Serviço essencial não pode ser cortado por falta de pagamento

por Flávio Tartuce

Uma das questões jurídicas que vem dividindo atualmente os tribunais brasileiros, tanto em sede estadual como o próprio Superior Tribunal de Justiça, relaciona-se com a possibilidade de corte de serviço essencial nos casos de inadimplemento. Fica a dúvida: no caso de falta de pagamento da conta mensal, pode a concessionária de serviço público essencial interromper o mesmo, mediante corte? No tocante ao serviço de energia elétrica, especificamente, dois posicionamentos surgiram em relação ao tema.

O primeiro, com o qual concordamos, afasta a possibilidade do corte, tendo em vista a existência de relação de consumo nos casos em questão. Como é notório, o artigo 22 da Lei nº 8.078/90 traz regra pela qual os serviços públicos essenciais (água, luz, gás, entre outros) devem ser eficientes e contínuos, não podendo ocorrer qualquer cessação quanto ao seu fornecimento. Em reforço, o artigo 42 da mesma Lei Consumerista prevê que, na cobrança de dívidas, não pode o consumidor sofrer coação ou ser exposto ao ridículo, situações que ocorrem de forma cumulada quando da interrupção pelo inadimplemento.

O segundo posicionamento possibilita o corte do serviço de energia elétrica quando não houver o respectivo pagamento, pela menção expressa que consta do artigo 17 da Lei nº 9.247/96, cuja transcrição é interessante:

“A suspensão, por falta de pagamento, do fornecimento de energia elétrica a consumidor que presta serviço público ou essencial à população e cuja atividade sofra prejuízo será comunicada com antecedência de quinze dias ao Poder Público local ou ao Poder Público Estadual. §1º. O Poder Público que receber a comunicação adotará as providências administrativas para preservar a população dos efeitos da suspensão do fornecimento de energia elétrica, inclusive dando publicidade à contingência, sem prejuízo das ações de responsabilização pela falta de pagamento que motivou a medida”.

Para balizar essa segunda corrente, muitas vezes, tem-se utilizado o fundamento constitucional de proteção da propriedade e da sua função social (artigo 5º, XXII e XXII, CF/88), bem como a manutenção da ordem econômica (artigo 170). Pertinente lembrar, nesse sentido, que consta no novo Código Civil proteção expressa quanto à função social da propriedade, no seu artigo 1.228, parágrafo 1º.

Na verdade, acreditamos que outros argumentos, também com amparo na seara constitucional, estão balizando a primeira tese, afastando a segunda. Inicialmente, não se pode esquecer que o CDC é norma de principiológica, de ordem pública e interesse social, havendo menção expressa no próprio Texto Maior quanto à proteção dos interesses dos consumidores (artigo 5º, XXXII e art. 170, V). Isso coloca a Lei nº 8.078/90 em posição hierarquicamente superior a regulamentação das concessões públicas. Mas outros argumentos, também de fundamento constitucional, podem ser retirados do julgado abaixo, proferido em sede de agravo regimental perante o STJ:

“ADMINISTRATIVO. CORTE NO FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. IMPOSSIBILIDADE. PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. AGRAVO REGIMENTAL. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTOS PARA INFIRMAR A DECISÃO AGRAVADA. DESPROVIMENTO. 1. O corte no fornecimento de energia elétrica, como forma de compelir o usuário ao pagamento de tarifa ou multa, extrapola os limites da legalidade e malfere a cláusula pétrea que tutela a dignidade humana. Precedentes do STJ. 2. Ausência de motivos suficientes para a modificação do julgado. Manutenção da decisão agravada. 3. Agravo Regimental desprovido” (Superior Tribunal de Justiça, ACÓRDÃO: AGA 478911/RJ (200201347643), 485333 AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO, DECISÃO: Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao agravo regimental, nos termos do voto do Sr. Ministro Relator. Os Srs. Ministros Humberto Gomes de Barros e José Delgado votaram com o Sr. Ministro Relator. Ausente, justificadamente, o Sr. Ministro Francisco Falcão. Presidiu o julgamento o Sr. Ministro Luiz Fux. DATA DA DECISÃO: 06/05/2003. ORGÃO JULGADOR: – PRIMEIRA TURMA. RELATOR: MINISTRO LUIZ FUX FONTE: DJ DATA: 19/05/2003 PG: 00144. VEJA: STJ – RESP 223778-RJ (RSTJ 134/145), AGA 307905-PB (JBCC 186/355), RESP 174085-GO (LEXSTJ VOL.: 00114/239), ROMS 8915-MA)

Os fundamentos da decisão acima, são muito fortes, sem dúvidas. Como é notório, o artigo 1º, III, da Constituição Federal reconhece a dignidade da pessoa humana como cláusula pétrea, um dos fundamentos da República Brasileira. Apesar da falta de menção no julgado, entendemos que um outro princípio constitucional poderia ser citado, o da solidariedade social, pela busca de uma sociedade mais justa e solidária (artigo 3º, I, da CF/88). Desse modo, concordando com a excelência da r. decisão, entendemos que a empresa concessionária não poderá interromper o serviço, mas sim apenas procurar os meios judiciais para cobrar o valor devido, inclusive com a penhora de bens do consumidor que não honra com as suas obrigações.

Sobra a amplitude de aplicação desses preceitos, lembra Gustavo Tepedino que “o constituinte de 1988, não satisfeito em fixar normas gerais em cada capítulo, deu-se ao trabalho de estabelecer regras precedentes (até mesmo no ponto de vista da localização topográfica) a todas as outras, que definem a tábua de valores do ordenamento jurídico brasileiro. Tais normas constitucionais, em particular aquelas dispostas nos arts. 1º a 4º, são os preceitos fundamentais da ordem jurídica e, portanto, as mais importantes do ponto de vista interpretativo, a menos que se quisesse atribuir ao constituinte o papel de dispor de palavras inúteis, ou ociosas – o que seria tecnicamente um absurdo” (Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2ª Edição, p. 207).

Concluindo, entendemos que, sob o prisma civil-constitucinal o corte não pode ser deferido, sob pena de entrar em colisão com a própria concepção do ordenamento jurídico, quebrando a “espinha dorsal” do Direito Privado.

Flávio Tartuce é advogado em São Paulo, especialista em Direito Contratual e mestre em Direito Civil Comparado pela PUC/SP. É também professor em cursos preparatórios para as carreiras jurídicas e professor convidado em cursos de pós-graduação em Direito Civil.

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