CNJ!

 

 

 

 

Autor: Omar Kaminski   é advogado e consultor, gestor do Observatório do Marco Civil da Internet, membro especialista da Câmara de Segurança e Direitos do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br) e diretor de Internet da Comissão de Assuntos Culturais e Propriedade Intelectual da OAB-PR.


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