Antonio Augusto Tams Gasparin
Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), mestre e atualmente doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Coordenador Acadêmico e de Pesquisa e Monografia na Faculdade Radial (SP), onde leciona as disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito e Filosofia Geral e Jurídica. Coordena também o Núcleo de Direitos Humanos da Faculdade de Direito do UniRitter (RS), onde leciona ainda a disciplina Metodologia do Direito. Advogado na área de contratos
APRESENTAÇÃO
Este texto foi elaborado durante o segundo semestre de 2003 para servir de material de apoio a um curso homônimo – A Teoria do Ordenamento Jurídico de Norberto Bobbio –, ministrado em um curso preparatório para candidatos ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Naquele momento, a leitura dessa obra de Bobbio era obrigatória para as provas preliminares ao ingresso.
O esforço para elaboração deste material didático acabou sendo pessoalmente bastante proveitoso, pois leciono desde 1999 em cursos de graduação, especialmente as disciplinas de Introdução ao Estudo do Direito e de Filosofia Geral e Jurídica, nas quais as referências a Bobbio são constantes e, em alguns casos, indispensáveis, como é o caso da disciplina de Introdução ao Estudo do Direito II, na qual a Teoria do Ordenamento Jurídico é bibliográfica básica. Nestas disciplinas, de um modo geral, a discussão sobre o positivismo é recorrente e Bobbio é, sem dúvida, um dos mais importantes e influentes positivistas contemporâneos.
Este texto não pretende apresentar qualquer inovação ou tese. Representa apenas um esforço didático e de síntese, o que não é tarefa fácil tendo-se em vista o rigor do pensamento de Bobbio, escamoteado por trás de seu estilo fluido e elegante, aliado a uma objetividade e clareza invejáveis na escrita.
Como síntese didática, não houve grande esforço em criar paráfrases próprias sobre o texto de Bobbio e boa parte da síntese constitui-se em citação indireta à Teoria do Ordenamento. Aliás, é justamente por isso que as referências bibliográficas foram feitas indicando-se apenas o número de página: evidentemente se referem à Teoria do Ordenamento Jurídico, conforme edição indicada na bibliografia final. No entanto, há uma série de comentários e esquemas que visam explicitar e ilustrar alguns pontos mais complexos do pensamento de Bobbio, os quais, preciso admitir, são de minha exclusiva autoria e responsabilidade. Por fim, note-se que esta síntese não abarcou a integralidade da obra de Bobbio, em parte por ter sido direcionada aos temas mais diretamente relacionados à teoria geral do direito (é o caso da ausência do capítulo sobre o Ordenamento Internacional), em parte por falta de tempo para concluir o texto (é caso da ausência do capítulo sobre a Completude do Ordenamento).
1 Bobbio, a teoria do ordenamento e o positivismo
A Teoria do Ordenamento Jurídico de Norberto Bobbio é uma obra muito importante no debate jurídico contemporâneo, especialmente no Brasil. Bobbio é considerado um dos grandes positivistas da atualidade. Essa vinculação de Bobbio ao positivismo significa, em síntese, que ele defende:
1) uma abordagem científica do direito, o que implica – para o positivismo – uma abordagem avalorativa, na qual prioriza-se o aspecto formal e não o material do fenômeno jurídico, sendo este o único caminho para a construção de uma genuína ciência do direito;
2) uma definição do direito centrada no seu aspecto coativo, como meio de fundamentar o conhecimento jurídico numa base empírica;
3) a preponderância da legislação sobre as demais fontes do direito (característica do estado liberal);
4) a norma jurídica como imperativo;
O caráter original do pensamento de Norberto Bobbio está na sua compreensão do direito não mais centrada na norma – conforme defende o normativismo – mas centrada no ordenamento, entendido como o sistema, o conjunto das normas de uma determinada ordem jurídica.
2 CRÍTICA À TEORIA DA NORMA
A teoria do ordenamento jurídico é uma tentativa de resolver alguns problemas que a teoria da norma não havia conseguido resolver ou havia dado uma resposta insatisfatória, como, v.g., a questão da completude e das antinomias.
Bobbio declara expressamente que sua obra pode ser considerada uma continuação ou complementação do trabalho de Kelsen, especialmente da sua obra Teoria Geral do Direito e do Estado. Afirma que a dicotomia feita por Kelsen entre nomostática (trata dos problemas da norma jurídica individualmente) e nomodinâmica (problemas relacionados ao conjunto das normas) já antevia uma solução da teoria da norma pelo ordenamento.
Analisando sua obra anterior, a Teoria da Norma Jurídica, Bobbio admite que – partindo da visão estrita sobre a norma jurídica – não conseguiu dar uma resposta satisfatória à questão “o que é o direito?”. Conclui que não é possível definir o direito a partir da norma considerada isoladamente.
Passa então a fazer uma crítica sistemática aos principais critérios oferecidos pela teoria da norma na tentativa de caracterizar o direito a partir de elementos da norma jurídica considerada em si mesma.
2.1 Critério formal
Seria a tentativa de caracterizar o direito a partir de algum elemento estrutural da norma jurídica. Com relação à estrutura as normas jurídicas podem ser diferenciadas em positivas ou negativas, categóricas ou hipotéticas e gerais (abstratas) ou individuais (concretas). A final, Bobbio conclui que nenhuma deles é suficiente para caracterizar o direito.
a) positivas ou negativas: positivas são normas que obrigam a algo, enquanto negativas seriam as normas que proíbem. Assim, fica evidente que a maior parte dos sistemas normativos – incluído aí o direito – possuem ambos os tipos de normas, sendo esse critério sem valor algum para caracterizar especificamente o direito.
b) gerais (abstratas) ou individuais (concretas): se o direito fosse reduzido à lei – conforme propunha a Escola da Exegese –, talvez esse critério tivesse algum valor. No entanto, o normativismo contemporâneo admite sem reservas que tanto as decisões judiciais quanto as normas negociais (contratos) são norma jurídica. Dessa forma, esse critério também não oferece nenhum elemento caracterizador do direito em especial.
c) categóricas ou hipotéticas: Bobbio admite que num sistema normativo há somente normas hipotéticas, pois as categóricas são específicas dos sistemas morais. Afirma, contudo, que há vários sistemas normativos – além do jurídico – que compõem-se de normas hipotéticas, como é o caso das normas técnicas (se queres evitar acidentes, respeite o limite de velocidade) ou de qualquer norma condicionada (se chover, deves levar o guarda-chuva).
2.2 Critério material
Critério que se poderia extrair do conteúdo das normas jurídicas, ou seja, das ações reguladas. Conforme expressamente afirma Bobbio, “esse critério é manifestamente inconcludente” (p.24). Os dois principais critérios materiais seriam o das ações internas e externas e ações subjetivas e intersubjetivas. Esses critérios podem servir para diferenciar o direito da moral, mas não das regras do costume ou das regras de trato social (convencionalismos sociais).
Ocorre que as normas jurídicas podem regular qualquer ação possível do homem, entendendo-se ação possível como aquelas que não sejam nem necessárias nem impossíveis. O campo das ações possíveis é, portanto, vastíssimo e é comum tanto às regras jurídicas como a todas as outras regras de conduta não-jurídicas.
2.3 Critério do sujeito que põe a norma
Esse critério irá identificar como jurídicas as normas emanadas de um “poder soberano”, aquele acima do qual não existe nenhum outro poder superior, e detém o monopólio do uso da força.
Bobbio considera esse critério importante e não pode ser tachado de inconcludente. Conforme seu livro anterior – Teoria da Norma Jurídica – o direito seria um conjunto de regras que se fazem valer pelo uso da força, ou seja, um “ordenamento normativo de eficácia reforçada” (p. 25). Como o uso da força é efetivado justamente pelo poder soberano, então há uma convergência entre a sua conclusão no livro anterior – que expressaria uma teoria do direito como regra coativa – e a teoria do direito como emanação do poder soberano.
Chama atenção, contudo, ao fato de que ao definir-se o direito a partir do poder soberano, “já se realizou o salto da norma isolada para o ordenamento no seu conjunto” (p. 25). A noção de poder soberano refere-se a um conjunto de órgãos através dos quais um ordenamento é posto, conservado e se faz aplicar – no entanto, a constituição desses órgãos ocorre através do próprio ordenamento. “A soberania caracteriza não uma norma, mas um ordenamento”. O conceito de ordenamento jurídico e soberania são, portanto, conceitos que se referem um ao outro.
2.4 Critério do sujeito ao qual a norma é destinada
Tentar caracterizar uma norma como jurídica a partir de seus destinatários leva a dois critérios: normas destinadas aos súditos ou aos juízes.
a) súditos: afirmar que os súditos são os destinatários das normas jurídicas é muito genérico e não permite uma conclusão a respeito do que seja o direito. Normalmente esse critério é especificado com a afirmação de que a norma jurídica é aquela que os súditos cumprem em função da crença ou convicção de sua obrigatoriedade (“opinio iuris ac necessitatis”). Para Bobbio, essa convicção de obrigatoriedade nasce da certeza que se tem que ao violar esse tipo de norma haveria uma intervenção do poder judiciário e muito provavelmente ocorreria a aplicação de uma sanção. Nesse sentido, o sentimento de obrigatoriedade seria o sentimento de que aquela norma faz parte de um organismo mais complexo e, portanto, esse critério escapa à singularidade da norma e chega à totalidade do ordenamento.
b) juiz: a definição de juiz como aquele ao qual uma norma atribui o poder e dever de aplicar a norma jurídica, tornando possível a execução de uma sanção, só pode existir a partir de um conjunto de normas e, novamente, somos levado a abandonar a singularidade da norma e ir ao encontro do conjunto do ordenamento jurídico.
3 DA NORMA AO ORDENAMENTO
Conforme sua teoria da norma jurídica, Bobbio define norma jurídica como aquela cuja execução é garantida por uma sanção externa e institucionalizada. Esse conceito leva necessariamente à concepção do direito como ordenamento, pois ao definir o direito através da noção de sanção organizada e institucionalizada, pressupõe um complexo orgânico de normas – e não apenas um elemento individual da norma. Assim, obteríamos o seguinte esquema:
coerção
ß
institucionalização
ß
organização
ß
completo sistema normativo
ß
ordenamento
O termo direito – entendido como direito objetivo – indica portanto um tipo de sistema normativo, não um tipo de norma, pois “só em uma teoria do ordenamento o fenômeno jurídico encontra sua adequada explicação”. Assim, a norma jurídica é definida a partir do ordenamento, e não o contrário. Ou seja, não existem ordenamentos porque há normas jurídicas, mas existem normas jurídicas porque há ordenamento. Esse é o principal argumento da teoria do ordenamento jurídico.
Bobbio antecipa que a teoria do ordenamento jurídico é a única capaz de oferecer uma resposta satisfatória ao problemas das normas sem sanção, ao problema da eficácia e um critério seguro para distinguir normas meramente consuetudinárias das normas jurídicas.
3.1 É logicamente possível a existência de um ordenamento de uma norma apenas?
Essa questão lógica é enfrentada por Bobbio como forma de fundamentar formalmente a sua teoria, pois se ele pretende que o direito seja necessariamente um ordenamento, entendido de uma forma bastante simples como um conjunto de normas, a possibilidade de existir uma ordem jurídica de uma norma só – mesmo que inviável no mundo real, como ele mesmo admite – seria um forte argumento teórico na linha do positivismo analítico e formalista.
Ele levanta três possibilidades de ordens jurídicas com apenas uma norma.
Primeira: uma norma de conduta que pretenda regular todas as ações possíveis, qualificando-as com uma única modalidade, levaria a três possibilidades:
Tudo é permitido ? tal norma leva a uma situação semelhante ao estado de natureza
Tudo é proibido ? tal norma tornaria impossível a vida social
Tudo é obrigatório ? tal norma tornaria impossível a vida social, além de gerar conflitos insolúveis em função da possibilidade de condutas contrárias
Segunda: uma norma de conduta que regule uma única ação pressupõe sempre a uma norma geral exclusiva, pois do contrário apenas aquela única conduta regulada é que seria juridicamente possível. Assim, temos pelo menos duas normas, o que exclui logicamente a possibilidade de uma ordem jurídica de uma norma só.
Terceira: uma norma de estrutura ou competência tal como “é obrigatório tudo o que o soberano determina” seria possível. Contudo, essa norma leva a uma pluralidade de normas de conduta e pressupõe outras normas de competência, como, v.g., uma norma que determine quem é o soberano (conforme já tratado no item 2.4, a respeito do juiz). Novamente a possibilidade de uma ordem jurídica como uma única norma fica logicamente excluída.
Bobbio passa então a analisar os principais problemas da teoria geral do direito não resolvidos pela teoria da norma, quais sejam, o problema da unidade, coerência e completude da ordem jurídica.
4 UNIDADE DO ORDENAMENTO
Uma das dificuldades no estudo do direito como ordenamento é encontrar um critério que o unifique e identifique. O que faz com que um ordenamento seja diferente de outro, ou melhor, o que individualiza cada um deles? É a partir desse problema que a unidade do ordenamento é tratada
4.1 Fontes reconhecidas e fontes delegadas
Bobbio irá chamar atenção ao fato de que, apesar dele ter levantado o problema da possibilidade de um ordenamento de uma norma só, essa questão é puramente acadêmica, pois a realidade jurídica e histórica tem demonstrado que as ordens jurídicas em geral possuem um número incontável de normas.
Além disso, as normas de um ordenamento não derivam exclusivamente de uma única fonte, o que dificulta ainda mais a tarefa do jurista na identificação do direito. Assim, as ordens jurídicas são complexas – pois suas normas derivam de mais de uma fonte – e não simples – caso possuíssem apenas uma fonte. Mesmo organizações sociais com poucos membros possuem mais de uma fonte (ex. família).
A complexidade de um ordenamento jurídico deriva do fato de que a necessidade de regras de conduta numa sociedade é tão grande que não existe nenhum poder (ou órgão) em condições de satisfazê-la sozinho. (p. 38)
Assim, ao lado da fonte direta, há as fontes indiretas, que são a recepção e a delegação. Recepção de normas já feitas, produzidas por ordenamentos diversos e precedentes, servindo como exemplo o costume. Delegação do poder de produzir normas jurídicas a poderes ou órgãos inferiores. Trata-se das fontes reconhecidas (recepção) e fontes delegadas (delegação). O costume, entretanto, é visto por alguns pensadores como fonte delegada, alegando que haveria uma autorização aos cidadãos para produzirem normas a partir de seu comportamento uniforme. Bobbio discorda deste ponto de vista, alegando que “na recepção o ordenamento jurídico acolhe um preceito já feito; na delegação, manda fazê-lo, ordenando uma produção futura” (p. 39) Nessa mesma linha, o poder de negociação é uma fonte de normas a respeito da qual não é muito nítido o seu enquadramento como fonte reconhecida ou fonte delegada, que vai depender do enfoque dado, de decidir-se “se a autonomia privada deve ser considerada como um resíduo de um poder normativo natural ou privado, antecedente ao Estado, ou como um produto do poder originário do Estado” (p. 41).
4.2 Tipos de fontes e formação histórica do ordenamento
A dificuldade na determinação de quais normas são reconhecidas e quais são delegadas depende bastante da concepção geral que se tem do ordenamento. Em cada ordenamento, o ponto de referência último é o poder originário, que seria o poder além do qual não existiria outro pelo qual se possa justificar o ordenamento jurídico. Esse poder originário é chamado de fonte das fontes.Se todas as normas pudessem derivar diretamente dessa fonte das fontes, o ordenamento seria simples (e não complexo), mas isso não ocorre em virtude da formação histórica do ordenamento, que acarreta duas conseqüências importantes.
1) “Um ordenamento não nasce num deserto”, ou seja, o surgimento de uma ordem jurídica sempre ocorre numa sociedade humana na qual vigem normas de vários gêneros (religiosas, morais, sociais…) e o novo ordenamento nunca elimina completamente essas normas, sendo que muitas acaba por reconhecer boa parte delas, expressa ou tacitamente. Assim, o novo ordenamento já nasce historicamente – não juridicamente – limitado – pode-se falar então de um limite externo ao poder soberano.
2) O poder originário também cria novas esferas de produção jurídica, atribuindo competências a vários órgãos, entidades territoriais autônomas (estados federados, municípios) e cidadãos particulares (poder negocial). Nesse caso, tem-se uma autolimitação do poder soberano ou ainda um limite interno do poder originário.
Conforme a ênfase na formação do ordenamento é dada ao fenômeno da recepção ou da delegação, encontramos aí duas concepções clássicas da formação do Estado. A ênfase à recepção nos remete à concepção hobbesiana do Estado, que concentra todos poderes/direitos renunciados pelos cidadãos e nasce sem nenhum limite, tendo plena capacidade de delegação. A segunda concepção, que enfatiza o aspecto da recepção, remete-nos à uma concepção lockiana, na qual “o poder civil é fundado com o objetivo de assegurar o melhor gozo dos direitos naturais” e, portanto, nasce originariamente limitado por um direito preexistente.
4.3 As fontes do direito
Fontes do direito são aqueles fatos ou atos dos quais o ordenamento jurídico faz depender a produção de normas jurídicas (p. 45).
A respeito das fontes, o que importa notar é que o ordenamento jurídico moderno, além de regular o comportamento das pessoas, regula também o modo pelo qual se devem produzir as regras. Assim, o ordenamento jurídico regula a própria produção normativa. Isso indica a existência de normas de comportamento ao lado de normas de estrutura. Além das normas dirigidas diretamente aos cidadãos, há grande número de normas que têm a finalidade de oferecer aos juízes instruções sobre o modo através do qual se devem produzir as normas individuais e concretas que são as sentenças. É justamente a presença e freqüência dessas normas para a produção de outras normas (normas de estrutura) que constituem a complexidade do ordenamento jurídico. É nesse ponto que a teoria do ordenamento ultrapassa a teoria da norma, ao menos numa questão formal: enquanto a teoria da norma havia parado na consideração da norma como imperativos – no sentido de ordem de fazer ou não fazer – a teoria do ordenamento vai além e afirma que as normas de conduta são imperativos de primeira instância, mas há ainda as normas imperativas de segunda instância, que consistem em comandos de comandar (nove tipos: normas que mandam ordenar, proíbem ordenar, permitem ordenar, mandam proibir, proíbem proibir, permitem proibir, mandam permitir, proíbem permitir, permitem permitir – ver exemplos no livro).
4.4 Construção escalonada do ordenamento
O fato do ordenamento ser complexo não excluiu sua unidade, mas isso precisa ser explicado, pois não é algo evidente, como no caso dos ordenamentos simples (que possuem apenas uma fonte). Para explicar a unidade de um ordenamento complexo, Bobbio aceita a teoria da construção escalonada do ordenamento proposta por Kelsen, a qual pressupõe que as normas de um ordenamento não estão todas em um mesmo plano. Há, portanto, normas superiores e normas inferiores, sendo que as inferiores dependem das superiores. Subindo-se das normas inferiores à superiores, chega-se a uma norma suprema, que não depende de nenhuma outra norma superior, e sobre a qual repousa a unidade do ordenamento (p. 49) Assim, a unidade de um ordenamento complexo ocorre porque, apesar das variadas fontes, todas remontam-se a uma única norma.
Essa norma suprema é a norma fundamental. Cada ordenamento tem uma norma fundamental. É essa norma fundamental que dá unidade a todas as outras normas, isto é, faz das normas espalhadas e de várias proveniências um conjunto unitário que pode ser chamado “ordenamento”. […] Sem uma norma fundamental, as normas de que falamos até agora constituiriam um amontoado, não um ordenamento (p. 49).
A presença de normas inferiores e superiores, dispostas em ordem hierárquica, constitui a estrutura hierárquica do ordenamento jurídico. Assim, a unidade do ordenamento dá-se não pela mais pela busca de determinadas características específicas ou intrísecas às normas jurídicas, mas pela possibilidade de se remontar sempre a uma norma fundamental. Assim, ao analisar uma determinada conduta seria necessário buscar a sua referência à norma fundamental, conforme o esquema abaixo:
Conduta
ß
contrato
ß
Código Civil
ß
Constituição Federal
ß
NORMA FUNDAMENTAL
Como a conduta remonta à norma fundamental, podemos então chamá-la de “ato jurídico”. Esse ato jurídico é chamado por Bobbio de ato executivo, pois executa – no exemplo – um contrato, enquanto o contrato é produtor. Execução e produção são termos relativos, pois a maior parte das normas são ao mesmo tempo executivas e produtivas: executiva com respeito à norma superior, produtiva com relação à norma inferior. O código civil, conforme o esquema acima, é executivo com relação à constituição mas produtiva com relação ao contrato. O grau mais baixo é constituído pelos atos executivos, que não têm caráter produtivo por não possuir nenhuma norma que lhe seja inferior, bem como o grau mais alto será a norma fundamental. Imaginando a estrutura hierarquizada do ordenamento como uma pirâmide, ao olhar para cima vê-se uma série de processos de produção jurídica; ao olhar para baixo, vê-se uma série de processos de execução jurídica. Esse mesmo fenômeno pode ser explicado com a utilização de duas expressões mais comuns no meio jurídico: poder, como equivalente à produção, e dever como equivalente à execução.
4.5 Limites materiais e limites formais
Na estrutura hierarquizada do ordenamento, quando um órgão superior atribui um poder normativo a um inferior, não lhe atribui um poder ilimitado. Os limites para restringir as normas inferiores podem ser de dois tipos: limites materiais e limites formais. O limite material refere-se ao conteúdo da norma que o órgão inferior está autorizado a emanar, enquanto que o limite formal refere-se à forma, ou seja, ao modo ou ao processo pelo qual a norma inferior deve ser emanada. “A observação desses limites é importante porque eles delimitam o âmbito em que a norma inferior emana legitimamente” (p. 54). O desrespeito aos limites sujeita a norma a ser declarada ilegítima e a ser expulsa do sistema. O limite material pode ainda ser considerado positivo ou negativo. Positivo quando impõe determinado conteúdo (ordem de mandar) e negativo quando o proíbe (proibição de mandar ou ordem de permitir).
A possibilidade (rara) do uso do “juízo de eqüidade” é um exemplo no qual o juiz pode julgar sem qualquer limite material, pois pode resolver a controvérsia sem recorrer a uma norma legal preestabelecida.
Bobbio critica as teorias (e Kelsen, portanto) que afirmam que ao direito não interessa tanto aquilo que os homens fazem, mas como o fazem, em suma, que o direito seria uma regra formal da conduta humana. Ou seja, que o direito seria desprovido de limites materiais. Ele acusa essas teses de realizarem uma “extrapolação ilícita”, afirmando que elas podem ter apenas uma “aparência de verdade” quando referem-se à relação entre a lei e a autonomia privada (especialmente para contratar). Cita então, o exemplo do testamento, que possui várias formalidades para sua elaboração e validade, mas que isso não exclui a preocupação com o conteúdo, uma vez que será impossível ao testador desrespeitar a “legítima” dos herdeiros.
4.6 A norma fundamental
É comum imaginar-se que a constituição seria a norma fundamental de um ordenamento. No entanto, se existem as normas constitucionais é porque houve um poder normativo do qual elas derivaram: esse poder é o poder constituinte. “O poder constituinte é o poder último, ou, se quisermos, supremo, originário, num ordenamento jurídico”. Contudo, todo poder pressupõe uma norma que o autoriza a produzir normas jurídicas. Essa norma é a norma fundamental. Ela poderia ser formulada da seguinte maneira: O poder constituinte está autorizado a estabelecer normas obrigatórias para toda a coletividade, ou, A coletividade é obrigada a obedecer às normas estabelecidas pelo poder constituinte.
A norma fundamental não é expressa, mas pressuposta. A pressuposição da norma fundamental serve para fundar o sistema normativo, como a norma última além da qual seria inútil ir. “Essa reductio ad unum não pode ser realizada se no ápice do sistema não se põe uma norma única, da qual todas as outras, direta ou indiretamente, derivem” (p. 59). O fato dessa norma não ser expressa não significa que ela não exista: ela é o fundamento subentendido da legitimidade de todo o sistema (p. 60).
Para saber se uma norma pertence ao ordenamento jurídico é necessário descobrir a sua pertinência a esse ordenamento, ou seja, a sua validade. Ou seja, uma norma existe como norma jurídica, ou é juridicamente válida, enquanto pertence a um ordenamento jurídico (p. 60). A validade da norma é importante porque se ela for válida é obrigatório conformar-se a ela sob pena de sanção. Para saber a validade numa teoria do ordenamento, é necessário remontar-se de grau em grau, de poder em poder, até a norma fundamental. Assim, “uma norma é válida quando puder ser reinserida, não importa se através de um ou mais graus, na norma fundamental” (p. 61-2). A norma fundamental, portanto, é o critério supremo que permite estabelecer se uma norma pertence a um ordenamento, ou seja, é o fundamento de validade de todas as normas do sistema (p. 62). “Uma teoria coerente do ordenamento jurídico e a teoria da norma fundamental são indissociáveis”.
Mas alguém pode perguntar: “E a norma fundamental, sobre o que é que se funda?” Grande parte da hostilidade à admissão da norma fundamental deriva da objeção formulada em tal pergunta. Temos dito várias vezes que a norma fundamental é um pressuposto do ordenamento: ela, num sistema normativo, exerce a mesma função que os postulados num sistema científico. Os postulados são aquelas proposições primitivas das quais se deduzem outras, mas que, por sua vez, não são dedutíveis. Os postulados são colocados por convenção ou por uma pretensa evidência destes; o mesmo se pode dizer da norma fundamental: ela é uma convenção, ou, se quisermos, uma proposição evidente que é posta no vértice do sistema para que a ela se possam reconduzir todas as demais normas. À pergunta “sobre o que ela se funda” deve-se responder que ela não tem fundamento, porque, se tivesse, não seria mais a norma fundamental, mas haveria outra norma superior, da qual ela dependeria. Ficaria sempre aberto o problema do fundamento da nova norma, e esse problema não poderia ser resolvido senão remontando também a outra norma, ou aceitando a nova norma como postulado. Todo sistema tem m início. Perguntar o que estaria por trás desse início é problema estéril. (p. 62-3)
A busca do fundamento da norma fundamental extrapola os limites do sistema jurídico e somente pode ser buscada fora dele; não é um problema jurídico. A título ilustrativo, Bobbio apresenta algumas das principais concepções a respeito do poder que seria a verdadeira fonte última de todo o poder (ou o fundamento da norma fundamental): a) todo poder vem de Deus, b) o dever de obedecer ao poder vem de uma lei natural, c) o dever de obedecer deriva de uma convenção originária. Todas essa concepções, no entanto, transcendem o sistema jurídico.
4.7 Direito e força
A norma fundamental estabelece que é preciso obedecer ao poder originário (que é o mesmo poder constituinte). Como o poder originário é entendido como o conjunto das forças políticas que num determinado momento histórico tomaram o domínio e instauraram um novo ordenamento jurídico, objeta-se que ao fazer depender todo o sistema normativo do poder originário significa reduzir o direito à força (particularmente a força física).
Conforme Bobbio, todo poder originário repousa um pouco sobre a força e um pouco sobre o consenso. Assim, submeter-se ao poder originário significa submeter-se não à violência, mas submeter-se àqueles que detêm o poder coercitivo. Esse poder coercitivo pode estar fundado num consenso geral. A força é um instrumento necessário do poder, mas não significa que seja o seu fundamento. “A força é necessária para exercer o poder, mas não para justificá-lo.
Sendo o direito fundado, em última instância sobre o poder, entendido como poder coercitivo que pode recorrer à força para garantir a ordem jurídica, tem-se então que o direito é um conjunto de regras com eficácia reforçada. Assim, o direito é impossível sem o exercício da força (sem um poder), mas ter esse poder como seu fundamento último não significa reduzi-lo à força, mas reconhecê-la como necessária para a realização do direito. O ordenamento jurídico (com eficácia reforçada) só existe quando seja eficaz (1). Mas é importante observar que a norma, considerada individualmente, pode ser válida sem ser eficaz, o que não ocorre com o ordenamento, que somente será válido se eficaz.
A preocupação com a possibilidade da redução do direito à força não é considerada por Bobbio uma preocupação jurídica, mas uma preocupação com a justiça (2).
A definição do direito que aqui adotamos não coincide com a de justiça. A norma fundamental está na base do Direito como ele é (o Direito positivo), não do Direito como deveria ser (o Direito justo). Ela autoriza aqueles que detêm o poder a exercer a força, mas não diz que o uso da força seja justo só pelo fato de ser vontade do poder originário. Ela dá uma legitimação jurídica, não moral, do poder. O Direito, como ele é, é expressão dos mais fortes, não dos mais justos. Tanto melhor, então, se os mais fortes forem também os mais justos. (p. 67)
Bobbio defende uma teoria na qual a força é um instrumento para a realização do direito e, nesse ponto, diverge de Kelsen e Ross, para quem a força é o objeto do direito. Assim, para estes autores o direito não é conjunto de normas que se tornam válidas através da força, mas um conjunto de normas que regulam o exercício da força numa determinada sociedade. Para Bobbio, essa concepção desloca a força de instrumento para objeto da regulamentação jurídica e está profundamente ligada à idéia que considera como normas jurídicas somente as secundárias.
Se A, deve ser B, (norma primária)
se ÑB, deve ser S (norma secundária)
Kelsen, inclusive, inverte essa situação, afirmando serem primárias as secundárias, e vice-versa. Bobbio discorda desse ponto de vista e admite expressamente a existência de normas sem sanção, pois para ele o ordenamento como um todo é que deve ser sancionado. Em síntese, Bobbio não vê o ordenamento como um conjunto de regras para o exercício da força (força como objeto), pois considera essa concepção muito limitativa do direito, mas como um conjunto de regras para organizar a sociedade mediante a força (força como instrumento).
5 A COERÊNCIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO
O problema da coerência surge em função do ordenamento jurídico constituir-se por um conjunto de normas, as quais por emergirem de variadas fontes podem apresentar oposições entre si. Essas oposições somente podem ser avaliadas ou julgadas se levado em conta o conteúdo das normas, não bastando referir-se à autoridade jurídica da qual emanaram. É neste ponto que Bobbio diverge de Kelsen. Para Kelsen o sistema jurídico é fundamentalmente um sistema dinâmico – entendido este como um sistema puramente formal, que não se refere à conduta que as normas regulam, mas tão somente à maneira como essas normas foram postas. Para Kelsen, a existência de duas normas cujo conteúdo seja contraditório não torna ilegítimo o sistema nem invalida as normas contraditórias. Bobbio não admite esse ponto de vista porque considera que viola a idéia de sistema como totalidade ordenada: como considerar um sistema permeado de normas opostas como uma “totalidade ordenada”?
Bobbio apresenta então três concepções de sistema distintas, que foram desenvolvidas na filosofia do direito. O primeiro significado de sistema é no sentido de sistema dedutivo, no qual todas as normas de um ordenamento são deriváveis de alguns princípios gerais, considerados da mesma maneira que os postulados de um sistema científico. Essa concepção de sistema foi típica do jusnaturalismo. A segunda concepção de sistema indica um ordenamento da matéria realizado através do processo indutivo, isto é, partindo do conteúdo das simples normas com a finalidade de construir conceitos sempre mais gerais e classificações ou divisões da matéria inteira, gerando um procedimento de classificação. Por fim, o terceiro significado de sistema é considerado por Bobbio o mais interessante e é o significado que será utilizado em todo o capítulo sobre a coerência do ordenamento. O ordenamento, nesse sentido, é um sistema porque não podem coexistir nele normas incompatíveis. Se houver normas incompatíveis, uma ou ambas devem ser eliminadas.
5.1 O problema das antinomias
Antinomia é a existência de normas incompatíveis entre si dentro de um sistema jurídico. A tradição, ao abordar o direito como um sistema no terceiro sentido acima apontado, irá afirmar que o Direito não tolera antinomias.
Ao definir-se normas incompatíveis como aquelas que não podem ser ambas verdadeiras, essas relações de incompatibilidade normativa serão verificadas em três casos:
1) entre uma norma que ordena fazer algo e outra que proíbe fazê-lo (contrariedade);
2) entre uma norma que ordena fazer e outra que permite não fazer (contraditoriedade);
3) entre uma norma que proíbe fazer e outra que permite fazer (contraditoriedade);
Além das situações acima descritas, para que haja antinomia é ainda necessário que:
1) as duas normas pertençam ao mesmo ordenamento
2) as duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade: temporal, espacial, pessoal e material (3).
A partir das observações acima, o conceito de antinomia fica ampliado, podendo ser considerada a antinomia jurídica como “aquela situação que se verifica entre duas normas incompatíveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e tendo o mesmo âmbito de validade” (p. 88).
Paralelamente a essa concepção de antinomia proposta por Bobbio, há outras situações que as concepções tradicionais também atribuem o significado de antinomia, mas que Bobbio irá chamar de antinomias impróprias, para distinguir das antinomias já definidas, por ele consideradas como antinomias próprias.
As antinomias impróprias podem ser:
1) antinomia de princípio – refere-se ao fato dos ordenamento jurídicos serem normalmente inspirados em valores contrapostos, como, por exemplo, liberdade e segurança;
2) antinomia de avaliação – ocorre quando um delito menor é punido com uma pena mais grave que um delito maior.
3) antinomias teleológicas – têm lugar quando existe uma oposição entre a norma que prescreve o meio para alcançar o fim e a que prescreve o fim, de modo que se aplico a primeira não chego ao fim estabelecido na segunda.
5.2 Critérios para solução de antinomias
A presença de antinomias no sistema jurídico é considerada um defeito que o intérprete irá tentar eliminar. Surge aí a questão de qual das normas deverá ser eliminada e quais critérios poderão ser utilizados para realizá-la.
Ao tentar solucionar as antinomias, pode-se deparar com duas situações diferentes: 1) é possível resolver a antinomia a partir dos cirtérios tradicionais (cronológico, hierárquico e especialidade); 2) não é possível resolver a antinomia porque não se pode aplicar nenhum dos critérios existentes ou porque se podem aplicar ao mesmo tempo duas ou mais regras em conflito entre si. Às antinomias da primeira situação Bobbio chamará de antinomias aparentes (ou solúveis) e às da segunda situação de antinomias reais (ou insolúveis).
As regras fundamentais para a solução das antinomias aparentes (solúveis) são três:
1) critério cronológico – é aquele no qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a norma posterior (lex posterior derogat priori).
2) critério hierárquico – é aquele pelo qual, entre duas normas incompatíveis, prevalece a hierarquicamente superior (lex superior derogat inferiori).
3) critério da especialidade – é aquele pelo qual, entre duas normas incompatíveis, uma geral e outra especial (ou excepcional), prevalece a segunda (lex specialis derogat generali).
Contudo, há casos em que não é possível aplicar esses critérios facilmente, pois pode ocorrer antinomia entre duas normas contemporâneas, do mesmo nível ou ambas gerais. Nessa situação, os critérios acima indicados não servem mais e não existe um “quarto critério” que possa resolver esse tipo de antinomia. Alguns tratadistas mais antigos tentaram elaborar alguns critérios para tentar resolver esse tipo de antinomia, segundo a forma das normas antinômicas, que poderiam ser imperativas, proibitivas ou permissivas (4), porém deve-se reconhecer que essas regras não têm a mesma legitimidade daquelas deduzidas dos três critérios acima analisados.
Não havendo critério para resolver a antinomia, o juiz ou intérprete tem três possibilidades: 1) elimina uma das normas, 2) elimina as duas ou 3) conserva as duas. No primeiro caso, trata-se de interpretação ab-rogante, mas que não corresponde a uma ab-rogação em sentido próprio, já que o intérprete não tem poder normativo. O segundo caso ocorre normalmente quando a relação entre as normas não é de contradição, mas de contrariedade, no qual ocorre uma dupla ab-rogação (5). A terceira solução é talvez aquela à qual o intérprete recorre mais freqüentemente e consiste em demonstrar que existe compatibilidade, que a suposta incompatibilidade é fruto de uma interpretação superficial ou ruim. É a chamada interpretação corretiva, que pretende conciliar duas normas aparentemente incompatíveis para conservá-las ambas no sistema, evitando assim o remédio extremo da ab-rogação.
A situação antinômica mais delicada, contudo, é aquela na qual pode acontecer que duas normas incompatíveis mantenham entre si uma relação em que se podem aplicar concomitantemente, não apenas um, mas dois ou três critérios, sendo que cada um que for aplicado levará a uma solução diferente. Sendo três os critérios, os conflitos entre critérios podem ser três tipos:
1) conflito entre o critério hierárquico e cronológico – neste caso, o critério hierárquico prevalece sobre o cronológico, pois do contrário a estrutura hierárquica do ordenamento perderia seu sentido.
2) conflito entre o critério da especialidade e o cronológico – neste caso, deve o critério da especialidade preponderar sobre o cronológico. Contudo, essa regra deve ser tomada com cautela e ter como fundamento uma ampla casuística.
3) conflito entre o critério hierárquico e o de especialidade – neste caso, Bobbio afirma que é impossível uma resposta segura e que não existe uma regra geral consolidada. A solução dependerá do intérprete.
Esse problema indicado no item 3 acima traz à tona a questão da regra de coerência do ordenamento, que proibiria as antinomias no sistema jurídico. Essa questão, por sua vez, levanta também o problema da validade: a compatibilidade seria uma condição necessária para a validade de uma norma jurídica? Bobbio afirma expressamente que não. Não existe no ordenamento nenhuma regra de coerência e, portanto, duas normas incompatíveis do mesmo nível e contemporâneas são ambas válidas. Essas normas, entretanto, não podem ser ao mesmo tempo eficazes, no sentido de que a aplicação de uma no caso concreto exclui a aplicação da outra, mas são ambas válidas no sentido de que, apesar de seu conflito, ambas continuam a existir no sistema e não há remédio para sua eliminação. Assim, a coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento, pois a aplicação de duas normas contraditórias gerará decisões diferentes a casos semelhantes e viola dos princípios considerados importantes para os ordenamento jurídico: o princípio da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem) e o princípio da justiça (que corresponde ao valor da igualdade).
BIBLIOGRAFIA
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 4 ed. Brasília: EdUNB, 1994.
______. O positivismo jurídico: lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995.
______. Direito e Estado no pensamento de Emanuel Kant. 3 ed. Brasília: EdUNB, 1995.
______. Teoria da norma jurídica. Bauru: Edipro, 2001.
FALCON Y TELLA, Maria José. Conceito e fundamento de validade do direito. Terra de Areia [RS]: Triângulo, 1998.
FERRAZ JR., Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 3 ed. São Paulo: Atlas, 2001.
KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1994.
______. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
NOTAS
01 Atenção: divergência “perigosa” com Kelsen. Perigosa porque, a princípio, Kelsen negaria qualquer interferência do mundo do ser no mundo do dever ser jurídico – assim, quando Bobbio admite que o ordenamento só existe (ou seja, é válido) quando for eficaz, admite a necessidade de uma situação fática (do mundo do ser) como condição de validade para o ordenamento. A princípio, essa tese seria inadmissível para Kelsen. Contudo, verificar em Kelsen o capítulo sobre o “mínimo de eficácia”, no qual ele admite a possibilidade de uma norma perder a validade por jamais ter tido qualquer eficácia. A admissão do “mínimo de eficácia” por Kelsen é considerado uma falha interna na sua Teoria Pura do Direito. Bobbio, por sua vez, irá admitir a possibilidade de uma norma ser válida sem qualquer eficácia – para Bobbio, o ordenamento é que precisa ser eficaz.
02 Observar que Bobbio, assim como Kelsen, exclui a preocupação com a justiça do âmbito jurídico, em função da concepção positivista do direito que exige uma ciência do direito avalorativa.
03 Ver exemplos no Cap. 3, início do item 4 (p. 88).
04 Ver detalhes no Cap. 3, item 6, p. 98-9.
05 Ver exemplos Cap. 3, item 6, p. 102.