Sem aperfeiçoamentos, Carf continuará em dívida com a sociedade brasileira

Autor: Marcos de Aguiar Villas-Bôas (*)

 

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais é um importante órgão federal brasileiro que julga em segunda e última instância processos administrativos gerados quando os contribuintes se defendem de autos de infração lavrados pela Receita Federal.

Ele realiza uma revisão dos autos de infração, dando oportunidade para que sejam cancelados, no todo ou em parte, antes mesmo de chegarem ao Poder Judiciário, o que ajuda a não atolá-lo ainda mais de processos.

Além disso, como é um órgão de técnicos representantes da Receita Federal ou dos contribuintes, o Carf permite um debate detalhado, que desce em minúcias jurídicas, econômicas e contábeis, proporcionando uma chegada mais madura do debate ao Judiciário.

Desde a descoberta de corrupção no órgão pela operação zelotes, da Polícia Federal, vem-se discutindo numa Comissão Parlamentar de Inquérito o que fazer com o Carf, se seria o caso de extingui-lo ou mantê-lo com alguns aperfeiçoamentos. Definitivamente, pelas razões aqui expostas e por outras, não seria o caso de extingui-lo, mas essa é uma boa chance de se fazer algumas melhorias imprescindíveis.

Uma das saídas para o Carf é mantê-lo como está, parte do Ministério da Fazenda, porém um órgão com maior autonomia em relação à Receita Federal. A falta de autonomia causa problemas e muita reclamação da sociedade.

O Carf não pode ter o presidente do órgão, assim como aqueles das suas câmaras e turmas vindos todos da Receita Federal. É evidente que ele será dirigido com forte peso para um lado, por mais bem intencionados que sejam os indivíduos, de modo que se torna mais difícil cancelar autos de infração bem discutíveis, sobretudo com o voto de qualidade tomado por esses presidentes e, em mais de 90% dos casos, a favor da própria Receita Federal.

Sentença da Justiça Federal em Campinas,proferida em 23 de maio de 2016,  entendeu que o ônus de provar a infração é do fisco e, portanto, “ao verificar empate, a turma deveria proclamar o resultado do julgamento em favor do contribuinte” (Mandado de Segurança 0013044-60.2015.4.03.6105).

Tal sentença aplicou o in dubio pro contribuinte para interpretação de cabimento ou não da exigência tributária, conforme proponho desde 2008[1] e defendi recentemente aqui na ConJur[2].

Por sinal, o voto de qualidade tem sido dispensado, pois o Carf, um órgão pensado para ser paritário em sua essência, vem julgando frequentemente com turmas desfalcadas de conselheiros dos contribuintes, que formam composições de quatro a três ou quatro a dois. Se falta um conselheiro representante da Receita Federal, um suplente é chamado. Se falta um conselheiro representante dos contribuintes, não há suplente, em regra.

Pairam grandes riscos de esses processos virem a ser anulados no Poder Judiciário, causando um enorme transtorno de julgá-los novamente no Carf. Como de costume no Brasil, olha-se para a arrecadação da Receita Federal no curto prazo sem pensar nos resultados para o país e nos efeitos de médio a longo prazo.

Caso continue um órgão administrativo e o presidente do Carf ainda seja alguém nomeado pelo Ministro da Fazenda, não deveria ser membro da Receita Federal, o que daria um pouco mais de autonomia.

Medida necessária e até elementar seria ter, também, presidentes de câmaras e turmas representantes dos contribuintes. Metade deveria ser de representantes da Receita Federal e metade dos contribuintes, como acontece no Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo, contribuindo para a paridade do órgão e, assim, dando uma maior heterogeneidade de perspectivas às decisões não somente que resolvem os casos tributários, mas também àquelas administrativas.

O risco de presidentes do órgão, de câmaras e turmas serem representantes dos contribuintes é inverter a chave e criar um peso em favor do lado contrário. Veremos à frente razões desse risco e sugestões para solucionar o problema.

A luta entre fisco e contribuintes precisa deixar de ser, de fato, uma luta, tornando-se uma interação cooperativa, ainda que com interesses divergentes. Esse é o tipo de relação adequada para que ambas as partes obtenham mais resultados, como comprova a teoria dos jogos e como já se vê desde o final do século passado em vários países, o que está comprovado em estudos da Oecd sob o título de enhanced relationships e, mais tarde,cooperative compliance.

Enquanto contribuintes se sentirem maliciosamente prejudicados pela Receita Federal no Carf ou fora dele, eles tenderão a atuar com menos boa-fé em relação a ela. O clima de conflito entre fisco e contribuinte pode terminar influenciando conselheiros e colaborando para tomadas de decisão menos imparciais.

Se o tema é busca de imparcialidade de julgadores, no entanto, seria melhor ter juízes desvinculados de fisco e contribuintes decidindo os casos. Sob esse ponto de vista, o Carf deveria se tornar um tribunal especial judicial, como aconteceu com a United States Tax Court.

Estabelecida no ano de 1924, a Corte Tributária dos Estados Unidos ainda não tinha essa denominação e era um órgão administrativo, semelhante ao Carf de hoje. No começo da década de 60 foi iniciado um processo de “judicialização” desse órgão, que se concluiu no Tax Reform Act em 1969, quando ele passou a ser, enfim, parte do Judiciário.

Essa não é uma especificidade americana. Há outros países que funcionam dessa forma, como o Canadá, mas cada qual tem seus procedimentos. O Brasil poderia continuar com o julgamento em primeira instância feito pelas Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento, como é hoje, e o recurso seria interposto para o novo tribunal tributário judicial, um órgão especial do Poder Judiciário que julgaria os processos tributários federais em segunda e última instância, conforme já acontece.

Enquanto órgão especial do Poder Judiciário, ele estaria fora da estrutura chamada de“justiçacomum”. Finalizado o processo nesse tribunal, assim como é hoje, caberia ao contribuinte ingressar com uma ação judicial, se ainda tivesse interesse.

Tornando-se um órgão judicial, o Carf, que mudaria de nome, passaria a ser composto por juízes concursados, que deveriam ser selecionados dentre indivíduos com razoável experiência comprovada na área tributária e submetidos a um criterioso processo de seleção envolvendo conhecimentos jurídicos, econômicos e contábeis, no mínimo.

O ideal é que o concurso fosse específico para cada seção do órgão, pois as matérias são bastante distintas. O Brasil precisa parar de realizar concursos genéricos e que cobram um enciclopedismo memorizado, em lugar de um aprofundamento do conhecimento direcionado para a prática do cargo.

A forma de seleção dos servidores públicos é um dos pontos em razão dos quais o Estado rende tão pouco. Esse tipo de concurso beneficia aqueles com tempo e inclinação para memorizar conteúdo, em lugar de privilegiar os experientes, intelectualizados, prudentes e com senso social. As seleções precisam procurar medir essas características, por mais subjetivas e impalpáveis que sejam algumas delas, usando provas mais práticas e bem desenhadas.

Seria importante, também, exigir largo conhecimento filosófico, sobretudo envolvendo tomadas de decisão com pensamento complexo, algo fundamental para decidir além da unidimensionalidade, de modo a elevar o nível de complexidade das decisões numa direção de considerar e inter-relacionar diferentes aspectos envolvidos no processo e, assim, permitindo uma visão que tome mais em conta direitos do fisco e do contribuinte.

Outro mérito do tribunal judicial seria possibilitar a declaração de inconstitucionalidade em concreto da legislação tributária, o que é proibido hoje no Carf, um problema sério já analisado em outros textos publicados aqui na ConJur[3][4].

É um erro grave aplicar direito sem afastar normas inconstitucionais. Se isso não é percebido pelo fato de o órgão ser administrativo, que se torne judicial. Só o fato de a Constituição passar a ganhar mais efetividade nos julgamentos já justificaria transformar o Carf num órgão do Judiciário.

Outra vantagem é parar de vez com a ideia de que conselheiros julgadores podem exercer a advocacia. Nenhum ocupante de cargo público deve exercer conjuntamente a advocacia.Parece pouco discutível que os interesses se misturam, além de que a eficiência do cargo público fica completamente prejudicada, ferindo o art. 37, caput, da Constituição, onde estão prescritos princípios basilares da Administração Pública.

Não deveria ser necessário discutir isso em pleno ano de 2016, mas cada grupo de funcionários públicos pressiona o Executivo e o Legislativo, que terminam cedendo para agradá-los e obter vantagens em troca. Hoje, no Brasil, há inúmeros cargos, como procuradores do município edo estado, que permitem o exercício conjunto da advocacia. Os advogados da União vêm tentando o mesmo por meio do Projeto de Lei 4.254/2015, em tramitação na Câmara dos Deputados.

Como alguém irá trabalhar 40 horas por semana se tem um escritório de advocacia para gerir ou, pior, se é empregado de outrem no setor privado? Isso é crítico para o país.

Todos os cargos mencionados oferecem serviço suficiente para que os indivíduos trabalhem até mais do que 40 horas por semana e é óbvio que, exercendo uma atividade como a advocacia, ele não chegará nem perto dessa carga, como, aliás, já acontece com a maioria dos ocupantes de cargos públicos no Brasil e mesmo nos casos daqueles que não exercem a advocacia ao mesmo tempo.

Ao ter uma atividade privada e outra pública, garantida por vitaliciedade ou mandato, a dedicação à privada será maior, até porque as remunerações das funções públicas são, em regra, fixas, enquanto que a privada pode oferecer muito mais dinheiro ao indivíduo, sendo o incentivo ao trabalho imensamente maior.

Além disso, fere-se a livre concorrência da ordem econômica (artigo 170, IV, Constituição) ao permitir que alguém com informações públicas privilegiadas concorra no mercado. Estratégias estabelecidas por procuradores e advogados da União, por exemplo, serão conhecidas por eles ao advogar. É flagrantemente inconstitucional a cumulação de cargos públicos com a advocacia.

A cumulação do cargo de conselheiro do Carf com a advocacia remete-nos de volta à questão da imparcialidade nos julgamentos. Há dúvidas de que um conselheiro que é advogado e que tem clientes discutindo as mesmas matérias – ainda que seja apenas no Judiciário, apesar de que a proibição dos conselheiros advogarem no Carf nunca foi óbice efetivo a isso – irá levá-lo provavelmente a decidir da forma que beneficia o seu cliente e lhe dá honorários?

A cumulação de cargos como o de procurador e advogado da União já revelam conflito de interesses claro com o cargo de advogado, mas, no caso de um julgador, a situação é muito mais séria. Mesmo impedidos de advogar por um tempo, aqueles que pensam em voltar à advocacia num curto prazo irão, muito provavelmente, ficar inclinados a beneficiar contribuintes, não exercendo um juízo mais imparcial no momento de decidir.

É preciso proibir completamente o exercício cumulativo de cargo público com a advocacia e fiscalizar os funcionários públicos da área jurídica.

Uma das causas da constante deficiência fiscal do Brasil é, sem dúvida, o gasto excessivo com pessoal, e esses privilégios colaboram muito para isso. Como alguns (não todos!) funcionários públicos trabalham pouco ou muito pouco, uma vez que não estão submetidos a metas claras e rígidas, não são cobrados adequadamente etc., torna-se necessário contratar mais, ficando a máquina inchada e cara. É simples de entender.

Não é arriscado concluir, então, que, em muitas carreiras no Estado brasileiro, em todas as esferas (federal, estadual, distrital e municipal), bastava haver uma dedicação de 40 horas com cobrança de metas, feedback, coaching, pressão por produtividade e possibilidade de demissão, que seria possível cortar metade dos cargos públicos no Brasil, reduzindo as despesas com pessoal pela metade.

O Estado funciona, às vezes, como um cabide de empregos, com salários altíssimos e repletos de privilégios, havendo uma espécie de conluio entre os funcionários públicos que impede a mudança dessa estrutura. Enquanto que 80% da população brasileira ganha menos do que R$ 5 mil, os funcionários públicos entendem que não podem ganhar menos do que R$ 20 mil, R$ 30 mil ou até R$ 40 mil, independentemente da experiência e da qualidade técnica demonstradas.

É curioso como muitos que reclamam do inchaço do Estado acham, ao mesmo tempo, um absurdo serem conselheiros do Carf ou ocuparem qualquer outro cargo público sem que possam advogar. Trata-se do velho costume brasileiro de achar errado apenas o privilégio e a corrupção do outro, nunca olhando para si próprio.

No caso do Carf atual, no entanto, há outro problema que até dá um pouco de razão a esse primeiro. Ao se resolver tornar remunerada a função de conselheiro do Carf representante dos contribuintes, decidiu-se por pagar um valor que é mais do que duas vezes menor daquele recebido pelos representantes da Receita Federal. Alguém tinha dúvida de que não iria dar certo colocar indivíduos para exercerem exatamente a mesma função, ficando submetidos às mesmas regras, mas recebendo remunerações completamente distintas?

O atual regime jurídico confuso dos conselheiros dos contribuintes é mais uma jabuticaba que prejudica o país. Não admiraria se descobrisse que vários conselheiros continuam advogando ou exercendo atividades similares à de advocacia. Alguns, de fato, ajuizaram ações judiciais para ter esse direito reconhecido e obtiveram provimentos favoráveis.

Conclui-se, portanto, que há mais pontos positivos em tornar o Carf um órgão judicial e parece ser mais fácil solucionar os seus problemas fazendo isso do que tentando remendar o atual órgão administrativo. Quem está defendendo tal posição é alguém que perderá o seu cargo no exato momento em que isso acontecer.

Como se nota neste texto, nenhuma dessas questões é simples, porém também não são tão difíceis como se pinta. O entrave maior para o aperfeiçoamento do Carf é, como de costume no Brasil, os interesses específicos de órgãos e pessoas prevalecendo sobre os interesses da sociedade como um todo.

Decisões sobre o Carf precisam ser tomadas com urgência, seja para melhorar a versão administrativa atual, seja para torná-lo judicial. Da forma como está, o órgão não entrega tudo aquilo que poderia à sociedade brasileira. Repita-se: não é o caso de extingui-lo, mas de aperfeiçoá-lo.

 

 

 

 

Autor: Marcos de Aguiar Villas-Bôas é advogado, conselheiro da 1ª Seção do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) e ex-assessor para assuntos tributários da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Doutor em Direito Tributário pela PUC-SP e mestre em Direito pela UFBA.


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