[sim] Referendo do desarmamento: acertos e aberrações

No referendo do desarmamento, programado para o dia 23 de outubro de 2005, vamos responder à seguinte indagação: “O comércio de armas de fogo e munição deve ser proibido no Brasil?” Esse referendo, a campanha publicitária respectiva, os argumentos lançados pelos meios de comunicação e a própria política de desarmamento (adotada pelo Estatuto correspondente) vêm dando ensejo a incontáveis polêmicas.

O assunto desarmamento, de fato, é muito controvertido. Não seria tanto, talvez, se o referendo tivesse assumido como ponto de partida uma posição razoável, equilibrada (isto é, de meio termo). Da forma como a consulta popular foi colocada, não há como deixar de enaltecer seus acertos, mas também de denunciar suas aberrações.

O desarmamento evita algumas mortes. O primeiro e mais extraordinário acerto consiste no fato de o referendo chamar a atenção de todos para o gravíssimo problema da violência. Ele vale, portanto, mais pelo seu efeito simbólico, que real. É positivo porque detrás de tudo temos algumas estatísticas estarrecedoras: 500 mil mortes no mundo, por ano, causadas com arma de pequeno calibre; uma morte a cada dois minutos; em 67% das mortes violentas no Brasil utilizam-se essas armas; uma morte a cada treze minutos. De outro lado, casos banais de discussão no trânsito, nas portas de boates, nos estádios de futebol ou suas redondezas etc., que antes terminavam em empurrões ou lesões, hoje se encerram a bala. Muitas dessas mortes bizarras, inúteis e desnecessárias praticadas por “gente de bem” serão evitadas.

O referendo não será inútil. Durante muitos anos dizia-se que o problema de inflação, sobretudo na América Latina, era insolúvel. Chegou-se finalmente a um patamar razoável. Os tucanos ganharam oito anos de governo principalmente em razão disso. Agora se diz que nossa violência não tem saída. Tem. É só direcionar o canhão para o alvo certo. O “sim” no referendo vem dotado de um significado muito mais profundo que parece: queremos paz, mas não uma paz passageira, sim, definitiva, uma paz que passa pelo desarmamento mas que exige muito mais: igualdade social, organização comunitária, educação para todos, melhores níveis de escolaridade e de socialização etc.

Consulta maniqueísta. Álcool, drogas, armas de fogo, posse de munições, exposição de pornografia etc., são temas ou substâncias ou instrumentos que podem ser discutidos, regrados, limitados, restringidos etc., mas jamais podem ser enfocados em termos maniqueístas de proibição total ou permissão ilimitada. A consulta como foi proposta no referendo é maniqueísta (sim ou não) e equivocada.

Comércio de armas ou munições: proibição ou restrição? O comércio de armas para que o cidadão possa tê-la em sua casa não deveria ser proibido no atual estágio cultural do país, mesmo porque são raras as mortes com arma de fogo em casa. Alguns casos acontecem, mas são índices baixos. De outro lado, mesmo que o “sim” venha a ser vitorioso no dia 23, sabe-se que a proibição do comércio de armas de fogo no Brasil não vai ser absoluta. O comércio vai continuar em favor de quem pode possuir ou portar arma de fogo (Exército, polícias, Juiz, Promotor, empresas de segurança etc.). Ademais, como a violência gerada pelas armas de fogo é universal, toda decisão política nessa área só pode ter efeitos concretos sensíveis se for globalizada. O referendo está regionalizando um tema que é global. A dissintonia é patente.

De outra parte, nele está retratado um paradoxo lamentável: por força do art. 31 do Estatuto do Desarmamento, todos que possuem arma de fogo de origem lícita (arma que já foi registrada, que conta com nota fiscal etc.), em casa ou no local de trabalho, sendo seu proprietário, acham-se “anistiados” para sempre (leia-se: podem entregar essa arma para a Polícia Federal em qualquer momento, sem ter problemas criminais). Isso significa que os 2,5 milhões de armas registradas pelos particulares continuarão lícitas (desde que não saiam da casa ou do local de trabalho). Apesar disso, tais possuidores não poderão comprar munições. De um lado a lei permite a “posse” de arma de fogo; de outro proíbe a compra de munição. Lamentável aporia e contradição!

De tudo quanto foi exposto, correto seria (provavelmente) uma consulta mais sensata, mais razoável, algo mais ou menos assim: o comércio de armas de fogo e munição deve ser mais rigorosamente controlado no Brasil? Esses termos retratariam uma política de meio termo e se afastaria do maniqueísta “tudo ou nada”, que lamentavelmente contribui (muito) pouco para a necessária conscientização geral. Votarei “sim” no dia 23, mas não poderia deixar de registrar meus protestos, em parte contra a forma do referendo, em parte contra os aberrantes argumentos utilizados pelo setor midiático tendencialmente sanguinário.

No debate que se travou em torno do referendo do desarmamento alguns setores da mídia (diríamos tendencialmente sanguinária: assim por exemplo a edição da VEJA de 05.10.2005, p. 76 e ss.) não estão perdendo a oportunidade de reiterar seus sensacionalistas, estridentes e costumeiros excessos.

O primeiro deles: “Os países que proibiram a venda de armas tiveram aumento da criminalidade e da crueldade dos bandidos” (p. 82). Japão, Austrália e Inglaterra comprovam exatamente o contrário: adotaram fortíssima política de restrições e vedações e a criminalidade com arma de fogo não aumentou. Jamaica sim teve sensível aumento da criminalidade, após a proibição do uso de arma de fogo. A origem, o incremento ou mesmo a variação da violência com arma de fogo, como se vê, está muito mais atrelada à cultura e à organização social (de cada povo) que à questão do armamento ou não da população. Países organizados socialmente contam com baixos índices de violência. Sejam países altamente armados como a Suíça (1 homicídio para cada 100.000 habitantes), sejam países desarmados como o Japão (0,6 homicídio para cada 100.000 habitantes).

“As pessoas temem as armas. Com a população desarmada os riscos são menores para os criminosos. Os marginais sentem-se mais seguros”. Se as pessoas temem as armas vão certamente continuar temerosas, mesmo que o referendo ostente o resultado “sim”. É que temos no Brasil 8,5 milhões de armas ilegais. Caso o referendo seja positivo, apenas 3.000 armas deixarão de ser comercializadas (para os particulares) no Brasil anualmente. Isso não é nada diante do armamento ilícito citado. Não há, portanto, como os marginais sentirem-se mais seguros. Seus riscos não diminuirão. Além das armas legais (8,5 milhões) temos mais 8,5 milhões de armas ilegais nas mãos da população. A vitória do “sim”, obviamente, não vai tirá-las de circulação. O argumento de que o “marginal” estará mais seguro, como se nota, é falso.

“O MST apóia o desarmamento. Logo, você não pode seguir essa política”. O MST vem se notabilizando pela adoção de meios ilícitos para alcançar os seus fins. Somos contrários a isso, porque gera muita violência desnecessária. Quando, entretanto, eles se mostram favoráveis a uma tese saudável, não há porque não tê-los como parceiros. Se Hitler tivesse descoberto a vacina contra o câncer, claro que iríamos apoiá-lo nesse ponto.

“O desarmamento da população é historicamente um dos pilares do totalitarismo”. O fato de Hitler, Stalin, Mussolini, Fidel Castro etc. terem proibido armas de fogo não significa que todos os que fazem isso são totalitários. Japão, Austrália, Canadá, Inglaterra, Espanha etc. assumiram duras políticas de restrição ou proibição das armas de fogo e não são Estados autoritários. A imputação arbitrária de rótulos pejorativos a quem defende teses contrárias às suas (“bicha”, gay, homossexual, comunista, corrupto, totalitário etc.) não enriquece nenhum debate. Aniquila-o.

“A polícia brasileira é incapaz de garantir a segurança dos cidadãos”. Nem a polícia nem a arma de fogo. Nenhuma das duas garante a segurança dos cidadãos de modo absoluto. De cada 16 pessoas armadas, 15 perdem a arma ou seus bens ou sua própria vida (estatística da Secretaria de Justiça do Estado de São Paulo). O cidadão tem todo direito de se defender, inclusive com arma de fogo, quando necessário. Mas é bom que saiba que as estatísticas não concorrem para depositar muita fé na arma de fogo. Quase sempre ela traduz mais desgraças que vantagens.

“A proibição vai alimentar o já fulgurante comércio ilegal de armas”. Os “bandidos” não compram arma de fogo em lojas. Sempre se alimentaram do comércio ilegal. Logo, esse comércio já existia (e vai continuar existindo). Pode ser que depois do referendo (caso dê o “sim”) as pessoas “de bem” venham a incrementar esse comércio ilegal. Mas são elas justamente as pessoas que menos matam com arma de fogo. Logo, o comércio ilegal pode resultar incrementado, mas não a massa da violência. As pessoas “de bem” que podem estar comprando armas ilegais são justamente as que quase nunca cometem homicídio.

“Os criminosos não vão obedecer à proibição do comércio de armas”. Os criminosos não obedecem nem à proibição do comércio de armas nem à proibição de matar, roubar etc.. Os criminosos sempre compraram armas ilegalmente e continuarão fazendo isso. O referendo, como se vê, não está dirigido a eles, sim, a todos que queiram se conscientizar de que o problema da violência é muito mais profundo que o risco gerado pela simples posse de arma de fogo. Repita-se: um dos países proporcionalmente mais armados do mundo (Suíça: 2 milhões de armas para 7 milhões de pessoas) apresenta um dos menores índices de violência do planeta. Não existe relação direta entre “povo armado e violência” ou “povo desarmado e violência”, sim, entre “desorganização social, desigualdade de renda, nível de escolaridade etc. e violência”.

“O referendo desvia a atenção daquilo que deve realmente ser feito: a limpeza e o aparelhamento da polícia, da justiça e das penitenciárias”. Isso que acaba de ser sugerido nada mais é que o verniz do problema. O que deve realmente ser feito é ir às bases da questão da violência gerada pelas armas de fogo: desigualdade de renda, desorganização social etc.. O problema seríssimo da violência, em suma, merece ser focado de forma mais profunda e menos consumista. Não se coaduna, claro, com a superficialidade nem sensacionalismos mercantilistas.

Este texto é uma compilação de uma série de dois trabalhos do autor, originalmente publicados no site do Curso ProOmnis, nos dias 03 e 10/10/2005, mediante permissão do autor.

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Luiz Flávio Gomes
doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Instituto Panamericano de Política Criminal (IPAN), consultor, parecerista, fundador e presidente da Cursos Luiz Flávio Gomes – LFG (primeira rede de ensino telepresencial do Brasil e da América Latina)

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