Sem multa e penalidades às emissoras, classificação indicativa não protege jovens

Autor: Eduardo Ariente (*)

 

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade 2.404, o Supremo Tribunal Federal entendeu que a classificação indicativa, prevista no artigo 220, parágrafo 3º, I e II, da Constituição, e no artigo 254 do Estatuto da Criança e Adolescente, teria efeito apenas de recomendação e não imposição. O descumprimento dessa mera indicação, segundo decidiu o STF, não pode ensejar quaisquer sanções de caráter administrativo, seja ela multa, menos ainda suspensão da programação, pois haveria o risco de censura prévia do Estado, conduta incompatível com a liberdade de expressão das emissoras.[i]

Para tentar demonstrar o desacerto desses argumentos, é necessário fazer uma breve reflexão. Durante os tempos de democracia formal, o Poder Público sempre foi omisso no controle dos excessos dos concessionários de rádio e TV. Não poderia ser diferente, pois as concessões de comunicação social foram costumeiramente objeto de moeda de troca para a composição das bases de sustentação dos governos da ocasião e de perpetuação de poder das elites políticas brasileiras. [ii]

Sabemos hoje também que o capítulo da comunicação social foi o único a não ter um relatório aprovado durante a Constituinte de 1987-1988. O relatório da deputada constituinte Cristina Tavares dos artigos 220 a 224, que propunha uma regulação social mais efetiva, sequer foi votado.[iii]

Segundo relato do então deputado federal Florestan Fernandes acerca das discussões travadas na Subcomissão da Comunicação Social na Constituinte, “donos de canais de rádio e de televisão decidiram, como constituintes, sobre seus interesses, em conflito ou em cooperação como ministro das Comunicações, sob a batuta de um dirigente da Abert e de um importante advogado que era seu assessor, todos ignorando o que estipula o regimento interno da A.N.C. e torpedeando o bom andamento das discussões e o trabalho do bravo relator Artur da Távola.”[iv]

Na presente situação, nem mais esse poder de fiscalização o Ministério das Comunicações terá. O controle judicial sobre os excessos de violência e demais temas inapropriados para a audiência em idade infantil costuma tardar demais e por vezes não ser tão efetivo quanto as fiscalizações administrativas.

Vale esclarecer que o artigo 254 do ECA buscava coibir a programação de “Transmitir, através de rádio ou televisão, espetáculo em horário diverso do autorizado ou sem aviso de sua classificação”. Se necessário for, poderia ser aplicada pena de multa de vinte a cem salários de referência, duplicada em caso de reincidência. Ademais, em caso de desobediência, a autoridade judiciária poderia suspender a programação da emissora por até dois dias.

Esse descompasso entre a abstração das normas do direito e a realidade dos meios de comunicação terá como consequência provável mais excessos e abusos das emissoras. Segundo informa matéria assinada por Daniel Castro em 21 de setembro de 2016, em menos de um mês depois do referido julgamento pelo STF, a Rede Record e a Globo viram nessa decisão uma espécie de carta branca para exibir entre as 15 e 16h cenas de sexo e violência.

Os maiores problemas teriam surgido no caso da Rede Record, conforme segue.

“Logo no primeiro capítulo de Vidas em Jogo, na última segunda (19), o protagonista Francisco (Guilherme Berenguer) foi alvo de uma perseguição nas dunas maranhenses. Durante o confronto, criminosos se dirigiram a ele como “mentiroso de uma égua” e “safado”, mas a violência verbal foi leve perto das metralhadoras que eles sacaram. Os bandidos dispararam tiros em direção a Francisco, que fugiu pelas dunas e conseguiu sobreviver. Depois da perseguição, outro personagem foi acuado em um beco, no Rio de Janeiro, e espancado por bandidos. Um deles soltou um “Calmo o cacete”. […] O segundo capítulo da trama mostrou um espancamento brutal em um aeroporto […] O capítulo terminou com a cena de um atropelamento criminoso em um estacionamento. Em Vidas em Jogo, as cenas de sexo chamam a atenção até do telespectador mais distraído. No capítulo de ontem, foram duas sequências beeem picantes. Na primeira, Francisco e Patrícia (Thaís Fersoza) tiraram as roupas um do outro e se beijaram em uma cama de motel, com direito a “mão boba” no bumbum dela e vários closes em seus corpos. Já a segunda cena mostrou o caso extraconjugal entre Divina (Vanessa Gerbelli) e Ernesto (Leonardo Vieira). Ela foi chamada de “gostosa” pelo amante, e o bumbum dele apareceu de relance no final da sequência, quando a relação ficou mais intensa. [v]

Quem sabe o tais relatos divulgados pela imprensa ajudem a sensibilizar a coletividade sobre as consequências desse acórdão. Talvez no dia em que nossas autoridades, como exercício de cidadania, ficarem algumas manhãs ou tardes assistindo a programação de TV aberta junto com seus filhos ou netos haja alguma modificação de entendimento sobre essas questões. Infelizmente, constatarão que publicidades abusivas dirigidas ao público infantil, cenas de violência e demais conteúdos impróprios não são casos isolados.

Além disso, pensar que se trata apenas de responsabilidade dos pais controlar aquilo que os seus filhos assistem é ilusório, pois os mecanismos de boqueio de conteúdo dos aparelhos das televisão (parental control) nem sempre funcionam. O relator da ADI reconheceu em trecho do seu voto: “[…] o controle parental poderia ser feito, inclusive, com o auxílio de meios eletrônicos de seleção e de restrição de acesso a determinados programas, como já feito em outros países. A tecnologia, inclusive, seria de uso obrigatório no Brasil, apesar de ainda não adotada (Lei 10.359/2001).”

Desta forma, enquanto não existir a modificação desse entendimento sobre a classificação indicativa, as crianças e adolescentes brasileiros, que não possuem outras formas de lazer e entretenimento[vi], precisarão conviver com sangue, metralhadoras e cenas picantes às 15h da tarde.

Com efeito, diante dessa breve narrativa, é lícito concluir: 1) para falarmos sobre liberdade de expressão na TV, é preciso lembrar da memória dos seus principais defensores na Assembleia Constituinte: Cristina Tavares e Arthur da Távola; 2) a classificação indicativa, desprovida do sancionamento de multa e suspensão do conteúdo das emissoras, fragiliza a proteção das crianças de adolescentes, sobretudo o princípio da proteção integral; 3) para resguardar o direito de liberdade de expressão vespertino da TV Record, precisamos do aviso : retirem as crianças da sala!

 

 

 

 

Autor: Eduardo Ariente  é doutor em Direito pela USP, advogado e professor universitário.


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