Fernando Machado da Silva Lima
advogado, corretor de imóveis, jornalista, professor de Direito Constitucional da UNAMA, assessor de procurador no Ministério Público do Estado do Pará
A separação entre Igreja e Estado, adotada nos Estados Unidos desde a Emenda nº1, de 1.791, decorre diretamente do direito à liberdade religiosa, princípio básico de toda a política republicana. Modernamente, é reconhecida pelas constituições da maioria dos Estados democráticos, e também por diversos tratados internacionais. O constitucionalista português Jorge Miranda ressalta a importância da liberdade religiosa, e afirma que ela está “no cerne da problemática dos direitos humanos fundamentais, e não existe plena liberdade cultural nem plena liberdade política sem essa liberdade pública, ou direito fundamental”.
Para Rui Barbosa, “de todas as liberdades sociais, nenhuma é tão congenial ao homem, e tão nobre, e tão frutificativa, e tão civilizadora, e tão pacífica, e tão filha do Evangelho, como a liberdade religiosa.”
No Brasil, a separação entre a Igreja e o Estado foi efetivada em 7 de janeiro de 1.890, pelo Decreto nº 119-A, e constitucionalmente consagrada desde a Constituição de 1.891. Até 1.890, o catolicismo era a religião oficial do Estado e as demais religiões eram proibidas, em decorrência da norma do art. 5o da Constituição de 1.824. O catolicismo era subvencionado pelo Estado e gozava de enormes privilégios.
A atual Constituição brasileira, de 1.988, proíbe, em seu art. 19, à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento, ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.”
A questão está sendo agora discutida, em Belém, a respeito do projeto de construção de uma imagem da Virgem de Nazaré, com 27 metros de altura, que serviria não apenas para o culto, dos católicos, mas também como atração turística. O Dr. Zeno Veloso publicou um brilhante estudo (O Liberal, 25.08.01), no qual defendeu a constitucionalidade da colaboração do poder público para essa construção, e afirmou que subvencionar “significa adotar ou assumir uma determinada religião, aliando-se à mesma, ou ficando dependente dela, comprometendo-se com sua pregação, atuação ou catequese”. Na verdade, a subvenção nada mais é do que o auxílio pecuniário, geralmente concedido pelo poder público.
Em defesa de sua tese, o Dr. Zeno apontou primeiro o fato de que várias obras semelhantes têm sido subvencionadas pelo poder público, como a Praça da Bíblia, ou o Cristo de Castanhal. Na verdade, isso tem acontecido em todo o Brasil, mas no meu entendimento, “data venia”, prova apenas que a Constituição não é respeitada, e que a religião católica ainda é privilegiada pelo Governo, cujas normas proíbem, por exemplo, o trabalho aos domingos, e oficializam os diversos feriados religiosos católicos. Além disso, em diversas Assembléias e Câmaras são afixados crucifixos, o que tem sido objeto de reclamações de políticos que professam outras religiões. Quanto à restauração das igrejas coloniais, com verbas públicas, também citada pelo Dr. Zeno, constitui apenas obrigação dos poderes públicos, prevista no art. 23 da Constituição Federal.
Mas no Recife, em março de 1998, ao contrário do que agora se pretende fazer em Belém, o Prefeito vetou integralmente, como inconstitucional e contrário ao interesse público, em face da proibição do art. 19 da Constituição Federal, um projeto de lei aprovado pela Câmara Municipal, que autorizava a construção de um monumento em homenagem a Frei Damião, e que deveria ser também acompanhado de infra-estrutura, para a visitação de romeiros e turistas. O Prefeito disse que não poderia “gastar dinheiro público em obras que favoreçam um culto religioso em detrimento de outros, como se Estado e Religião ainda se confundissem”
É interessante citar também o art. 49 da Constituição Suíça, que expressamente determina que ninguém poderá ser obrigado a pagar impostos cujo produto se destine a subvencionar o culto de uma comunidade religiosa à qual não pertença.
Em suma, o Estado é laico, a liberdade religiosa deve ser garantida, e o poder público deve se manter independente em relação aos cultos religiosos ou igrejas. Deve proteger e garantir o livre exercício de todas as religiões, e com elas colaborar, sempre no interesse público, o que não significa, evidentemente, colaborar nas despesas com a construção de obras religiosas, porque está terminantemente proibido de subvencionar qualquer religião. Ou será que a proibição do art. 19 nada significa? Se o “interesse público”, como esse que agora está sendo apontado pelo ilustre jurista, pudesse justificar a construção da estátua da Virgem de Nazaré com dinheiro público, as outras religiões também poderiam pretender a construção de monumentos semelhantes, como por exemplo uma estátua de Iemanjá, no meio da Baía de Guajará. Nada mais restaria, então, do princípio constitucional que determina a separação entre as igrejas e o Estado.
Mas o Estado também não pode obstar uma prática religiosa. Não pode discriminar ninguém, por motivos religiosos. Não pode impor o ensino religioso. Deve tratar a todos igualmente, sem fomentar disputas. O Estado não deve apenas “tolerar” a existência de outras religiões, que são às vezes pejorativamente consideradas como “seitas”. Ao contrário, deve saber conviver com todas, e deve tratar a todas igualmente. Se é inegável a tradição cristã do povo brasileiro, também é inegável o crescimento de outras religiões, que não concordam com a existência de crucifixos e imagens de santos.
Este é, na minha opinião, o real significado da norma constitucional discutida. Aceitar como constitucional a subvenção do poder público a uma igreja, a qualquer delas, seria o retorno ao sistema anterior, abolido com a proclamação da República, há mais de 110 anos. Quando a nossa Constituição invoca, em seu preâmbulo, a proteção de Deus, não se refere especificamente ao Deus dos católicos.
Para finalizar, quero dizer que sou inteiramente favorável à construção desse monumento, e que somente por amor à verdade jurídica resolvi defender a minha opinião, contrária à sua subvenção pelos cofres públicos, embora me arriscando a ser crucificado e a sofrer represálias, até mesmo de alguns de meus amigos.