Sepé Tiarajú e os guarani

Qualquer assassinato choca a opinião pública. Quando isso ocorre entre minorias étnicas ou sociais, entretanto, o fato torna-se mais perturbador ainda. Indígenas e força pública, grosso modo, sempre viveram em extremos opostos na balança da chamada Justiça. Cega e pretensamente equitativa, tratando igual os iguais e desigualmente os díspares, essa senhora, via de regra, tem se sensibilizado em favor daqueles que mais se assemelham a ela: branca, capitalista e douta.

Foi com muito sangue derramado que esse panorama de genocídio cristão foi mudando. E aos poucos, os gritos de protesto, e o aroma das aldeias e das lutas campesinas e indígenas, eles foram adentrando, sorrateiros, pelos escaninhos dos tribunais palacianos e as circunvizinhanças que incomodavam os senhores magistrados.

Enquanto a “balança”, do alto da cátedra, à espreita do fato típico, do ilícito turbador da ordem ditada e dominante que semeia medo e exclusão, os “silvícolas”, por entre as sombras, recolhem migalhas, ocupam a beira das estradas mirando a produção que passa, e sobrevivem só pela força e aquela “garra” inexplicável que vem de dentro.

A agressão e o assassinato dos policiais que ocorreu no acampamento dos indígenas Guarani Kaiowá, de Porto Cambira, em Dourados, no Mato Grosso do Sul, é de todo lamentável. Pois vitima dois lados de uma mesma moeda, e de onde não há vencedores, uma vez que a Justiça para nenhum dos lados se fez ou se fará – agora, que homens tombaram.

Trata-se, na verdade, de uma situação nunca vista em Mato Grosso do Sul, haja vista a usual subserviência e respeito que os indígenas sempre tiveram pela autoridade policial. Sempre entenderam os indígenas que, também eles, os policiais, na maioria das vezes, têm sido usados pelos donos da ordem e do progresso para oprimir e impor situação injusta e desigual.

Entre os povos indígenas, quando havia disputas, elas ocorriam para garantir territórios de subsistência, quando suas áreas eram invadidas, pois todos viviam cônscios dos limites de suas posses e contentavam-se com elas. Ao contrário de nosotros “cara pálida”, sempre preocupados em acumular a mais valia e as benesses do poder e do capital.

O Governador do Estado, por sua vez, na mesma emissora de TV, nesse dia, se diz contrariado com os jovens Procuradores Federais de Dourados que “estariam distorcendo” os fatos em relação ao assassinato dos policiais, numa posição favorável aos indígenas. Chegou a ponto de dizer que iria se queixar para o Ministério Público Federal em Brasília para, quem sabe, substituir os Procuradores no Estado. Tal qual um coronel do século XIX, irascível, arvora-se, de dedo em riste, achando que pode controlar – como se controla bois em uma fazenda –, a Justiça e os operadores do Direito.

A situação da terra indígena no Estado não vai ser resolvida substituindo-se Procuradores Federais que trabalham em Dourados ou em Campo Grande, e sim, abrindo o debate para uma discussão séria envolvendo FUNAI, IBAMA, INCRA, Polícia Federal, etc.; envolvendo os órgãos SEMA e IDATERRA, e as instituições de Pesquisa e Organização Indigenista, sem desprezar a participação indígena para forçar o Estado a tratar essa ferida que sangra. Hoje em Dourados, amanhã, em Antônio João, depois, em Buriti, sabe lá quando isso vai acabar. Porque esse grito que ronda nossos muros, senhores governantes, é possível ouvi-lo, logo ali, sendo bradado desde 1756 pelos Guarani, na voz de Sepé Tiarajú: “Essa terra tem dono!”

Carlos Alberto dos Santos Dutra, advogado mestre em história indígena pela UFMS.

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